Inovação junta-se à tradição para não deixar morrer arte da empreita

Uma viagem ao mundo da empreita de palma algarvia, em vésperas da Feira da Serra de São Brás de Alportel

A arte da empreita de palma algarvia está viva e até há quem lhe dê um toque contemporâneo. Maria Francisca Martins e Maria João Gomes são duas artesãs de São Brás de Alportel que seguem os saberes desta tradição. As duas falam da empreita com alegria e de sorriso no rosto. Recordam o passado, mas também perspetivam o futuro «desta arte que não se pode perder».

É numa pequena sala de sua casa, na aldeia de São Romão, junto à estrada, que Maria Francisca Martins trabalha. Quem lá entra dá logo de caras com cestas, chapéus, tapetes e alcofinhas. Tudo feito com palma algarvia.

Sentada na cadeira de trabalho, a Dona Maria Francisca recorda ao Sul Informação como tudo começou: «a minha mãe já fazia empreita e eu, em pequenina, comecei a aprender. Quando somos pequenos, somos curiosos e eu lá ia tirando umas palminhas para fazer uns chapéus que vendia em Loulé».

O amor por este ofício nunca mais desapareceu, mas, com o passar dos anos, Maria Francisca apercebeu-se de que não era possível viver só com a venda dos seus produtos. «Comecei a trabalhar numa fábrica de bolos porque isto não dá. Era morrer à fome. Mas nunca perdi o gosto».

Agora, já reformada, voltou a ser mais ativa. «Eu adoro isto e também gosto de ensinar. Todas as terças-feiras vou à Casa do Artesão, em São Brás, trabalhar ao vivo e os turistas adoram, principalmente os espanhóis. Há pessoas interessadas, que gostam, e vejo isso com muita alegria para que não se perca a tradição», diz, a sorrir, enquanto vai entrelaçando as palmas.

Maria João Gomes é exemplo de alguém que mudou de vida para fazer deste ofício a sua vida. Em 2010, depois de ter vivido em Espanha, Inglaterra, Estados Unidos da América e França, decidiu vir «de armas e bagagens» para o Algarve, onde tem raízes familiares.

Instalou um centro de fotodepilação em São Brás de Alportel, mas havia outra coisa na sua loja que chamava a atenção dos clientes. «Isto começou como uma arte-terapia. Comecei a fazer mandalas em palma e usava as minhas peças para decorar a loja que tinha. As pessoas gostavam e começaram-me a encomendar malas, que achavam bonitas e modernas», conta, agora na sua sala de trabalho, no Museu do Traje.

E foi assim que tudo começou. Em 2015, criou a sua marca, Palmas Douradas, um nome que fica no ouvido e que surge do facto de Maria João colocar algumas palmas a secar ao sol, «ficando mais douradas».

Sempre que precisa, é a artesã que vai para os campos apanhar a palma, que resulta da seca das folhas da única palmeira autóctone da Europa, a palmeira-anã (Chamaerops humilis). «Sou eu que apanho toda a palma que uso. As pessoas chamam-me para ir apanhar e eu já não consigo dar resposta a toda a gente que me pede», diz, entre risos.

«Não apanho as palmas de cima. Se necessito de palma enxofrada, sou eu a tratar disso, apesar de não gostar, por ser tóxico para a saúde», explica ainda.

Além de apanhar a palma, é Maria João que a seca, racha, corta e, depois, a trabalha para fazer cestas, chapéus ou a peça de maior sucesso: as malas de senhora, que exibe com orgulho.

Mas as “Palmas Douradas” têm um outro (grande) elemento diferenciador. É que, em todas as peças, a artesã alia a tradição com a inovação. «Tenho uma forma muito rústica de trabalhar, mas dou sempre um ar sofisticado às minhas peças. É uma imagem que não havia antes no artesanato», explica ao nosso jornal.

Daí surgem trabalhos como as malas, que têm pequenos elementos decorativos, e que chamam a atenção de todos. Incluindo estilistas, como Filipe Faísca, que já a convidaram para desfiles, como a Moda Lisboa.

Sem disfarçar o sotaque francês, que ganhou devido aos anos em que estudou e viveu em Paris, Maria João Gomes é um poço de histórias sobre estas tradições. Como quando era criança, e, nas férias, visitava os avós, em Aceifãos, um pequena aldeia do interior de Tavira, e «gostava muito» de ajudar a avó a fazer cestas.

Ou como quando, há pouco tempo, lhe aconteceu «uma coisa muito engraçada» com uma idosa. «Tinha deixado uns chapéus numa loja e um deles era daqueles grandes, de praia. Uma senhora mais idosa passou pela loja e disse-me que era feio e nem para capacho servia. Respondi-lhe que era uma peça moderna», conta, entre risos.

Este episódio mostra como há quem não veja com satisfação a utilização mais arrojada que a marca “Palmas Douradas” faz da empreita. Mas, no geral, diz, orgulhosa, «as pessoas da serra acham isto engraçado».

«Há quem goste muito. Quando vou à serra, são super queridos comigo. Mesmo aqueles que, no início, viam isto com menos bons olhos agora dizem-me que estou a salvar a empreita».

A Dona Maria Francisca não hesita em afirmar que «gosta» que não se esteja a perder a tradição. Foi ela que ensinou Maria João a «fazer uma empreita de pontinhas para tapetes». Da parte da Câmara de São Brás de Alportel, salienta, «tem havido um grande apoio à manutenção destes saberes».

Tal como Maria João, a Dona Francisca tem histórias engraçadas que mostram como a empreita ainda é um produto apreciado.

«Olhe, antigamente havia uma Feira, em Setembro, na praça de São Brás. Um dia, houve uma senhora que veio ter comigo com uma cesta dessas dos chineses, toda partida, e pediu-me para a arranjar. Respondi-lhe que não sabia como fazer isso, mas que lhe podia fazer uma cesta nova, de palma do mato. Ela aceitou, fiz-lhe a cesta e ela comprou duas ou três! Ainda veio uma colega da Madeira comprar-me mais peças».

É que, diz, a verdadeira palma que usa «é muito melhor do que as outras cestas que para aí andam e que se partem».

Um dos novos desafios, mas de Maria João Gomes, é, com efeito, dar a conhecer o que é a verdadeira palma algarvia, no programa “O Artesão”, a ser exibido na RTP, em Setembro. Vão ser 10 episódios, «de um programa muito engraçado», sobre artes tradicionais portuguesas.

A Maria João Gomes ficou destinada, claro, a palma. «Vai ser interessante sobretudo porque explico o que é a empreita da palma algarvia, para que as pessoas valorizem o trabalho, vendo todo o processo e como isto dá trabalho».

Trabalho é, de resto, algo que não falta à artesã, que tanto aceita encomendas, como vende os produtos online e em lojas como a Mar d’Histórias, em Lagos. E quanto tempo leva a fazer, por exemplo, uma mala? «25 horas», responde.

«Isto dá muito trabalho. Não vou pedir só 20 euros por algo em que aplico tanto do meu tempo. É desvalorizar não só o trabalho, como a empreita da palma algarvia, e acho isso injusto. Os artesãos queixam-se, mas também desvalorizam o seu próprio trabalho», considera Maria João.

Tanto Maria Francisca como Maria João costumam ser presença habitual na Feira da Serra, cuja edição deste ano começa já na quinta-feira, 26 de Julho, em São Brás de Alportel.

Este ano, a Dona Francisca lá estará com a expetativa de vender bem. Já Maria João, que costuma dar workshops na Feira, este ano não vai ao certame.

Mas, ambas, separadas pela idade e unidas pelo gosto pela empreita, vão continuar a ser guardiãs de um arte que é tão típica do Algarve.

 

 

Fotos: Gonçalo Dourado | Sul Informação

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