O comboio chegou a Lagos faz hoje 90 anos

À 1h00 da madrugada de 30 de Julho, saiu de Lisboa um vapor de ligação ao comboio inaugural, que partiu do Barreiro em viagem direta para Lagos

A inauguração do caminho de ferro de Portimão a Lagos aconteceu a 30 de julho de 1922, faz hoje precisamente 90 anos. Foi um verdadeiro momento de júbilo para as populações servidas pela nova linha e foi cuidadosamente organizada pelos lacobrigenses.

O brio com que preparavam a festa terá mesmo servido de arremesso pelo periódico “O Portimonense”, para com a Câmara de Portimão. Lembrava aquele jornal que até ali aquela vila se servia de uma estação “situada fora do concelho e a considerável distância”, localização agora corrigida pela construção de gare própria no novo ramal. Assim, dizia “O Portimonense”, “justo é, nos parece que naquele dia a Câmara de Portimão se manifeste também festejando-o e contribuindo para um maior relevo a este acontecimento”.

Na verdade, em Lagos não houve um dia de inauguração, mas sim três dias festivos, em honra do melhoramento. Em finais de junho, deslocou-se a Lisboa o presidente da Câmara, com o objetivo de convidar, para aquele momento solene, o chefe de Governo e alguns ministros. Aprazada para 23 de julho, a inauguração acabou por ser adiada uma semana, ocorrendo a 30 de julho de 1922.

 

Na noite de 28 de julho dirigiu-se para o Algarve, afim de participar nos festejos, o ministro do Comércio, Eng. Lima Bastos. A sua viagem antecipada prendeu-se com uma visita que pretendia realizar a diversas localidades da região (Loulé, S. Brás, Monchique, etc.), bem como às escolas comerciais e industriais de Faro e Silves.

Na mesma noite viajaram para Lagos, a convite da Comissão de Festas, o grupo dramático Herculano Marinho, o “Foot-Ball Club Barreirense” e a Banda da Sociedade de Instrução e Recreio do Barreiro, bem como muitos barreirenses.

Na manhã seguinte, pouco depois das 10h00, a banda filarmónica percorreu as ruas de Lagos e com ela principiavam as comemorações.

Pelas 12h00, foi distribuído, na tesouraria da Câmara Municipal, um bodo a cerca de 400 pobres. Seguiu-se um concerto na praça da República, finalizando o dia com um novo concerto e por uma récita pelo grupo dramático no Cine-Teatro Ideal. Toda a cidade estava em festa, vendo-se, de acordo com o “Diário de Notícias”, “as ruas e os edifícios públicos e muitos particulares embandeirados”.

 

O primeiro comboio de Barreiro a Lagos

 

Eng. António Maria da Silva

À 1h00 da madrugada de 30 de julho, saiu de Lisboa um vapor de ligação ao comboio inaugural, que partindo do Barreiro em viagem direta para Lagos transportava o presidente do Ministério Eng. António Maria da Silva, ministro do Trabalho Dr. Vasco Borges, secretários, diretor dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste, capitão Plínio Silva, engenheiros, representantes da imprensa, a banda da Sociedade Democrática União Barreirense, entre outros convidados.

O dia amanheceu em Lagos com uma arruada da banda de música e com salvas de morteiros. Para o jornal “O Século”, a população vivia “horas d’um entusiasmo delirante, chegando a todo o momento forasteiros”.

O comboio especial era aguardado por volta das 11h40, e a essa hora, apesar do intenso calor que se sentia, a estação encontrava-se repleta, populares, entidades oficiais, associações de classe, força de infantaria, mais de dez mil pessoas, na estimativa de “O Século”.

Após uma viagem sem qualquer incidente, e uma breve paragem em Portimão, onde subiram os deputados da região, ministro do Comércio e governador civil, o comboio prosseguiu, agora no novo ramal.

As estações do percurso encontravam-se embandeiradas, repletas de povo, e com bandas de música, tendo a composição ministerial entrado nas agulhas em Lagos à tabela.

Nesse exato momento e de acordo com o “Correio do Sul”, subiram ao ar “inúmeros foguetes, anunciando à cidade a chegada do primeiro comboio”, simultaneamente ecoou nos ares uma sonora salva de palmas, misturada com vivas à República.

Depois dos cumprimentos oficiais organizou-se um vasto cortejo, onde se incorporaram ministros, Câmara Municipal com estandarte, pessoas de representação, banda de música e muito povo, dirigindo-se para a Câmara Municipal, onde teve lugar a sessão solene. A guarda de honra junto dos Paços do Concelho foi feita por uma companhia de infantaria 33, com banda.

A sessão foi presidida pelo chefe de Governo, secretariado pelos ministros já referidos. Os discursos principiaram pelo general Correia, presidente do Senado Municipal e também da Comissão das festas de inauguração, o qual elogiou todos os que contribuíram para a concretização daquela velha aspiração, a que se seguiu o presidente da Comissão Administrativa da Câmara, referindo que “Lagos já não é esquecida, sendo porém necessário não esquecer também os operários que agora ficam sem trabalho e a braços com um péssimo ano agrícola, pelo que é preciso abrir novos trabalhos públicos”.

 

Testes de carga na Ponte da Torre

 

Falaram ainda vários parlamentares e outras figuras de relevo local, sucedendo-se o ministro do Comércio e o chefe de Governo. Este último afirmou, segundo o DN, “ser necessário, na hora difícil que se atravessa, restabelecer a ordem na rua, nos quartéis e nos espíritos, sendo réus criminosos de lesa Pátria todos os que agora façam revoluções ou provoquem desordens. É preciso – disse – abater todas as bandeiras partidárias e levantá-las irmanadas no interesse comum da Pátria”, palavras coroadas com muitos vivas e palmas da assistência. De seguida foi lido e assinado por todos o Auto de Inauguração do novo ramal, sendo também enviado ao chefe de Estado um telegrama de saudação em nome da Câmara de Lagos.

Cerca das 14h00 teve lugar, na sala do Tribunal, um banquete oferecido pela Câmara aos convidados. A sala encontrava-se ricamente ornamentada com colchas de damasco, repetindo-se durante o repasto novos discursos.

Findo o almoço, a comitiva ministerial visitou uma exposição de trabalhos dos alunos da Escola Industrial, na sala “Vitorino Damásio”, onde constavam rendas, pinturas e outros trabalhos domésticos. A qualidade dos artigos expostos valeu ao diretor da escola, o pintor Falcão Trigoso, vários elogios, prometendo o ministro do Comércio dotar a escola com três mil escudos.

Após uma breve passagem pela capela de Santo António, “um dos estabelecimentos religiosos do paiz mais interessante pelo importante trabalho de talha e pintura a óleo”, os insignes excursionistas deram um passeio pela baía de Lagos, em duas canhoeiras (“Lidador” e “Quanza”).

 

Um jogo de “foot-ball”

 

Comboio partindo de Lagos

Nessa tarde teve ainda lugar, no campo da Trindade, um desafio de “foot-ball” entre o Club Barreirense e um grupo misto de jogadores de Lagos Primeiro, tendo ganho os visitantes por 5 a 0. Ocorreu também “uma matinée de gala no Cine-Teatro”.

Lagos fervilhava de gente. De manhã, pouco depois de estacionar o comboio inaugural, chegou um outro, composto de 25 carruagens “apinhadas de gente”. Pessoas que ali se deslocavam propositadamente para assistirem às comemorações, enquanto muitas outras ficaram retidas nas estações do percurso, por o comboio não comportar mais passageiros.

Essa multidão, segundo o “Correio do Sul”, invadiu em Lagos o “conhecido Hotel Miquelina, todas as pensões e hospedarias e as praias da baía, onde, à sombra das rochas se viam inúmeros farnéis, devorados por dentes cheios de apetite e alegrias”.

À noite, a cidade “conservou-se embandeirada e iluminada por milhares de balões, realizando-se concertos na praça Gil Eanes e da República, queimando-se um lindo fogo de Viana do Castelo”.

Apesar das entidades ministeriais partirem ainda nessa noite para Lisboa, o dia seguinte foi igualmente festivo. Pela manhã, houve alvorada com morteiros e arruada por uma banda de música. A exposição na Escola Industrial esteve de novo patente ao público e a partir das 14h00 repetiram-se as regatas na baía, bem como um novo jogo de futebol entre o Club Barreirense e o grupo misto de Lagos, abrilhantado pela banda da Sociedade e Instrução do Barreiro.

A finalizar as comemorações, cerca das 21h30, teve lugar um concerto pela mesma banda e recita pelo grupo de teatro “Lealdade” do Barreiro, no Cine-Teatro Ideal, durando os festejos até às 2 horas da madrugada.

 

Projeto concretizado 33 anos depois

 

Trinta e três anos depois de alvitrada a ideia de construção de uma linha de caminho de ferro até Lagos, esta era finalmente concretizada, e constituía, na opinião do jornal “O Século”, “um pitoresco encantador, atravessando campos verdejantes e floridos, quase sempre marginando o mar.” Para depois concluir “um ramal de luxo, linha de turismo, como já lhe chamam”.

O principal fator da valorização e progresso, que então constituía o comboio, chegava finalmente a Lagos. Afinal o concelho, com cerca de 18 000 habitantes, “d’indústria de pesca e conservas desenvolvidíssima, um movimento comercial exportador apreciável em frutos secos e possuindo uma bela região agrícola, das mais produtoras de cereaes”, não podia continuar a suportar durante mais tempo “o enorme prejuízo que era a falta de comunicações ferroviárias”.

A conquista de tão importante melhoramento não foi tarefa fácil, mas os lacobrigenses conseguiram-no e festejaram-no sobremaneira. Quanto a Portimão, não noticiou a imprensa os festejos ali ocorridos, se é que os houve.

Vencida uma árdua batalha logo o presidente da Câmara se predispôs a levar a efeito as obras do porto, e a valorização da Meia Praia.

Sobre esta última, profetizou a “Ilustração Portugueza”, “servida por uma projectada avenida e pela via-férrea virá a ser uma das mais deliciosas estâncias do Algarve, cujo futuro se antevê brilhante de progresso e prosperidade.”

Mas estas eram outras ambições, outros objetivos, por agora os lacobrigenses usufruíam finalmente do caminho-de-ferro.

 

Uma nova estação e a antiga fechada

 

 

Depois de décadas de serviço, em agosto de 2006 foi inaugurada a nova estação de Lagos, alguns metros mais a sul do edifício que abriu em 1922. A nova estação, moderna e espaçosa, é uma das mais modernas do país. A deslocalização dos serviços ferroviários deu-se com o propósito de aproveitar a zona onde se encontravam as antigas infraestruturas, para a construção de vários edifícios comerciais e residenciais, ligados à Marina de Lagos, logo ali ao lado.

O antigo edifício, apesar de já não ter carris aos pés, ainda lá continua, fechado mas em lenta degradação, apesar dos avisos colocados nas suas paredes. Vidros partidos, ferrugem, o relógio vandalizado, alguns grafitti “decoram” as paredes. Um triste fim para um edifício que é a marca de um período de grande crescimento económico da cidade de Lagos.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional

Nota: Algumas das fotos antigas pertencem à Fototeca de Lagos

Leia aqui o primeiro artigo sobre a construção do Ramal de Lagos.

 

 



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