Os empresários que não querem deixar de sonhar

«Não podemos deixar de sonhar, senão perdemos a nossa identidade, acomodamo-nos, ficamos velhos». Esta foi a recomendação deixada pelo empresário […]

«Não podemos deixar de sonhar, senão perdemos a nossa identidade, acomodamo-nos, ficamos velhos». Esta foi a recomendação deixada pelo empresário Helder Madeira em mais uma Beta Talk, que a 16 de janeiro encheu o espaço de café-concerto do Teatro Municipal de Portimão (Tempo).

A conversa sobre empreendedorismo, que durou mais de três horas, andou entre a produção de caracóis – o negócio de Sérgio Silva, da Quinta do Barranco, em Algoz – e as azeitonas – o negócio de Hélder Madeira, em Tavira.

Sérgio Silva, engenheiro de sistemas, trabalhou durante muitos anos numa cadeia de supermercados algarvia, até que, com a sua aquisição por um grupo internacional há cerca de seis anos, se viu desempregado. Resolveu então mudar o rumo da sua vida e dedicar-se ao campo.

Hoje, o empresário produz 600 toneladas de citrinos e 40 toneladas de caracóis por ano, mas já evoluiu da criação de caracóis para a sua reprodução, estando agora a pensar na diversificação e até na inovação, criando, em conjunto com a Universidade do Algarve. produtos totalmente novos, que não existem no mercado, com aplicação na indústria farmacêutica.

Mas começando a história pelo princípio. Há cerca de seis anos, Sérgio Silva comprou, com a ajuda dos pais, um terreno na zona de Algoz (Silves), a Quinta do Barranco, com 22 hectares, que estavam em grande parte ocupados por um pomar de citrinos já com alguns anos e cheio de problemas.

No entanto, o que o atraía era mesmo a criação de caracóis, daqueles grandes, que no Algarve se chamam caracoletas e que são os que, pelo seu tamanho, dão rendimento. «A ideia surgiu-me porque tinha uma namorada cujo pai tinha um café, mas, quando chegava a altura dos caracóis, tinha muita dificuldade em encontrá-los. Por isso decidi-me a apostar na helicicultura. Porquê? Primeiro, porque é uma coisa diferente, que quase não há em Portugal, apesar de termos condições excelentes para isso. Depois pensei: já que tenho um terreno, porque não fazer algo que não implica grande investimento?»

Só que havia um problema: «eu não percebia nada de caracóis!», admite o empresário.

A solução foi «pesquisa e mais pesquisa», sobretudo na internet, onde Sérgio Silva diz que, se encontrou muita informação útil, também encontrou muito material sem qualquer utilidade ou até errado. Mas foi esse o seu primeiro passo. Depois procurou formação especializada junto dos poucos helicicultores que já existiam em Portugal, na zona Centro, onde aprendeu os rudimentos do negócio.

«A maior barreira para estabelecer a helicicultura no Algarve é o desconhecimento total deste setor. O nosso país não tem tradição de produzir caracóis, só de os comer, mas come-se os que se apanham no campo. Hoje, a esmagadora maioria dos caracóis que se comem em Portugal, sobretudo dos pequenos, são importados de Marrocos, porque cá já não se consegue apanhar o suficiente».

Em termos de helicicultura, o caracol pequeno não dá rendimento e por isso os produtores dedicam-se a criar as chamadas caracoletas, caracóis grandes (Helix Aspersa). Sérgio Silva produz a caracoleta-moura, o escargot dos franceses. «Nós temos condições para produzir a caracoleta quando mais ninguém o consegue fazer por essa Europa e mesmo em Portugal. Aqui, graças ao clima mais ou menos ameno mesmo no Inverno, o caracol não chega a hibernar. Noutros países, eles até morrem com o frio. Aqui não».

Depois de recolher informação sobre como produzir, faltava resolver um problema básico: «onde e a quem vou vender?». É que em Portugal não havia muita tradição de comer os caracóis grandes, por isso, antes de investir na produção, Sérgio Silva decidiu procurar o seu mercado para escoar a produção futura.

«A experiência diz-me que, se o negócio não responder à pergunta “a quem vou vender” iremos falhar», disse perante a plateia cheia de mais esta Beta Talk.

A Quinta do Barranco vende 99% da sua produção de caracoleta para a zona da Grande Lisboa.

«Eu já estive do outro lado, de quem compra ao produtor e ao distribuidor, quando trabalhei na cadeia de retalho, agora estou deste lado, de quem produz. E por isso percebo algumas questões que se colocam aos meus compradores», adiantou.

 

Citrinos e pecuária…de caracóis

 

Ao longo do processo de consolidação do seu negócio agrícola e pecuário (sim, porque a criação de caracóis é uma forma de pecuária), Sérgio Silva admite ter cometido «muitos erros, tanto nos caracóis como nos citrinos. Nos citrinos foi, de certo modo mais fácil, porque arranjei um técnico para acompanhar a produção citrícola. O problema é que nos caracóis não há técnicos especializados».

Atualmente, a Quinta do Barranco tem 18 hectares de citrinos, três hectares de caracóis (começaram com um hectare) e um hectare para área social e acessos.

Depois de ter consolidado a criação de caracóis, aquilo que se poderá considerar a engorda, Sérgio Silva já evoluiu para a reprodução de caracóis, que é bem mais difícil de fazer e exige já conhecimentos técnicos mais aprofundados sobre helicicultura.

Como será o futuro? Sérgio Silva acredita que o futuro da sua Quinta do Barranco passa pela diversificação, pela aposta em novos produtos a partir daquilo que já produz. «Há anos em que tenho menos laranja, outros menos caracol. Através da diversificação, poderei conseguir que, quando um fraqueja, o outro esteja em cima», resume.

A transformação do caracol traz valor acrescentado ao produto, explica o empresário. «A caracoleta é vendida a 5 euros por quilo e um quilo tem em média 50 caracoletas. Mas se transformar a caracoleta de forma simples, por exemplo através da congelação, um dúzia de caracoletas ultra-congeladas vale 14 a 20 euros em França. A transformação garante um valor acrescentado mais alto».

E apostar em novos produtos? Há várias hipóteses como a baba de caracol (com aplicações cosméticas e farmacêuticas), o paté de caracol, o caviar de caracol. «Estou à procura de quem assegure o escoamento desses produtos, já que, sem isso garantido antes, não avanço».

Mas a aposta pode até nem passar por nenhum desses produtos. Pode passar por algo de inovador e, para isso, a Quinta do Barranco tem em curso um projeto de investigação com a Universidade do Algarve, para «analisar o ovo do caracol, não enquanto produto transformado [o chamado caviar de caracol], mas nas suas propriedades próprias. Um ovo de caracol, que é uma bolinha pequenina, tem mais proteína que um ovo de galinha. Por isso estamos a tentar inovar, a partir da pergunta básica: o que vou fazer com os ovos dos meus caracóis? A aposta não será na culinária, mas antes nas aplicações farmacêuticas e industriais do produto. Queremos abrir um nicho de mercado onde não há».

Em breve, a Quinta do Barranco vai começar a ser fornecedora de caracol do Grupo Jerónimo Martins e para isso teve que ser auditada. Mas a aposta na qualidade e no controlo estão sempre presentes no dia a dia desta exploração agropecuária sui generis.

Hoje, seis anos depois de ter começado a apostar nos caracóis (no primeiro ano não conseguiu produzir nada e até teve uma fuga de caracóis, com duas toneladas desses animais a trepar pelas laranjeiras…), Sérgio Silva já é reconhecido como um dos helicicultores de topo em Portugal.

E, para responder às inúmeras solicitações das pessoas que, por telefone e por email lhe pedem conselhos e ajuda, também já dá formação sobre este delicado negócio. Um dia de formação, que passa por duas a três horas de formação em sala e o resto do tempo no campo, na prática, custa 500 euros mais IVA. Diz Sérgio Silva que não faltam interessados.

 

Histórias de azeitonas, tornados e perseverança

 

Hélder Madeira apresenta-se como «um comerciante à moda antiga». Mas nada é mais enganador. Entre os seus clientes é conhecido como «o Hélder da azeitona». E isso define em grande parte o que faz há já algumas décadas.

Mas que faz então este empresário de Tavira? Dedica-se ao comércio e à indústria de transformação das azeitonas de mesa. Ou seja, compra, prepara e vende sobretudo «azeitona de cura tradicional, simples, com sal e orégão». Nos restaurantes algarvios, quando comer azeitona saborosa, bem preparada, bem diferente daquelas bolinhas escuras e emborrachadas que proliferam em alguns locais, muito provavelmente estará a provar a azeitona produzida por Hélder Madeira.

Apesar do que diz, não se pense que o negócio deste empresário é algo de simples e corriqueiro. Atualmente, e depois de um tornado lhe levar as suas antigas instalações, possui modernas instalações e equipamento topo de gama. Mas o segredo, garantiu perante a plateia que enchia a sala de mais esta Beta Talk, no espaço do café-concerto do Tempo, passa mesmo é pela «qualidade do produto de base», ou seja, da azeitona.

«Comecei a trabalhar muito cedo com os meus pais. Quando era miúdo, em vez de ir para o campo apanhar azeitona, que era mais duro, eu britava a azeitona, que era bem mais fácil». E assim nasceu o bichinho por um negócio que haveria de começar a sério quando voltou da tropa, nos anos 80. «Comecei com um espaço de 16 metros quadrados, hoje são 2000 metros quadrados».

Em 1988, «vendia na Rua de Santo António, em Faro, vendia aos litros em cafés e restaurantes». Hoje ainda pega nos baldes de azeitonas preparadas e corre alguns clientes, mas tem já uma rede de distribuição no Algarve e fornece alguns distribuidores de peso, como a Aviludo, que levam o seu produto a toda a região.

O segredo da sua produção é a qualidade das azeitonas com as quais trabalha, que são, garante, todas produzidas «nos barrancos da serra do Caldeirão». Hélder praticamente só trabalha com azeitona maçanilha algarvia, ocupando o seu pessoal de setembro a dezembro, todos os anos.

Mas a safra da azeitona não dura o ano todo e Hélder Madeira tem que dar trabalho aos seus colaboradores ao longo dos meses. Por isso, apostou ainda noutros negócios complementares – primeiro o carvão, agora o tremoço e as aromáticas (orégão, louro).

 

E tudo o tornado lhe levou

 

«Quando pensava que já estava tudo bem, que a minha vida estava feita, veio o tornado, que, em 2010, passou cirurgicamente por cima da minha fábrica. Passei 15 segundos agarrado a um pilar dentro das instalações, para não ser levado pelo vento. Estive ali a ver o trabalho de 24 anos a perder-se todo», recorda, ainda com alguma emoção.

«Chorei, não vou dizer que não, mas resolvi andar para a frente. Fui ao banco, propus outro investimento por mais 20 anos, o que significa que vou andar a pagá-lo até aos meus 70 anos». Mas agora, garante, «tenho outra fábrica, com condições melhores, com equipamentos modernos».

Hoje, a sua empresa produz, a partir da azeitona maçanilha algarvia (ou da galega, que é a única que vai buscar fora da região), azeitona britada, retalhada, de sal ou verde em conserva. Na preparação e conservação só utiliza produtos naturais (sal, ervas aromáticas, azeite, temperos). «Aqui nada é trabalhado com hidróxido de sódio, não leva aromatizantes, nem conservantes», como acontece com as azeitonas muito bonitas, reluzentes, que se vende na maioria dos locais.

«Para fidelizar o cliente, o nosso segredo é a qualidade. Só depois pensamos no preço. E às vezes, para conseguir um cliente, temos mesmo de sacrificar uns euros».

Apesar do muito caminho que já percorreu, Hélder Madeira afirma-se aberto ao futuro. «Estou aberto a desafios, quem quiser trabalhar com o meu produto, mesmo com a marca deles». Mas não fica parado, à espera. Também este empresário tem um protocolo com a Universidade do Algarve, cujos investigadores fizeram «um bilhete de identidade da azeitona maçanilha algarvia».

 

Olival está a reviver na serra algarvia

 

Mas não foi só com a sua empresa que Hélder Madeira criou emprego em Tavira. Porque só trabalha «com a azeitona lá do fundo do barranco», que, garante, «tem características e sabor como nenhuma outra», o empresário acabou por levar a que os proprietários dos olivais na serra voltassem a interessar-se por eles.

«No Algarve. só há quatro lagares a trabalhar. É a eles que eu vendo o excedente da minha fábrica, a azeitona que não aproveito para conserva», o mesmo que fazem os produtores.

Por assegurar a compra da produção de azeitona maçanilha, Hélder Madeira acabou por «inflacionar os preços da azeitona», com vantagens para os olivicultores. Muitos olivais que estavam abandonados voltaram a ser tratados e, garante, até já há gente jovem a voltar à terra, porque sabem que têm como escoar a sua produção.

«Há jovens que estão a começar a cuidar das oliveiras dos seus antepassados, como meio de subsistência. Isto é um bom indicador, porque as pessoas estão a voltar à terra, mas é também um mau indicador, porque significa que o fazem porque noutros sítios, como no litoral, já não há trabalho».

De qualquer modo, revela, «em Tavira e Alcoutim, aí pela serra, há 600 famílias a apanhar azeitona para mim». Ou seja, a sua unidade de transformação de azeitona garante a sobrevivência de um setor que já foi muito importante na economia do Algarve.

E afinal quanto produz, por ano? Como a sua produção depende sempre da qualidade da matéria prima, a produção da unidade de Helder Madeira pode ir das 30 toneladas de azeitona britada por ano, até mais de 100 toneladas. O seu mercado é o Algarve, distribuindo o produto quer diretamente, quer através dos seus parceiros distribuidores.

Quanto à questão da inovação e da diferenciação, Hélder Madeira tem ideias bem definidas sobre o tema: «sempre houve inovação e diferenciação, o meu percurso é exemplo disso. Mas agora é que está na moda falar-se disso».

E por falar em inovação: «agora há uma procura de novos sabores, de outros produtos. Isso faz com que tenhamos que estar sempre a adaptar-nos, para dar resposta a essas necessidades do mercado».

Por isso, voltando-se para o seu companheiro de conversa, o produtor de caracóis Sérgio Silva, Hélder Madeira desafia, bem humorado: «calhando terei de arranjar uma azeitona recheada de caracol». Será que está na calha um produto gourmet inovador?

A próxima Beta Talk, que colocará à conversa, a partilhar experiências, mais dois empresários inovadores, está já marcada para o próximo dia 16 de fevereiro, e terá lugar, como (quase) sempre, no espaço de café-concerto do Teatro Municipal de Portimão.

 

As fotos são de André Viana, Elias Bento e João Jesus, da escola etic_algarve.

 

 

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