“Fogo Amigo”

Nestes últimos dias temos assistido na Serra do Caldeirão, passe o belicismo, a um autêntico “fogo amigo”. Neste caso, pelos […]

Nestes últimos dias temos assistido na Serra do Caldeirão, passe o belicismo, a um autêntico “fogo amigo”. Neste caso, pelos tiros nos pés que damos.

Para melhor compreender isto, importa ver na catástrofe, sob forma de mar de chamas, que se abateu sobre o território serrano de Tavira e São Brás de Alportel, para além dum mal em si mesmo, um dramático conjunto de sintomas.

Sintomas de abandono do interior e de esvaziamento da paisagem. Sintomas de erros passados, presentes e futuros, de um mal profundo.

Esqueçamos o “papão” do fogo posto, a muito pior negligência ou o desordenamento do território que faz proliferar casas isoladas que devem ser defendidas, em detrimento de uma estratégia de combate a incêndios. Deixemos até, por agora, a aparentemente caótica gestão que se faz dos meios de combate aos incêndios, onde os centros de decisão são figuras distantes, e os agentes locais (autarcas, comandantes de corporações) são condicionados na sua acção. Se estou enganado, agradeço que me expliquem.

A montante de tudo isso há o modelo de gestão da paisagem.

O fogo, na paisagem mediterrânica, faz parte da dinâmica dos ecossistemas. No entanto, na nossa ancestral tradição de humanização da paisagem, de povoamento intenso e de profunda e diversa exploração dos recursos, associada ao trabalhar da terra ao longo de todo o ano, o fogo sempre foi sendo dominado.

Desde que se iniciaram os grandes êxodos rurais, esvaziando de população o interior do País, foi desaparecendo a primeira linha de detecção de fogos (pessoas), a primeira linha de intervenção, logo após a deflagração (pessoas), bem como os mecanismos de gestão de combustível acumulado no terreno (pessoas).

Esta presença de pessoas não se promove com resorts, ao estilo de delicatessen territoriais, ou monoculturas florestais.

A mata de uso múltiplo, associada às espécies vegetais autóctones, constitui o modelo mais equilibrado de exploração da paisagem florestal. Necessita de maior investimento, certo. Demora mais tempo, certo. Mas gera fontes de rendimento diversificadas (madeira, cortiça, apicultura, cogumelos, sub-produtos de espécies arbustivas, turismo, etc.), e distribuídas ao longo do ano. E vive de… pessoas!

Numa altura em que as teorias económicas associadas a “vacas sagradas” sistematicamente ruem como castelos no ar que são, importa regressar a modelos mais diversificados.

Para que tal aconteça, a gestão territorial deve apostar nesse sentido, com ferramentas de ordenamento que, em vez de simples mapas de edificação, contenham ideias e propostas operacionais para as áreas rurais, em vez de as esquecer. A manutenção de equipamentos colectivos nessas áreas (centros de saúde, serviços administrativos, etc.), em vez de os eliminar também pode ajudar…

O que não ajuda certamente é a autorização de arborizar parcelas até 5 ha e rearborizar até 10 ha, com qualquer espécie, sem qualquer necessidade de autorização. Quer nasça de simples e cândida estupidez ou de cupidez profunda, o efeito prático, num país onde o cadastro florestal, quando se conhece, se caracteriza por pequenas parcelas, é carta-branca para eucaliptar Portugal de alto a baixo!

Esperemos que, na ressaca da tragédia dos últimos dias, não apareçam amigos da onça, estendendo mãos de Judas, que convertam os sobreirais queimados em eucaliptais…

Isto porque o eucalipto não apenas é uma espécie exótica altamente combustível, mas é também a versão fast-food da economia florestal, e tem basicamente os mesmos efeitos: engorda rapidamente (consumindo recursos) e degrada a saúde do sistema (empobrecendo o solo).

Mas é a mascote do poderoso lobby da celulose, responsável pela existência dos proprietários florestais remotos que, dada a natureza dos trabalhos inerentes a esta exploração, frequentemente nem conhecem as suas terras e, desde que pinguem os proventos numa qualquer conta acessível através de home banking, lhes são indiferentes.

A celulose é uma fileira importante, sem dúvida. Mas não pode ser o sacrossanto produto do nosso tecido florestal. E muito menos se pode aceitar a desumanização do nosso interior em seu nome.

Enquanto só nos lembrarmos de Santa Bárbara quando há trovoada, o nosso interior continuará a ser pasto para chamas, colocando em risco a vida de pessoas e os seus bens, destruindo a sua integridade ecológica e o seu potencial produtivo.

 

P.S. – as corporações de Bombeiros são instituições recheadas de heróis e heroínas, num País que prefere endeusar pontapeadores de bola. À sua volta, e para seu prejuízo, tudo falta e tudo falha. Menos a sua coragem e o seu altruísmo. Obrigado.

P.S. 2 – a tragédia deste incêndio trouxe ao de cima o melhor de nós: a onda de solidariedade e de apoio aos Bombeiros e às pessoas afectadas pelas chamas, promovida pela sociedade civil, bem como a presença incansável dos autarcas no terreno, é a prova da nobreza que, quando queremos, somos capazes de demonstrar.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista

(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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