Avalanche de efemérides

Março, sendo o mês da Primavera, é pródigo em efemérides ambientais. Para além do início da “estação da vida”, há […]

Março, sendo o mês da Primavera, é pródigo em efemérides ambientais.

Para além do início da “estação da vida”, há lugar para um considerável festim de datas dignas de registo, porque associadas a coisas tão fundamentais como a água, a floresta/árvore (pelo menos no hemisfério Norte do Planeta), a meteorologia ou a agricultura.

Podia então discorrer sobre o lote de datas que se avizinha, sobre a sua importância e a importância dos valores que assinala, mas, sinceramente, apetece pouco.

Uma pequena história, bem conhecida, ajuda a explicar o porquê.

Um lindo dia, um cavalheiro saiu de casa para caçar mas, distraidamente, muniu-se de um guarda-chuva, em vez da espingarda. Chegado ao campo e localizada uma presa, concentrou-se, apontou cuidadosamente, e premiu o cabo do guarda-chuva. Acto contínuo, a sua presa tombou redonda no chão, fulminada por projéctil certeiro. E lá voltou para casa, satisfeito com a proeza, o desatento cavalheiro.

Moral da história? Não foi ele que deu o tiro.

Ora bem, nós, os Portugueses, somos assim.

Em Portugal toda a gente gosta muito de tudo. Gosta do ambiente, adora as plantas, emociona-se com as espécies ameaçadas, enamora-se pela questão da qualidade da água, delicia-se com a paisagem… é gostar até fartar.

No entanto, e de forma perfeitamente inexplicável, face a tanto amor, tudo se degrada, tudo vai para o galheiro.

Ou seja, nunca somos nós a dar o tiro.

Sobra então uma qualquer distorcida obra divina para justificar as múltiplas e variadas ocorrências que continuam a delapidar o nosso património ambiental colectivo.

Só assim se explica que descargas ilegais continuem impunemente a poluir os nossos cursos de água ou que siga a sobre-exploração dos aquíferos subterrâneos (esgotando-os mais rápido do que se regeneram e permitindo, no caso do Algarve mais litoral, a infiltração de águas salinas), e que não pare o arraso de zonas húmidas e áreas de máxima infiltração, para amontoar mais betão.

Também só dessa forma se encontra explicação para que se permita que a floresta continue a ser pasto para a negligência, querelas e arrufos de privados e herdeiros, num cadastro retalhado e tantas vezes desconhecido. Nada se faz, nada se consegue fazer, e depois arde…

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De igual modo, ganha contornos de mistério hitchcockiano, uma vez que não é nenhum Português (criatura adepta de efemérides, e amante de tudo quanto é Natureza e campo e tudo e tudo), a identidade de quem continua a desbaratar as melhores terras com potencial produtivo para multiplicação de estradas, estradinhas e redundantes obras afins, que nada acrescentam, e só constituem destino, terminal e estéril, para o erário público e para a capacidade do País se alimentar.

E, já agora, porque é que o sobreiro, apesar de ser a “árvore nacional”, bem como espécie legalmente protegida (já desde os tempos de D. Dinis!), volta e meia vê os seus efectivos (e de outras quercíneas) abatidos às centenas, por dá cá aquela palha, só porque dá jeito a alguém (se bem que um alguém graúdo), para fins com os quais o colectivo ganha zero?

Isto centrando um pequeno e aleatório lote de inquietações apenas nos temas das efemérides vizinhas…

Vai daí, peço desculpa se me parece que a banalidade e hipocrisia das comemorações promovidas é uma ofensa à inteligência colectiva, quando a prática de quem as celebra é exactamente contrária à preservação dos valores supostamente recordados.

Não digo que seja inútil porque há sempre um importante capital de esperança (e tanto que precisamos dela) que é armazenado no trabalho de sensibilização, dedicado e esforçado, que é realizado por tanta gente, principalmente junto dos mais novos. Mas enquanto os informados cidadãos de amanhã enfrentarem a negligente, mal-intencionada ou incompetente determinação dos decisores de hoje, apostados em destruir o seu património futuro, com o indolente beneplácito da Sociedade que os educa pedindo atenção, de pouco lhes valerá a consciência, a não ser para ampliar a angústia.

Corremos o sério risco de que, talvez um dia, nos guardem ressentimento por lhes termos negado a bênção da ignorância, quando não pretendíamos deixar-lhes nada com que trabalhar…

Claro que a crise serve hoje de magnífico bode expiatório, justificando todas as vilanias em nome de uma pressa axiomática que, novamente, nos conduz para longe de uma reflexão séria acerca do futuro – para isso nunca há tempo.

O problema é que, quanto mais tempo passa, sob o selo da nossa inércia, mais cresce a inutilidade das aparências.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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