Insosso

A crise actual, na sua dimensão mais gritante e preocupante, reside não nos nossos bolsos colectivos, mas na nossa cabeça, […]

A crise actual, na sua dimensão mais gritante e preocupante, reside não nos nossos bolsos colectivos, mas na nossa cabeça, enquanto sociedade.

O Algarve, promessa de Paraíso terreno no tempo das vacas ilusoriamente gordas, baluarte do “progresso” e “desenvolvimento”, modelo de solidez económica, e outras patranhas que tais, com meia dúzia de abanões ruiu.

Ruindo a máscara dourada, revelou toda a sua fragilidade, mercê da aposta na monocultura do turismo, e dentro dessa, noutra monocultura, alimentada a especulação imobiliária e betão. Pelo meio ficaram uns relvados e uns palmeirais. O escaravelho agradece.

Ficou, em lugar dessa utopia, a região recordista do desemprego, a região com um dos tecidos produtivos mais frágeis, a região com um dos tecidos empresariais mais débeis.

Afinal, o magnânime desígnio regional de converter todos os algarvios e algarvias em empregados/as de mesa, camareiros/as de hotel e cortadores/as de relva, embora se tratem de profissões tão nobres como quaisquer outras, deu francamente para o torto!

Mergulhados neste drama social (é de pessoas que falamos, não restem dúvidas), houvesse ponta de dignidade e respeito, alguém teria que ser chamado à responsabilidade, por ter permitido, e muitas vezes incentivado, que se chegasse a este desequilíbrio. Não que haja inocentes no processo, já que, enquanto parecia que havia dinheiro, quase todos foram, estilo pateta alegre, atrás dos castelos no ar.

Alguns tentavam alertar para os perigos em que se incorria, e que era preciso ter alguma espécie de plano B, que convinha produzir qualquer coisita… enfim, eram tolos, eram fundamentalistas, não tinham visão. Formiga e a Cigarra, “Allgarve style”.

Já António Vieira alertava, que a cegueira que cega cerrando os olhos não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas.

Mas pronto, é Portugal, e tudo acontece por acaso, ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém sabe de nada, nem como nem porquê, ninguém é responsável. Para a frente é que é caminho, e o que lá vai, lá vai.

E, com recurso a esta torpe postura, o que nos meteu nesta alhada por aí continua.

Vai daí, este modelo oco vai continuando a fazer estragos, ou pelo menos tenta.

Agora na linha de fogo está a Lagoa dos Salgados, uma das mais importantes zonas húmidas do litoral algarvio, e um dos seus poucos troços não betonados, onde, para além dos diversos valores ecológicos presentes, nomeadamente ao nível dos habitats e avifauna, ocorrem processos biofísicos fundamentais ao equilíbrio desta zona.

Não merece o Algarve ter algumas zonas de qualidade, minimamente equilibradas e valiosas em termos ecológicos, sem mamarrachos e atentados?

Internacionalmente é uma zona de reconhecido valor, que anualmente atrai à região inúmeros visitantes. Não será este um turismo de acarinhar e preservar?

E em nome de quê, alguém consegue adivinhar?

Mais construção, mais betão, mais empreendimentos turísticos e afins! E, claro está, em estilo mega, de grande escala, tudo à grande que aqui não há misérias, “estruturante”, “alavanca de futuro”, milhares e milhares de empregos, a juntar a todos os outros que estão actual, triste e infelizmente à porta do Instituto de Emprego e Formação Profissional, de senha na mão!

Não, ninguém leva prémio porque a resposta era demasiado previsível…

E, para os cépticos (porque os há), que pensam logo “mas como é que isto pode ser, quando temos milhentos empreendimentos às moscas, e a fechar no Inverno, porque não há negócio, e a dispensar os empregados?”, acreditem que era só mesmo este que faltava! Este é que vai salvar tudo, e colocar um Ferrari à porta de todos os algarvios e algarvias!

Ou não.

Querem dar à Lagoa dos Salgados o mesmo tom insosso de tudo o resto.

Querem esbulhar o nosso património natural a troco de sonhos vazios, de investimentos sem retorno, de interesses localizados.

Tudo tem a cabeça a prémio nesta caricatura de País. Tudo, menos aquilo que devia ter: o modelo que nos trouxe até aqui, e com o qual os seus vendedores de banha da cobra nos continuam a acenar, prometendo que desta é que é, que agora sim, arrancamos em direcção ao El Dorado.

Quando se fala de melhorar a competitividade, encontrar novos rumos para a economia, diversificar as fontes de rendimento, temos mais do mesmo, quando o que precisamos é de mais, melhor e diferente.

Não há maneira de nos fartarmos?

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista

(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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