Museu da Escravatura em Lagos: um navio que já não é negreiro

Foi recentemente anunciado pela Câmara Municipal de Lagos que o Museu da Escravatura será uma realidade num futuro próximo. Partindo […]

Foi recentemente anunciado pela Câmara Municipal de Lagos que o Museu da Escravatura será uma realidade num futuro próximo. Partindo de um protocolo de colaboração entre o município lacobrigense, o Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento (CEsA) e o Comité Português do Projeto UNESCO “A Rota do Escravo”, pretende-se erguer em Lagos aquele que será o 2º museu com estas características no mundo, uma vez que existe já um similar em Liverpool, no Reino Unido .

O projeto foi lançado com pompa e circunstância e a sua raiz nasce torta, permitindo-nos identificar a ausência de um projeto de política pública cultural de cidade, a ausência de envolvimento da comunidade e a ideia de que, mesmo em crise, havemos de arranjar fundos e tirar partido das “borlas” do costume, que entram neste projeto como o mais sombrio problema da valorização cultural no nosso país.

Uma ideia de que quando se trata de criação artística, a visibilidade garantida é pretexto para que se trabalhe de graça, uma vez que o projeto deste museu inclui a construção de propostas artísticas oferecidas por artistas convidados, assim como o projeto de arquitetura que segue o mesmo caminho.

Numa altura em que é necessário remontar o sistema de valorização da arte, e não existindo dinheiro para pagar projetos artísticos, a escolha de obras com base em convites parece-me a pior das soluções e aquela que menos contribui para o memorial ao escravo seja assimilado pela sociedade lacobrigense como um projeto comunitário.

O processo de participação pública que aqui ficou de lado é aquele que mais se encaixaria como solução e o que permitiria pensar políticas públicas em tempo de crise.

Um Museu não pode ser apenas um projeto de arquitetura, tem que ter uma visão social, científica e questionadora da própria morfologia da história, reequacionando factos, olhares e com isso a própria cidade.

No auditório onde decorreu a apresentação do projeto, foi possível constatar que mais uma vez se começa pelo fim, pensando primeiro o espaço e só depois os seus conteúdos. Percebeu-se claramente que não existe um projeto sólido de museologia, e foi possível presenciar autênticos orgasmos de uma arquitetura que pretende ser pública e que foi desenhada unilateralmente.

Quanto ao assunto da escravatura, não existem dúvidas de que em Lagos há condições únicas para sobre ele lançar o debate, quer pelas evidências históricas que, com mais ou menos branqueamento, nos chegaram até hoje, quer pela recente descoberta que pôs a nu um importante legado arqueológico que convém estudar e valorizar, criando condições para que possa ser compreendido e enquadrado no âmbito da política cultural da cidade, que anda à deriva.

A descoberta de um conjunto significativo de esqueletos de escravos durante as escavações que se fizeram no âmbito da construção do parque de estacionamento do anel verde em 2009, é um acontecimento que marca um momento em que a cidade se redescobre a si mesma, revelando o que esconde de um passado sombrio, onde a história se cruza com o sofrimento e o entrosamento cultural de raiz negra, moldado por interesses económicos, políticos e religiosos que reinaram durante esse período e que ainda hoje, infelizmente marcam a atualidade.

Ao analisarmos o legado que nos deixa esta descoberta arqueológica, tentando com isso descobrir a origem das culturas que por via deste flagelo aqui vieram parar, é necessário olhar um passado colonial e remontar a própria história.

Será importante começar esse processo não apenas estudando as ossadas e levantnado cientificamente os seus significados, como também percebendo a presença das comunidades imigrantes na nossa cidade, nomeadamente as Africanas, e a forma como a sua presença influi nas décadas mais recentes e poderá permitir construir pontes com os seus antepassados, não apenas articulando o velho discurso antropológico do olhar sobre o “outro”, mas antes fazendo uma radiografia da nossa sociedade, percebendo quais as suas particularidades e o impacto cultural destas culturas na cidade.

Importa, por isso, que qualquer leitura que se faça deste assunto tenha em conta não somente a investigação histórica, como também um conjunto de reflexões que levantem as diversas visões que deste assunto se possa ter, abrindo espaço a contribuições de dentro de diversos investigadores da comunidade académica e sociedade civil.

É da junção científica de várias áreas que poderemos iniciar um processo que permita à cidade se rever no Museu que aqui vai nascer.

Por último, é também necessário perceber que o tema da escravatura não é um assunto antigo, é uma realidade presente que se molda de outras capas, mas que mantém princípios ativos que se mantêm.

A visão do mundo atual, articulada no discurso de uma sociedade macro-económica, revela-nos que a memória é facilmente apagada e que ações hediondas que julgamos banidas se repetem, numa sociedade onde o valor humano parece sucumbir perante o Capital.

Esta discussão também poderá ser trazida para este espaço, porque é preciso falar ativamente dos lados mais sombrios do sistema capitalista que nos governa. Lembro-me neste seguimento do filme “Moloch” do realizador russo Alexander Sokurov, que em entrevista dizia que quis falar de Hitler para que não nos esqueçamos que ele existiu.

Ora é necessário que não nos esqueçamos que a escravatura existiu e sobretudo que ainda existe, e que todos estamos incluídos num navio global, que já não é negreiro e que abarca todas as cores.

 

Autor: Jorge Rocha é Artista e Produtor independente

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