Ser empreendedor é «um trabalho muito solitário»

Um pegou em salinas quase abandonadas em Castro Marim. O outro pegou na aldeia da Pedralva, em Vila do Bispo, […]

Um pegou em salinas quase abandonadas em Castro Marim. O outro pegou na aldeia da Pedralva, em Vila do Bispo, que era pouco mais que um amontoado de ruínas. Com imaginação, criatividade, perseverança e muito trabalho transformaram as salinas e a aldeia em negócios de sucesso.

Ambos são casos de empreendedorismo bem sucedido no Algarve e foram, a 16 de outubro, os convidados da quarta Beta Talk de Portimão, a primeira a ter lugar na Universidade do Algarve.

Eles são Jorge Raiado, fundador da Salmarim, que se dedica à produção de flor de sal, e António Ferreira, um dos promotores da Aldeia da Pedralva, um hotel diferente.

São dois empreendedores, cada um da sua ponta do Algarve, que se encontraram em Portimão para partilhar ideias entre si e, sobretudo, com as cerca de cinco dezenas de pessoas que quiseram participar nesta sessão, apesar de a essa mesma hora até jogar a seleção nacional de futebol. A conversa durou quase três horas e (quase) ninguém arredou pé até ao fim.

«Como é que sabe que uma ideia é boa? Como é que o medo fica para trás?» perguntou uma das participantes nesta conversa sobre empreendedorismo a Jorge Raiado. «Nunca sabemos, vivemos esse risco», respondeu o empresário.

António Ferreira iria daí a pouco acrescentar: «Uma paixão muito grande, é isso que faz um empreendedor». É que, explicou, «muita gente pensa, mas só alguns fazem. Isso é que é ser empreendedor, é o risco de quem vai à frente, é um trabalho muito solitário, a solidão de ser criador de alguma coisa».

Jorge Raiado, que foi guia turístico, estudou História de Arte e desde há alguns anos pegou nas salinas do sogro e as transformou num negócio rentável, usando uma dose qb de criatividade, recordou que «a memória que as pessoas tinham deste trabalho era de miséria». Mas isso é algo que está a mudar, lentamente, mesmo em Castro Marim.

«O que eu vendo não é sal, é Castro Marim e um produto que é fantástico, a nossa flor de sal», explicou o empresário. É que, disse, houve a necessidade de «criar mais valia no produto e na origem». No início fez como todos os outros produtores, e começou por vender o seu sal por atacado. Mas depressa compreendeu que não era aí que estava a mais valia. Enquanto um saco de 25 quilos sal marinho se vende por 25 euros, um saco de 20 quilos de flor de sal custa 100 euros.

 

Nichos de mercado e aliados

 

Ao longo dos anos, não tendo sequer medo de sujar os pés na lama das salinas – «nas primeiras vezes calcei botas, mas depois deixei-me disso» -, o negócio da Salmarim foi mudando e descobrindo novos nichos de mercado e novos aliados, com os cozinheiros (alguns com estrelas Michelin), as lojas gourmet em Portugal e no estrangeiro e a Universidade do Algarve em destaque.

Além da criatividade na busca desses nichos e desses aliados, Jorge Raiado falou ainda na criatividade necessária para vender melhor o produto, para lhe acrescentar brilho e mais valia que o torne apetecível aos olhos dos seus consumidores. E uma das apostas da sua empresa passou precisamente pelo trabalho com designers, de modo a desenvolver embalagens diferentes das normais para a flor de sal.

A maior parte dos produtores de flor de sal usam frascos de vidro, com tampa de cortiça. Mas isso, sublinhou o empresário, «oxida o que está lá dentro». E assim se chegou à embalagem em cartão, uma pequena caixa que mais parece de sabonetes ou produtos de cosmética que de flor de sal. «Havia pessoas que me diziam: com essa embalagem não se vê o produto. Mas quando compro um telemóvel não vejo o que está lá dentro, tenho que confiar no produto».

A seguir à bonita caixinha de cartão, o empresário pensou em aliar a sua flor de sal – que é seca e não húmida, como a francesa – a outro produto tipicamente português, a cortiça. E assim surgiu a embalagem em cortiça, que parece uma lata de chá mas feita neste material natural que tem a vantagem de «deixar o produto respirar» e de «absorver o excesso de humidade, mandando-a para o exterior».

«Andei quatro anos à procura da embalagem ideal, de qualquer coisa que respirasse e mantivesse a flor de sal em condições. E a cortiça respira!».

O chef Guram, um georgiano há anos radicado em Portugal e que tem um restaurante com cozinha de autor na Marina de Portimão, presente na Beta Talk, é um fã entusiasta da flor de sal da Salmarim. «É um sal leve, com qualidade, brilho», garantiu. «E esta embalagem de cortiça, além de ser bonita, é bem melhor do que plástico ou papel».

A nova caixa de cortiça foi lançada na loja «Vida Portuguesa», em Lisboa, com muito sucesso. «Foi o seu primeiro produto alimentar», acrescentou Jorge Raiado.

Foram lançadas 400 embalagens de cortiça no Natal passado e o empresário depressa se arrependeu por não ter lançado mais, porque se venderam todas. Este ano vai voltar a disponibilizar a sua flor de sal nestas caixinhas de cortiça, ao mesmo tempo que está a ser desenvolvida uma embalagem mais pequena, também em cortiça, «para que as pessoas possam mais facilmente transportá-la nas viagens de avião».

 

Colaboração com a Universidade do Algarve é importante

 

Outra vantagem de ter trocado o vidro pelo cartão e pela cortiça é o peso. A Salmarim vende grande parte da sua produção para clientes estrangeiros e exporta para sete países, nomeadamente a Bélgica, a Hungria, a Polónia, a Suécia («hoje saiu a primeira encomenda para a Suécia», disse). Por isso, o facto de a mesma quantidade de flor de sal, com a nova embalagem, ter passado de 600 gramas para 380 gramas é bem importante.

Jorge Raiado explica que os produtos que lança contam também com uma parceria com a Universidade do Algarve, nomeadamente com o seu laboratório de Engenharia Alimentar, na Penha. «Cada produto que lanço leva um ano a chegar ao mercado», diz, devido a tudo o que está envolvido, desde a qualidade e certificação, à embalagem.

Mas nem tudo sai da cabeça deste empreendedor: a empresa também «aceita desafios». Há tempos, contou aos restantes participantes da Beta Talk que o seguiam com evidente interesse, «desafiaram-me a fazer uma viagem na história do sal e a produzir pedras de sal para cozinhar em cima». Primeiro, pensou em usar o seu próprio sal marinho, mas depois de algumas experiências chegou à conclusão que o melhor era usar pedras das minas de sal-gema de Loulé. O produto acabou por ser lançado com muito sucesso no restaurante Tavares, em Lisboa.

Com tudo isto, não se pense que a empresa que Jorge Raiado fundou com a sua mulher tem grande dimensão. É uma empresa pequena, que só tem duas pessoas a trabalhar a tempo inteiro, durante todo o ano. Provando que as grandes ideias podem nascer em micro empresas.

 

Fugir à vida de máquina de lavar

 

António Ferreira era um publicitário de sucesso, a trabalhar numa das maiores agências de publicidade do país, em Lisboa, com uma carreira sólida apesar dos seus pouco mais de 30 anos. Mas um dia teve um inesperado problema de saúde, pouco comum em pessoas da sua idade, e resolveu tentar distrair-se de alguma forma. «Resolvi começar à procura de uma casa de férias».

Um amigo seu – que viria a ser seu sócio – já tinha comprado e recuperado uma casa na Pedralva, uma antiga povoação rural no interior do concelho de Vila do Bispo, na Costa Vicentina, agora em estado de quase total ruína, depois de ter sido abandonada pelos seus moradores. António foi lá e apaixonou-se. Mas não quis comprar apenas uma casa: quis comprar a aldeia toda.

O projeto de transformar a Pedralva num pequeno resort de turismo de natureza, um pouco em contraciclo com o que então era mais comum no Algarve, começou há seis anos, quando a aldeia tinha apenas nove habitantes. António despediu-se do seu bom, seguro e bem remunerado emprego em Lisboa, pegou na mulher e nos dois filhos, e foi viver para lá, «onde não tínhamos uma televisão a cores, só uma a preto e branco cheia de “chuva”, não havia sinal de telemóvel, nem internet».

«As casas não tinham placas a dizer vende-se», por isso, para as tentar comprar, António Ferreira dedicou-se a um trabalho detetivesco nas Finanças de Vila do Bispo. «Passei dois dias nas Finanças a reconstruir rua por rua, casa por casa, quem eram os proprietários de tudo aquilo. Levei depois quase dois anos nesta pesquisa, a negociar, a fazer as escrituras. Comprámos casas a um total de 200 pessoas. Havia escrituras com 27 pessoas de uma vez, 27 herdeiros da mesma casa. Imaginem o que foi negociar com todos eles e chegar a acordo».

 

Criar um produto “contra tudo” no Algarve

 

Mas a ideia era, salientou António Ferreira na Beta Talk@University, em Portimão, «criar um produto “contra tudo” no Algarve, que não passava pelo sol e praia». Uma afirmação que não é bem, bem verdade, uma vez que o sol e o mar são parte importante do projeto, embora numa perspetiva diferente, ou não fossem os surfistas um dos principais públicos-alvo da Aldeia da Pedralva.

E assim nasceu o conceito de “aldeia slow”. «Todos os dias recebemos turistas estrangeiros porque este é um produto diferente. A busca de inovação foi também algo que a publicidade me deu: “porque é que este produto é melhor que todos os outros?”. Se queremos ser empreendedores, temos que ter a capacidade de fazer produtos diferentes, com todos os riscos que isto tem», explicou.

E a Aldeia da Pedralva, que hoje já está recuperada e reconstruída, tentando manter o máximo do espírito da antiga aldeia de agricultores, funciona agora como um hotel diferente. «Em toda a Pedralva, só há um local, aí com uns dois metros quadrados, onde há sinal de telemóvel. E se quiserem lá pôr uma antena de telemóvel eu não deixo. Garanto que as pessoas até agradecem poder ali estar sem telemóvel durante uns dias».

A Aldeia da Pedralva manteve as ruas antigas e, tanto quanto possível, a traça exterior das casas. Muitos dos materiais das antigas casas foram reutilizados. E até a mercearia continua por lá, como uma espécie de loja de conveniência que os hóspedes agradecem.

Mas aí vai haver novidades e a Aldeia da Pedralva prepara-se para, mais uma vez, inovar: «a mercearia é um custo de marketing. Tirando os dois meses de Verão, não gera dinheiro para pagar a pessoa que lá está. Por isso, em breve vamos passar a dar a chave da mercearia aos hóspedes, juntamente com a chave da casa».

E não tem medo que alguém roube?

«Estaremos a oferecer confiança às pessoas. Mesmo que algum, maroto que seja, leve alguma coisa sem pagar, isso acabará por não ter significado. O que as pessoas vão dizer é: estive numa aldeia onde no check-in recebi a chave da casa e a da mercearia». Em termos de marketing, as ideias simples tendem a dar bons resultados.

Mas com projetos deste tipo, de turismo de aldeia, não se corre o risco de perder a «identidade do sítio», de tornar a Pedralva numa espécie de parque temático à Walt Disney? A pergunta surgiu do arquiteto Nuno Cruz, um dos participantes nesta Beta Talk.

António Ferreira, como bom publicitário que ainda é, não respondeu propriamente à questão, mas garantiu que não. E salientou o propósito de tornar a Pedralva «uma referência a nível europeu como projeto de turismo de natureza».

Falou ainda das feiras de artesanato que regularmente promovem nas ruas da aldeia, e que juntam tanto «a Dona Rosa com os seus bolos, como os punks de uma comunidade aqui próxima que vendem queijos de cabra deliciosos». Ou do acordo que têm com o Senhor Manuel, que é pescador à linha na costa, e que fornece aos hóspedes que assim o desejarem peixe fresquíssimo, o confeciona para eles e, muitas vezes, até fica para o almoço. «Procuramos integrar a comunidade no projeto», garantiu.

 

Sonhar sim, mas com ajuda de quem mantenha pés na terra

 

A Aldeia da Pedralva é um sonho tornado realidade, mas António Ferreira sublinha que ainda há muito trabalho a fazer, muitas ideias para concretizar. Uma delas é a criação de uma Quinta Pedagógica, «em que os miúdos serão responsabilizados pela alimentação dos burros ou poderão ajudar a cultivar a horta. Depois enviamos para casa deles as quatro batatas que eles plantaram na horta. Podem não ser exctamente aquelas batatas, mas para os miúdos isso terá um grande valor». Mais uma vez, a veia de publicidade e marketing de António Ferreira a vir ao de cima. Quem não gostará de receber, numa cidade da Holanda, uma caixinha com quatro batatas a lembrar o sol do Algarve e da Aldeia da Pedralva? Quem não quererá regressar a esse local onde até deixou um pouco de si semeado?

Por causa de toda a vertente de sonho que a Aldeia da Pedralva contém, o empresário salienta que «os projetos de empreendedorismo têm sempre uma componente emocional muito grande, mas há que ter também um lado mais prático. Há que chegar com ideias que são um bocadinho fora até alguém que está com os pés na terra. Isto tem um business plan, como qualquer outro negócio».

«A criatividade não está só na conceção do produto, mas também na sustentabilidade financeira dos projetos».

 

FRASES:

 

Jorge Raiado

«Ser empreendedor é estar todos os dias na corda bamba»

«Eu tenho um sonho engraçado e vou tentar pô-lo de pé»

«Todos os dias vou à salina, sei o que se passa, conheço mais ou menos um bocadinho de tudo»

 

 

António Ferreira:

«Vim para a Pedralva para fugir da vida de máquina de lavar, que tudo suga»

«Ser empreendedor é criar obra, criar um mundo nosso que acaba por ser de muitas mais pessoas»

«Ser empreendedor é fazer algo pelo nosso país»

«Às vezes as melhores ideias não precisam de muito dinheiro»

 

Nota: As fotos são de Etic_ Algarve: Rui Canelas.

 

Veja aqui mais fotos desta Beta Talk@university, no Campus de Portimão da Universidade do Algarve

 

 

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