Voluntários de Monchique: Quando os problemas dos outros importam mais que os nossos

Os voluntários da plataforma Ajuda Monchique estão no terreno desde os primeiros dias do incêndio e têm sido um elemento fundamental no apoio às populações, durante e após a tragédia

Naquela manhã, o centro de coordenação do movimento Ajuda Monchique, ainda instalado na Escola EB 2,3 desta vila, estava calmo. Afinal, já passaram os dias de maior azáfama, vividos durante o incêndio que lavrou ao longo de uma semana na serra algarvia, bem como nos dias após este ser dominado. Mas ainda há trabalho para fazer e, felizmente, há quem esteja disposto a ajudar sem nada receber em troca.

A trabalhar, sentada a uma mesa, a um canto da sala que durante mais de duas semanas serviu como centro nevrálgico e de coordenação do movimento cívico Ajuda Monchique, está Shanti Fernandes. É ela que se levanta para abrir a porta ao repórter do Sul Informação, com um sorriso de boas vindas no rosto.

Por aquela mesma porta, passaram centenas de pessoas, nas últimas semanas. Parte delas, vieram em busca de ajuda. Outros vieram para se oferecer para apoiar as vítimas do incêndio que afetou os concelhos de Monchique, Silves, Portimão e Odemira e destruiu 32 casas, 12 das quais na totalidade, desalojando 41 pessoas.

Shanti Fernandes, apesar de ter crescido em Monchique, já ali não vive. Quando começou o fogo, estava de férias em casa dos seus pais, que acabou por ser atingida pelas chamas «e ficou em cinzas». Mas, assim que teve oportunidade, juntou-se ao Ajuda Monchique, como voluntária.

Isso aconteceu ao segundo dia de existência desta plataforma, lançada por Joana Martins. «Até esse dia, andávamos todos aflitos, nem sabíamos onde íamos dormir. Mas, a partir do momento em que a família conseguiu ter alguma estabilidade, vim oferecer os meus serviços», contou ao Sul Informação Shanti Fernandes.

Apesar de ser, ela própria, uma das vítimas do incêndio, a jovem monchiquense não pensou duas vezes em oferecer os seus préstimos e os seus conhecimentos ao movimento.

«Eu trabalho para a Cruz Vermelha Internacional e tenho experiência em ajuda humanitária, rapidamente comecei a trabalhar com a Joana Martins, que foi quem criou a plataforma», enquadrou.

Esta experiência de Shanti, ganha em zonas de guerra um pouco por todo o mundo, mostrou-se muito útil ao movimento Ajuda Monchique. Hoje, é a coordenadora de operações e revela ter um apurado sentido de organização.

No seu computador, que mantém aberto à sua frente durante a entrevista que concedeu ao Sul Informação, está guardada informação que vai desde uma ficha detalhada de todas as pessoas que foram afetadas pelo fogo e quais as suas necessidades – organizada por prioridade de cada caso – ao inventário das doações que vão sendo feitas.

A conversa está interessante, mas o trabalho não dá tréguas e Shanti Fernandes pede, educadamente, um momento para ajudar uma das voluntárias que está a fazer inventariação e organização dos bens que foram doados – «estamos a mudar de instalações e isto tem sido uma azáfama», diz. Neste caso, trata-se de uma dúvida sobre a melhor forma de registar as escovas de dentes que foram oferecidas, rapidamente esclarecida pela coordenadora de operações.

Entretanto, chegou John Roy Dommett, o coordenador geral do Ajuda Monchique. E, tal como Shanti, John também é o dono de um sorriso fácil e de uma simpatia natural. Mas não são apenas traços de personalidade que estes dois voluntários têm em comum.

«Resido em Monchique desde o ano 2000. Nasci na África do Sul, mas fiz a escola básica aqui, pelo que cresci como monchiqueiro (risos). Durante o incêndio, estive a defender o nosso terreno e a nossa casa, com os meus pais e dois amigos que vieram acudir-nos. Conseguimos que a casa, a horta e o pomar ficassem bem. Tudo à volta se queimou», contou John Dommett.

«A partir do momento em que eu soube que já não havia nada em perigo de arder, desloquei-me aqui à escola. A Joana Martins tinha entrado em contacto comigo a perguntar se eu podia ajudar a coordenar os esforços de apoio às pessoas no período pós-incêndio. Como eu falo inglês, pediu-me que eu desse atenção aos residentes estrangeiros no nosso concelho e assegurasse que esse seguimento fosse feito», acrescentou.

Desde os primeiros dias de existência da plataforma, altura em que o fogo ainda lavrava e Monchique estava em constante estado de alerta e repleta de agentes da Proteção Civil, os voluntários não pararam. A primeira coisa a fazer foi perceber, exatamente, quem precisava de ajuda e de que tipo.

«Além de recebermos os bens e assegurar que eles chegam às pessoas que necessitam, também quisemos fazer esse trabalho de rastrear onde estão as pessoas e se não ficou ninguém esquecido. As pessoas que não têm a possibilidade de vir até aqui, nós vamos até casa delas», contou Shanti Fernandes.

«Esta plataforma serve como ponte entre os que os doadores querem dar e aquilo de que as pessoas efetivamente precisam», resumiu.

 

Esse trabalho foi feito, exclusivamente, por voluntários. «Nos primeiros dias, tivemos uma contribuição brutal e muito profissional da parte das Guias e dos Escuteiros, que mobilizaram as companhias e agrupamentos e nos ajudaram a fazer o rastreio das necessidades. Também contámos com voluntários de associações como os Guardiães da Terra e da AAPP – Associação Amigos Por Perto, de Pedrogão Grande. Houve, ainda, cerca de 40 pessoas que se inscreveram presencialmente, aqui na escola», contou John, o responsável por organizar as equipas de voluntários.

«Neste momento, além dos coordenadores, temos registadas cerca de 250 pessoas que mostraram disponibilidade para colaborar nos próximos dois meses. O que nós temos vindo a pedir é que não se dirijam cá enquanto não houver atividades concretas, organizadas pelos coordenadores da equipa para a qual foram designados», disse.

A partir do momento em que houve massa crítica, «a equipa desenvolveu-se de forma orgânica e todos nós desempenhamos todas as tarefas, todos os dias. Atendemos as pessoas que cá chegaram, a precisar de algum conforto, para falar. O questionário que desenvolvemos acabou por ser uma boa forma de as pessoas sentirem que estão a ser ouvidas e que a situação delas não será esquecida».

O levantamento que foi feito «tornou-se uma ferramenta muito poderosa, para que nós pudéssemos fazer o seguimento, canalizando as doações que o povo português tem feito e encaminhando as pessoas para as entidades públicas que podem e têm obrigação de as ajudar».

Ou seja, «enquanto não houve resposta imediata das instituições públicas, nós já tínhamos uma estrutura sistematizada, capaz de registar os danos e de dar alguma informação, apesar de pouca e, muitas vezes, apenas para as pessoas se sentirem mais confortadas», ilustrou John Dommett.

«Trabalhámos sempre de forma muito orgânica e em equipa, consultámo-nos uns aos outros e nunca houve hierarquias. Houve sempre uma equipa a trabalhar junta, em harmonia. Foi um movimento muito bonito», reforçou Shanti.

 

A partir de amanhã, segunda-feira, dia 27 de Agosto, a Ajuda Monchique passa a estar instalada na Rua Serpa Pinto, nos números 70-74, em frente ao quartel da GNR. É aqui que passará a ser prestado o apoio às populações, de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 16h00.

Entretanto, «as pessoas começaram a desmobilizar, o que é natural, pois a parte da emergência já passou. Mas ainda há pessoas sem água, a quem temos de levar água engarrafada a casa, e esses casos são o que nos faz continuar aqui passado este tempo. Não podemos abandonar o barco até garantirmos que as pessoas têm acesso ao mínimo».

«Houve um acompanhamento de voluntários psicólogos, que estavam aqui quando as pessoas vinham. E havia pessoas que estavam muito abaladas, destroçadas e desestruturadas. E houve esse acompanhamento que, mais tarde, até foi prosseguido em casa das pessoas», conta Shanti Fernandes.

Neste momento, há «uma lista de cerca de 197 famílias que, de uma forma ou outra, estamos a seguir. Não temos conseguido, devido aos nossos recursos limitados, seguir todas uma por uma. Mas temos aqui como casos a seguir. Às vezes, pode ser alguém que precise de uma máquina de lavar ou de um frigorífico. Outras, é alguém que necessita de um apadrinhamento porque perdeu tudo. Pode ser uma bicicleta, uma casa, alojamento».

«Nós estamos a trabalhar por casos prioritários. Todos os casos ligados ao alojamento, estamos a seguir de muito perto, bem como todas as pessoas que não têm água potável em casa. Depois, vem tudo o resto. À medida que formos conseguindo resolver estas situações mais urgentes, iremos passar para outras em que as pessoas precisam, por exemplo, de tubos de água para a agricultura, equipamento agrícola ou comida para os animais», explicou.

A ajuda, essa, continua a chegar, pois continuam a ser necessários os mais diversos tipos de bens para as vítimas do incêndio. «No nosso site, vamos fazendo um update regular de quais são as nossas necessidades, até porque elas vão mudando. De um dia para o outro, podemos receber um grande carregamento de um bem e deixarmos de precisar de doações, porque já temos a quantidade suficiente. É um processo muito dinâmico», disse a coordenadora de operações da plataforma.

Desta forma, quem quiser ajudar, deverá primeiro passar na página de Facebook do Ajuda Monchique, para saber aquilo que é preciso. As atualizações mais recentes dão conta da necessidade de autocaravanas, para que três famílias possam instalar-se nos seus próprios terrenos, enquanto não concluem a reconstrução das suas habitações, e de casas para arrendar a vítimas do incêndio.

No que toca a bens e equipamentos, há necessidade de eletrodomésticos, de máquinas agrícolas e de tubagens. Também continuam a ser necessários alimentos e produtos de higiene «de todos os tipos». Roupa, como se lê numa nota em letras garrafais, no centro de coordenação, não é necessária e não será aceite.

O movimento veio, entretanto, a público, revelar que «todos os donativos em bens alimentares, higiene pessoal e de primeira necessidade que foram rececionados e contabilizados pela Plataforma Ajuda Monchique, na Escola Manuel de Nascimento, foram entregues a 24 de Agosto à Câmara Municipal de Monchique». Agora, será a autarquia a responsabilizar-se pela «gestão e distribuição destes bens nos moldes que a Câmara definirá».

«A partir de agora, pedimos que as doações em bens alimentares e de higiene pessoal sejam dirigidas à Câmara Municipal. Todos os outros bens (ex. ferramentas, eletrodomésticos, mobílias, material de irrigação, etc.) continuarão a ser recebidos e geridos pela Plataforma Ajuda Monchique», acrescentou.

«Coisas maiores, as pessoas ainda não se aperceberam bem daquilo que precisam. Neste momento, estão a ser alojados em casas de familiares e amigos, mas dentro de dias mudam-se para casas alugadas e precisam de tudo. Mas, como ainda estão em choque, só agora é que começam a perceber que vão necessitar de muitas coisas e nós estamos a procurar ajudá-los», enquadrou Shanti Fernandes.

Foi precisamente para ajudar algumas destas famílias que um jovem monchiquense, atualmente a viver e a trabalhar em Lisboa, desafiou amigos a contribuir com dinheiro. Sem querer ser identificado – «não o faço para ter reconhecimento» – A. revela que conseguiu angariar «cerca de 700 euros», num círculo de pessoas que lhe são próximas.

«Sou filho da terra. Infelizmente, a minha vida profissional levou-me para Lisboa, mas venho cá a casa dos meus pais sempre que possível. Lá em cima, tenho malta amiga que gosta muito de Monchique. E, sem grande esforço, consegui sensibilizá-los para a situação que aqui se viveu e juntámos o dinheiro, para dar uma alegria a algumas pessoas», contou.

Para garantir que a ajuda chegava àqueles que mais necessitavam, A. contactou o movimento Ajuda Monchique. No dia em que falou com o Sul Informação, preparava-se para ir entregar  eletrodomésticos e outros bens a várias famílias de Alferce, que «a fantástica equipa de voluntários» ajudou a identificar.

«Comprámos um frigorífico, micro-ondas, varinhas mágicas e ferros de engomar. Também houve pessoas que perderam tudo. Para um senhor que neste momento não tem nada, comprámos utensílios para que pudesse começar a cozinhar  e a levantar um pouco a cabeça», contou.

«Como filho da terra, sei bem o que é o flagelo dos incêndios e o que custa. Infelizmente, já tive de apagar fogos várias vezes. Este ano, embora se consiga ver muito verde à volta da casa dos meus pais, ainda tivemos aqui momentos de preocupação», disse.

Ainda assim, o fogo não se aproximou da propriedade, situada no topo de um monte, ao contrário do que aconteceu em 2004, em que «ardeu tudo aqui à volta e só se salvou a casa em si».

O facto de, desta vez, a tragédia não lhe ter batido à porta, não impediu que A. e o seu grupo de amigos se juntassem para ajudar pessoas que, até há bem pouco tempo, não conheciam.

No mesmo dia, uma equipa de voluntários do Ajuda Monchique, compostas por três pessoas, esteve no terreno a resolver dois casos que ainda subsistiam de falta de acesso a água potável.

Neste momento, em que o fogo já só lavra na memória dos que viveram e foram, de alguma forma, afetados por esta tragédia, o Ajuda Monchique pensa no futuro.

Recentemente, houve uma reunião de residentes em Monchique, «pois criou-se uma bolsa de voluntários muito grande, de vários pontos do país, mas achamos que as pessoas que devem coordenar as equipas de voluntários devem ser de cá, pois conhecem os habitantes, as localidades e as dinâmicas locais».

«Temos coordenadores em seis áreas diferentes. Desde logo, o apoio psicossocial. Estamos em contacto com as entidades de saúde, a quem pedimos que, em casos em que não possa haver um seguimento psicológico, que os encaminhem para nós, porque temos voluntários da área da psicologia e das terapias na nossa rede que possam, talvez, preencher esse vazio», revelou John Dommett.

Também já foi decidido criar um horário semanal das terapias e outro de apoio psicológico ou fazê-lo porta-a-porta, num determinado dia da semana.

A segunda área é a dos bens essenciais e dos alimentos e a terceira a das mobílias e dos eletrodomésticos. A quarta área é a da irrigação, da água potável e das limpezas básicas pós-incêndio. Neste caso, a equipa que foi formada «passará, mais tarde, para esforços de reflorestação e já receberam formação de estabilização de solos pós-incêndios dada por especialistas», enquadrou o coordenador geral do movimento.

A quinta área, é a dos eventos e da cultura. «Nós achamos que é importante que as pessoas tenham contacto social e que haja algumas iniciativas que ajudem a animar as pessoas. Para além disso, poderão ser um forma de angariar fundos para adquirir bens específicos».

Finalmente, a sexta área é a do apoio aos jovens, com a criação de um atelier infantil. Este campo de férias artístico, que se chamará “Geração Futura”, começa amanhã, dia 27 de Agosto, e dura até ao final do mês.

As atividades vão decorrer na Galeria de Santo António e dirigem-se a crianças e jovens, que serão divididos em dois grupos. Aqueles que tiverem entre os 5 e os 10 anos, terão atividades no período da tarde. Jovens entre os 11 e os 16 anos, vão estar ocupados entre as 9h30 e as 13h00. As inscrições podem ser feitas na galeria onde decorrerá a iniciativa.

Com este e outros passos que serão agora dados, espera-se que a normalidade regresse a Monchique, pouco a pouco. E não parecem restar dúvidas de que o caminho será feito com a ajuda de voluntários que, em muitos casos, puseram os interesses dos outros à frente dos seus.

 

Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação

 

Comentários

pub