Amnésia

A paisagem de um País é a expressão actual do seu passado. É o fruto de uma construção humana, mais […]

A paisagem de um País é a expressão actual do seu passado.

É o fruto de uma construção humana, mais ou menos consciente, na qual diversos factores, em complexas relações de interacção e complementaridade, se conjugam.

É o rosto do nosso percurso evolutivo, desde a primeira interacção dos nossos antepassados com os recursos deste planeta até aos dias de hoje.

A componente ambiental deste processo que é a paisagem é de primordial importância. O meio onde nos inserimos é o molde que determina de forma incontornável, pela disponibilidade de recursos e valores, a forma como a eles nos adaptamos, na nossa ocupação e exploração dos territórios.

Esculpindo, sobre essa matriz amorfa, a nossa expressão, criamos a obra que é a paisagem.

A outra componente fundamental desta criação é a cultura. Cultura no seu sentido lato, enquanto conjunto que abarca os códigos de uma determinada sociedade, construídos ao longo do tempo e expressos nas suas leis, na sua moral, nas suas tradições e valores, nas suas crenças, na sua moral e na arte.

A paisagem da memória.

Não há pobreza maior do que a pobreza de espírito. A actual crise, também ela resultante da acumulação de erros colossais no passado (pelo que ninguém, por mais verdinho ou senil que esteja, se pode agora isentar das responsabilidades que teve no processo), parece conduzir-nos para essa miserável condição.

O circo montado em torno dos feriados, enquanto factor decisivo para a competitividade nacional (não seria mais relevante tratar o absentismo na Assembleia da República, por exemplo?), para além de ridículo e completamente ineficaz, é danoso.

Discutir feriados religiosos, é questão do foro dos crentes de determinada fé. Discutir feriados de natureza ideológica, como o 5 de Outubro (até pela história vergonhosa da implantação da República), aceita-se, no limite, justamente por se tratar de ideologia. Só não se compreende porque não foi alargada esta discussão a outros feriados, também eles ideológicos.

No caso do 1º de Dezembro, a sua supressão representa um atentado contra a soberania. A Restauração da Independência não é questão ideológica, é questão de identidade nacional. Representa a celebração de um acto cívico (talvez por isso o abominem tanto) que levou ao fim de um período negro na nossa história, cuja factura ainda hoje pagamos. É o verdadeiro dia de Portugal.

Atacá-lo é atacar uma data com quase 400 anos de história. Quantas das forças externas que supostamente nos “obrigam” a este atentado, têm sequer esta idade? Irónico, não?

Atacar esta data é também mais um passo para a conclusão de uma tendência atroz, já anteriormente demonstrada, de sub-reptício ataque aos símbolos nacionais. Abandonadas as fronteiras, a moeda e até a Língua, resta saber até quando teremos bandeira.

Com toda esta perversão, perde-se a essência do País, o seu carácter, e também a sua capacidade de realização e de afirmação. Somos uma sociedade de símbolos, comentava uma amiga há dias. A destruição destes símbolos, que nos servem de organização, destrói a nossa unidade, a nossa capacidade de canalizar esforços para um determinado objectivo comum, como, por exemplo, o da recuperação económica do País.

Destruímos a paisagem da nossa memória, tal como destruímos as nossas paisagens materiais. Abdicamos de todos os nossos recursos, em estúpida auto-condenação.

E sempre com a impunidade dos responsáveis. Não dá para expressar a revolta e o nojo de tudo isto.

País amnésico não tem futuro, pois está condenado a repetir perpetuamente os erros do passado.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista

(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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