O comboio chegou a Lagos há 90 anos: as dificuldades da construção do ramal

Em 1903, depois de o comboio já chegar a Faro ou Vila Real de Santo António há anos, a locomotiva ainda só tinha chegado à margem esquerda do Arade, à estação de Ferragudo/Parchal

A 30 de Julho de 1922, os lacobrigenses festejaram solenemente a inauguração do troço do caminho-de-ferro entre Vila Nova de Portimão a Lagos.

O acontecimento era merecedor de tal entusiasmo. Faro e o Algarve central passaram a usufruir de tão importante melhoramento a 1 de Julho de 1889, Vila Real de Santo António desde Abril de 1906 e, já antes, em 1903, a locomotiva chegara (quase) a Portimão, ou melhor, a Ferragudo/Parchal.

Mas os lacobrigenses nunca baixaram os braços perante uma luta nem sempre fácil e com sucessivas adversidades.

Escassos dois meses após a inauguração da Linha do Sul, realizou-se em Lagos, a 1 de Setembro de 1889, uma reunião “de todas as classes da sociedade”, bem como de representantes dos concelhos de Vila do Bispo, Aljezur e Odemira.

Esta reunião tinha como objetivo formar “uma grande comissão” e com ela dirigir uma representação conjunta daquelas autarquias ao governo, para a construção de um porto de abrigo em Lagos, e de um caminho-de-ferro desta cidade a Odemira, a ligar à linha férrea do Sul na zona de Garvão.

A comissão ficou presidida por Jacintho Inágcio de Brito Rebello, e a representação baseava-se fundamentalmente em dados estatísticos, com os quais se pretendia justificar a rentabilidade daquela linha.

 

Na exposição lembravam os subscritores o erro cometido “no traçado do caminho-de-ferro do sul, que desde Beja até S. Bartholomeu de Messines, deixou de se aproximar dos pontos mais importantes, para atravessar quasi um deserto”, para depois referirem “ainda que se construísse um caminho de S. Bartholomeu a Lagos era indispensável fazê-lo curvar para o sul até Odemira”.

Em termos de habitantes e na totalidade dos três concelhos residiam cerca de 42 mil pessoas. Quanto a exportações, Lagos apresentava-se como um grande centro piscatório e conserveiro, a que se seguia a exportação de figo seco, vinho, aguardente, amêndoa e ainda alfarroba e ovos.

Por sua vez, Vila do Bispo produzia essencialmente cereais, legumes, gados e também alguma cal, que entretanto começara ali a fabricar-se. Aljezur esmerava-se nos cereais, legumes, arroz branco, bem como, melões e melancias.

A finalizar Odemira exportava cortiça, cera e mel,mas também gados. Sendo ainda que todos eles eram “ricos de veeiros de ferro, manganez e outros mineraes, uns suspeitados e outros em pesquiza”. O que é certo é que a representação assaz fundamentada não surtiu efeito e caminho-de-ferro nada.

 

As promessas de D. Carlos

Em Outubro de 1897, em visita oficial ao Algarve, o rei D. Carlos prometeu no jantar de gala em Faro, entre vários melhoramentos, que “recomendaria com especial interesse ao Governo a construção dos ramais de caminho de ferro de Faro a Vila Real de Santo António, por Olhão e Tavira, e Faro a Lagos”, conforme relatou o jornal “O Século” de então.

Três dias depois, em Lagos, na receção que lhe foi feita, o monarca repetiu a promessa elencada.

Na verdade a 10 de Outubro de 1899 o comboio chegava a Algoz, para a 19 de Março do ano seguinte atingir Poço Barreto, e Silves a 1 de Fevereiro de 1902. A locomotiva desbravava caminho com alguma brevidade, em direção a Barlavento, mas mais uma vez as pretensões de Lagos não foram atendidas.

Ambicionavam os lacobrigenses, juntamente com os silvenses, que a estação de Silves se localizasse junto a esta cidade, pois desta forma o atravessamento do rio Arade seria muito fácil, o que permitiria que a linha fosse construída com mais celeridade até Lagos.

Mas, em Março de 1899, esta hipótese foi irreversivelmente abandonada. A Câmara de Silves, ao ter conhecimento do projeto, lançou em ata “um voto de sentimento e ao mesmo tempo de protesto”, contra a “errada directriz que se está dando ao ramal de caminho de ferro de Tunis a Lagos”, para depois concluir que “um melhoramento de há tanto tempo reclamado seja annullado, por circunstâncias tão extraordinárias”.

A estação da cidade ficava a localizar-se dois quilómetros a sul, “oculta por uma colina e com uma péssima e acidentada communicação com ella”. O traçado em projeto dirigia-se assim a Estombar e Ferragudo, onde a transposição do rio só seria possível através de uma ponte de consideráveis dimensões.

A 15 de Fevereiro de 1903, o comboio chegava a Parchal/Ferragudo, estação terminal que passou a ostentar o topónimo de “Portimão”, ficando assim concluído o ramal do mesmo nome.

Lagos perdia mais uma batalha, mas não a guerra. Importa referir que, a 17 de Setembro de 1883, fora publicado um decreto que determinava o início de construção do ramal de Portimão, mas a concessão que o governo atribuiu caducou sem que nada fosse feito.

Nos anos seguintes e apesar dos sucessivos esforços da Câmara de Lagos, pouco ou nada foi realizado. Somente a partir de 1909 as obras desenvolveram-se com alguma atividade, mesmo assim foram muitas vezes interrompidas e outras tantas recomeçadas.

 

Mais um fôlego com a República

 

 

Com o advento da República, a Câmara de Lagos propõe-se construir o ramal, contraindo para o efeito um empréstimo no valor de 500 contos. Este seria caucionado com o imposto da barra que a Câmara cobraria. A proposta foi autorizada pelo Parlamento em Julho de 1912, e nela participou ativamente um filho da terra, o Senador Alberto da Silveira.

A sua intervenção neste processo, bem como em outros, motivaram um agradecimento público daquela Câmara, lavrado em ata em 17 de Julho de 1912.

Pouco depois têm lugar as primeiras obras de assentamento da linha. Mas o empréstimo não foi suficiente para as obras, regressando estas, mais tarde, de novo ao Estado, bem como o imposto da barra.

Em 1915, tem início a construção da “magnífica” ponte sobre o Arade, em Portimão, com seis tramos de vigas parabólicas, assentes em pilares de cantaria, numa extensão de 303 metros (a maior da ferrovia no Algarve).

A parte metálica ficou a cargo da Companhia União Metalúrgica, enquanto as fundações feitas em cimento armado eram da responsabilidade da casa Moreira de Sá Malevez.

Também em 1915 e no âmbito do 1º Congresso Regional Algarvio, que decorreu na Praia da Rocha, Vasconcellos Corrêa defendeu, na comunicação “Caminhos de Ferro do Algarve”, não só “maior actividade nos respectivos trabalhos de construção” no ramal de Portimão a Lagos, como a construção de uma outra linha secundária, que ligasse esta última cidade a Vila do Bispo, Aljezur, Odeceixe, São Teotónio e Odemira, “ligando talvez com Sines”.

Refira-se que, para o porto de Sines, estava prevista a construção de uma outra linha, desde 1898. Em suma, seria um retomar dos objetivos da representação de 1889, que nunca chegou, como se sabe, a concretizar-se.

 

Finalmente em Lagos

 

 

Entretanto, foram edificadas as estações de Portimão (atual), Montes de Alvor, Mexilhoeira Grande, Odiáxere e Lagos, tendo esta última sido considerada “uma das melhores e de mais luxo do país”. Simultaneamente edificaram-se várias obras de arte, metálicas (Vale de Lama, Torre, entre outras) e uma de betão armado (Farelo).

A 22 de Junho de 1922, pelas 18h00, chegou à estação de Lagos a primeira locomotiva, rebocando um comboio de serviço, com cerca de 500 trabalhadores da via e obras. Estes comboios circulavam já na nova linha, mas este foi o primeiro que se aproximou da cidade.

O jornal “O Século”, de 26 de Junho, registou o momento: “este facto encheu de júbilo o povo d’esta cidade, que se acumulava na «gare» e se manifestou alegremente, rompendo n’uma grande salva de palmas e vivas e fazendo subir ao ar muitos foguetes”.

Para corolário do acontecimento foi distribuído aos operários “pão, vinho e conservas, por oferta da Câmara Municipal, do comércio e indústria locaes”, e aos engenheiros que os acompanhavam “um delicado copo de água, erguendo-se entusiásticos vivas, ao Champagne”.

A linha estava concluída, ficavam agora a faltar os pequenos detalhes.

A Câmara de Lagos cumpria um objetivo há muito traçado, e na verdade a autarquia foi incansável nas diligências para a construção da linha, com particular destaque para os mandatos em que fora vice-presidente e também presidente, Vítor da Costa e Silva.

A inauguração foi então agendada para 23 de Julho, aguardando-se este dia “com nervosa ansiedade (…) ao cabo de tantos anos de repetidas promessas sofridos com inigualável paciência, vae enfim tornar-se realidade”, noticiava o periódico farense “Correio do Sul”.

Porém a data seria ainda protelada, para uma semana depois, “quais novas obras de Santa Engrácia”, conforme proclamava a imprensa. Trinta e três anos depois da inauguração do caminho de ferro do Sul, o comboio chegava finalmente a Lagos.

Naquele domingo, 30 de Julho de 1922, o dia amanheceu festivo, a cidade aguardava a presença de altos magistrados da Nação e engalanara-se sobremaneira para o efeito. Pouco passava das 11h40 da manhã, quando se avistou um “rolo de fumo, ao longe, um silvo de apito atroando os ares”, que se aproximava, cada vez mais… o comboio inaugural chegava.

(Continua)

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional

 

 

 



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