A última viagem de comboio da Funcheira a Beja

Nas últimas décadas, tem constituído política nacional o encerramento de linhas de caminho de ferro. Os anos de 1989 e […]

Nas últimas décadas, tem constituído política nacional o encerramento de linhas de caminho de ferro. Os anos de 1989 e 1990 eram, até agora, os anos negros da ferrovia portuguesa, mas eis que 2011 e 2012 trouxe de novo o fim, não só de ramais, mas também de linhas principais, como a de Leste, ou o troço entre Beja e Funcheira, aguardando o mesmo destino parte da linha do Oeste, ou o célebre “Vouguinha”.

O objetivo repete-se: minimizar os elevados custos da manutenção e circulação de comboios em linhas de menor procura e com eles reduzir o passivo da empresa. Resultado que paradoxalmente nunca foi alcançado!

Volvidos que são mais de vinte anos das primeiras amputações à ferrovia nacional, o passivo da empresa não só não diminui como aumentou drasticamente. Mas tal não implica que se deixe de utilizar o mesmo método.

Este parece mesmo ser minuciosamente estudado na Calçada do Duque e na estação de Santa Apolónia: primeiro não é feito qualquer investimento na segurança e circulação da via, depois fecham-se estações (para criar insegurança) e por fim implementam-se horários inexequíveis para os interesses de qualquer passageiro.

Finalmente, atingido o objetivo, legitima-se, sempre pesarosamente, o encerramento com a reduzida procura do serviço.

O caminho de ferro é, desde há muito e inexplicavelmente, o parente pobre da nossa política de transportes (há política/estratégia de transportes em Portugal?), os sucessivos governos sempre o ignoraram e as consecutivas administrações da empresa ferroviária foram e são pródigas em decisões altamente lesivas para os interesses da mesma e para os passageiros que a procuram.

À esquerda, a Linha do Sado, à direita a do Sul

No caso Funcheira-Beja, quatro ligações diárias garantiam a mobilidade entre o Algarve e as estações intermédias até à capital do Baixo Alentejo.
Uma composição saía de Funcheira cerca das 10h15 da manhã para chegar a Beja uma hora depois, sendo que o regresso teria que ocorrer impreterivelmente às 14h16.

Quem de Pereiras-Gare, Amoreiras-Odemira, ou Ourique pretendesse ir ao hospital distrital de Beja tinha apenas três horas ao seu dispor até ao comboio de regresso, caso contrário aguardaria pelo dia seguinte.

Mesmo assim este nem sempre se realizava, visto que, quando a empresa carecia de pessoal, aguardava-se que alguém de Funcheira reclamasse, para então um táxi garantir o transporte dos interessados até Beja, ou a qualquer outra estação intermédia do percurso.

Marcada a data de encerramento da ligação entre Funcheira e Beja para 01/01/2012, quisemos mais uma vez rever aqueles campos desérticos e abandonados que, na época estival, pareciam lunares, embora outrora férteis em cereais, como ainda hoje o evocam os inúmeros armazéns erigidos junto às gares ferroviárias.

Consultados os horários e já amputada a ligação aos comboios provenientes do Algarve, restou a viagem de carro até à estação da Funcheira, na manhã do último dia do ano de 2011.

Pretendíamos revisitar a primeira linha ferroviária de acesso à região do Algarve, uma conquista extremamente árdua dos nossos avoengos, que motivou inclusive acérrimas disputas parlamentares, protagonizadas pelos deputados algarvios (então verdadeiros defensores dos interesses do Algarve!).

Casével: Aqui vieram os algarvios tomar o comboio para Lisboa durante 18 anos

Mesmo assim, a construção de tão importante melhoramento estendeu-se por uns longos 25 anos. Recorde-se que a linha ferroviária chegou a Beja, vinda do Barreiro, em 15/02/1864, para a 20/12/1870 atingir Casével, que seria término da linha do Sul, durante 18 anos (ainda hoje os inúmeros edifícios existentes junto a esta gare atestam a importância de outrora).

A Casével demandavam os algarvios por estrada para aí tomarem o comboio para Lisboa, como o recordaria, em 1909, o conhecido monografista Ataíde Oliveira: “Por esta estrada [Messines, S. Marcos, Santana da Serra] transitamos algumas vezes, saindo de Ourique a embarcar na estação de caminho de ferro em Casével, antes d’essa via entrar no Algarve.”

A 03/06/1888 era aberto o troço até Amoreiras e finalmente a 01/07/1889 o comboio chegava ao Algarve e a Faro.

A ligação ferroviária a Lisboa realizou-se exclusivamente via Beja até a 01/06/1925, dia em que se concluiu a linha do Vale do Sado, por onde hoje circulam todas as composições provenientes do e para o Algarve, pelo encurtamento do percurso em cerca de 50 quilómetros.

Complexo ferroviário de Casével

O primeiro objetivo do dia estava cumprido: chegámos à Funcheira bem cedo para podermos fotografar a belíssima gare, “Tesouro perdido dos caminhos-de-ferro”, como lhe chamou Miguel Góis Silva, no seu trabalho recente sobre aquela estação.

A Funcheira constituiu durante décadas um importante complexo ferroviário, por ali ocorrer a ligação entre as linhas do Sado e do Sul (no seu auge congregou mais de 200 operários).

Hoje é uma aldeia abandonada, e apenas dois habitantes circulavam na estação (também ela encerrada) aquando da nossa chegada. Pessoas simples, mas afáveis, que logo partilharam connosco lembranças da outrora imponente gare ferroviária.

Mas comboio para Beja, ou melhor automotora nada. Com a estação fechada e o intercomunicador avariado valeu-nos o telemóvel (com parca cobertura de rede) e uma chamada para a linha de Apoio ao Cliente.

Após longos minutos de espera, fomos alertados que a chamada seria gravada, e de seguida alguém atendeu. Afinal o comboio da manhã já não se realizava, contudo asseguraram-nos que o da tarde se efetuaria normalmente.

A primeira desilusão chegava, mas não seria a única! Decididos a viajar na última composição, partimos para Beja de carro, para posteriormente virmos à Funcheira de comboio e no mesmo regressarmos a Beja.

Gare da estação de Castro Verde/Almodôvar, na aldeia de Carregueiro

No caminho fizemos ainda um desvio para deambularmos pela gare de Castro Verde-Almodôvar, um pequeno complexo ferroviário que, devido ao elevado transporte de mercadorias, acabaria por batizar o local por “Carregueiro”. Aqui se iniciava também o ramal para as minas de Aljustrel, há muito desativado.

Chegados a Beja, demandámos à estação e logo constatámos que a velha automotora, modernizada é certo, que garantia nos últimos anos a ligação à Funcheira, não se encontrava em qualquer linha, o que pressuponha um mau presságio.

No guichet, um letreiro indicava “Funcionário temporariamente ausente”. Aguardámos. Um quarto de hora depois, uma senhora chegou de carro e rapidamente precipitou-se para o interior do guichet. “Dois bilhetes para a Funcheira, ida e volta”, atalhámos. Incrédula a funcionária respondeu: “Esse serviço já não existe, encerrou ontem”.

Advertimos que em toda a gare existiam prospetos que anunciavam o encerramento para 1 de Janeiro, logo pressupunha-se que a 31 de Dezembro o mesmo se efetuaria.

Lembrámos ainda que, contactada a linha de apoio de manhã, haviam garantido que o serviço se executaria nessa tarde. Cética e zelosa, a funcionária telefonou para Lisboa, onde lhe confirmavam a supressão do comboio, não pela greve agendada para o dia 1, mas por ser período de festas, e que alguém inadvertidamente se esquecera de avisar a colega da linha de Apoio ao Cliente, bem como de colocar essa informação no sítio da internet da empresa.

Estação de Beja

Restava-nos o livro de reclamações e não hesitámos. Contudo e mais de quinze dias depois, a resposta ainda não chegou, nem ao e-mail que posteriormente foi enviado. Perante nós, estava a empresa no seu melhor e demonstrado o “esmerado interesse” pelos seus passageiros, que há muito se conhece.

Resignados, passeámos por Beja e regressámos de carro, visitando por esta via a maioria das estações ferroviárias que naquele dia deviam servir os últimos passageiros e ouvir pela última vez o silvo da automotora, símbolo de desenvolvimento e riqueza que o comboio trouxe àquelas populações há mais de 140 anos.

Detivemo-nos ainda na gare de Ourique, por aqui se iniciar o ramal para as minas de Neves Corvo. Este pequeno troço até à concordância de Funcheira foi eletrificado e manter-se-á em funções apenas para mercadorias.

A última viagem de comboio de Funcheira para Beja teve tudo naquele dia 31 de dezembro, passageiros, estações, horários, telefonemas e fotografias, somente não houve comboio.

Mas isso foi um pormenor que a empresa ferroviária se esqueceu de anunciar aos seus passageiros.

Porém nem tudo está perdido! Encerrada a ligação ferroviária ao Baixo Alentejo, resta-nos agora o novo aeroporto de Beja, para o qual os nossos governantes estudam a possibilidade de o destinar a voos low-cost.

Se assim for mais sentido faria a existência de uma ligação ferroviária, agora criminosamente usurpada, para o destino turístico que constitui o Algarve. Mas porventura viajaremos então de avião de Faro para Beja!

 

Aurélio Nuno Cabrita

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de Ambiente e investigador de História Local e Regional

(as fotos são da autoria de Jorge Palma)

 

 

 

 

 

 

 

 

Comentários

pub