Crónicas do Sudoeste Peninsular: Querença Smart Village

Alguns ainda recordarão com ternura o “Projeto Querença” que, há sete anos atrás, na aldeia de Querença, foi uma lufada […]

Alguns ainda recordarão com ternura o “Projeto Querença” que, há sete anos atrás, na aldeia de Querença, foi uma lufada de ar fresco numa conjuntura geral muito depressiva, marcada pela iminência da bancarrota e a chegada da Troika. Foi um projeto irreverente, muito ousado para as condições hostis que então vigoravam, mas, talvez por isso mesmo, muito apreciado e aplaudido e, também, apoiado. Agora que se discute a possibilidade de uma outra abordagem aos territórios de baixa densidade, a chamada smartificação do território, vale a pena recordar alguns traços essenciais do Projeto Querença. Depois de uma breve revisitação, faremos uma incursão por Querença Smart Village.

I. O Projeto Querença (PQ) (2011-2012)

1. Os objetivos gerais do PQ

O Projeto Querença foi um projeto ou missão de resgate territorial de territórios em estado crítico, gravemente atingidos por processos de desertificação e abandono dos seus capitais, natural, produtivo e social, e muito próximos de limiares perigosos de irreversibilidade de desenvolvimento.

O Projeto Querença foi orientado para as áreas rurais de baixa densidade, aldeias, grupos de aldeias ou mesmo de municípios, de geometria variável e de acordo com uma análise de pertinência dos recursos existentes, potenciais e disponíveis.

O Projeto Querença tinha um propósito fundamental, qual seja, o de alargar o campo de possibilidades desses territórios em estado crítico e, ao mesmo tempo, promover o emprego de jovens licenciados em situação profissional precária, usando, para o efeito, uma abordagem territorial inovadora que visava fixar no interior aquela população universitária recém-licenciada.

2. A organização do PQ

O Projeto Querença foi constituído a partir de três promotores principais: a Câmara Municipal de Loulé, a Universidade do Algarve e a Fundação Viegas Guerreiro de Querença que se constituiu em promotora direta do projeto.

O Projeto Querença constituiu uma equipa ou grupo de missão com o objetivo expresso de desenhar um Pacto ou Convenção Territorial de Desenvolvimento para a área de intervenção.

O Projeto Querença utilizou um instrumento de recrutamento para constituir o seu grupo de missão: abertura de um concurso público e seleção de um grupo constituído por jovens licenciados e/ou mestres com formações diversas mas complementares (de acordo com as necessidades de intervenção do território em causa), e que se submeteram ao critério de permanecer na aldeia durante um período de nove meses (bolsa do IEFP).

O Projeto Querença criou uma “governança dedicada” ao projeto: os promotores constituem uma comissão local e uma comissão técnica de acompanhamento para seguir de perto o grupo de missão.

3. A doutrina de intervenção do PQ

O Projeto Querença tinha um lema geral: da teoria à ação, aprender a empreender. Tratou-se de uma ação-piloto de problem-solving, investigação-ação e dinâmica de grupo. O projeto tinha uma doutrina própria e os seguintes princípios de intervenção:

– Onde não existe normalidade territorial, terá de haver excecionalidade territorial: o resgate territorial.

– Onde não há capital institucional, terá de haver uma “institucionalidade dedicada”: criar um grupo de missão.

– Onde não há um projeto mobilizador, terá de haver um pacto territorial mobilizador: lançar uma convenção local de desenvolvimento.

– Onde não há capital social, terá de haver importação de capital social: selecionar, recrutar e constituir um grupo interdisciplinar de jovens licenciados.

– Onde não há stock, terá de haver fluxo: montar uma economia de redes e de visitação.

– Onde não há atividade económica continuada, terá de haver atividade económica descontinuada: montar uma economia de eventos com forte reticulação.

– Onde não há aglomeração, terá de se criar um efeito de aglomeração: montar uma economia de colares de pérolas.

– Onde não há atores coletivos, terá de se reinventar a ação coletiva: montar uma sociologia dos atores-rede e dos clubes do território.

– Onde não há financiamento convencional, terá de haver um financiamento não convencional: montar uma engenharia de microfinanciamento e de crowdfunding.

– Onde não há uma imagem real, terá de haver uma imagem virtual: criar um imaginário próprio e uma imagem de marca.

4. O método de intervenção do PQ

O Projeto de Querença, de acordo com a filosofia e a doutrina anteriores, tinha um método particular de intervenção territorial:

– A escolha de um “território crítico”: problemas de escala, de limiares críticos de recursos, de jurisdição territorial e conflitos de interesses.

– A avaliação preliminar dos recursos do “território crítico”: o diagrama do território e análise de pertinência sobre a quantidade, a qualidade, a diversidade e a disponibilidade dos pró-recursos, anti-recursos e contra-recursos.

– A constituição do Grupo de Missão e a matriz de objetivos do Pacto: o capital social do território, a importação de capital social e a constituição de um Grupo de Missão: diversidade, multifuncionalidade e polivalência dos elementos do Grupo de Missão, pluralidade de perspetivas de análise, complementaridade e funcionalidade dos contributos.

– A governança local do território: o Forum Aldeia, a Comissão Coordenadora, a Comissão Técnica e Científica, a Comissão Local de Apoio; o papel dos atores- rede e dos clubes do território.

– A construção social do “colar de pérolas” de Querença: as dimensões operacionais do colar de pérolas – produção, recreação, conservação, comercialização, visitação, comunicação, gestão – e suas principais internalidades e externalidades.

– A construção social do projeto empresarial de Querença: o desenho do projeto empresarial específico para Querença – um agrupamento complementar de micro-empresas unipessoais, uma cooperativa de produção e serviços, uma sociedade anónima, uma sociedade por quotas, um condomínio rural, uma sociedade gestora de participações sociais.

5. O Projeto Empresarial para a aldeia

O Projeto Querença, sob a marca comercial registada Querença, tem à sua disposição um campo de possibilidades muito variado que decorre de uma primeira análise preliminar dos seus recursos e potencialidades. A título de exemplo, registamos as seguintes possibilidades: Querença Vales Verdes (agricultura biológica), Querença Biodiversidade e Paisagem, Querença Energias Renováveis, Querença, Recursos Hídricos, Querença Ecoturismo, Querença ASP (agro-silvo-pastorícia), Querença Quinta Pedagógica e Campo Aventura, Querença Eventos, Comunicação e Marketing, Querença Artes, Ofícios e Merchandising, Querença Gestão de Pequenos Negócios.

O Projeto Querença, por via da formação de “clubes de suporte” em cada uma destas áreas, visava criar as condições necessárias ao surgimento/importação de “capital social” para o lançamento de microempresas naquelas mesmas áreas.

II. Querença Smart Village (2018)
Passaram sete anos, existem agora, julgo, condições socioeconómicas e políticas para regressar à filosofia geral do PQ e à luz dos novos instrumentos tecnológicos da economia digital, por exemplo, a georreferenciação, introduzir alguns dispositivos smart e, dessa forma, melhorar a qualidade de vida a todos, residentes e visitantes. A metodologia Smart Village pode, com efeito, introduzir alguns benefícios, eis as minhas recomendações:

1. Poupança de recursos públicos e privados
As tecnologias digitais estão em condições de gerir sistemas inteligentes nas áreas da energia e iluminação pública, água e saneamento básico, mobilidade e transportes, para citar apenas as mais comuns.

2. Cuidados de saúde e serviços itinerantes
As tecnologias digitais podem fazer a monitorização de sinais vitais em tempo real e os serviços itinerantes de saúde podem chegar a tempo de salvar vidas.

3. Rede de solidariedade social e de cuidadores informais e voluntários
As tecnologias digitais adaptadas à sociedade sénior podem fazer a diferença no que diz respeito à qualidade de vida, cuidados terapêuticos prestados e aos tratamentos diferenciados e paliativos.

4. Rede de serviços de natureza, ambiente e proteção civil
As tecnologias digitais suportadas por uma rede de cuidadores/voluntários da natureza e ambiente podem fazer a diferença no que diz respeito à limpeza, vigilância das florestas e segurança das populações em caso de risco iminente.

5. Banco de Alojamento Local/Turismo de Aldeia
As tecnologias digitais podem resolver facilmente a oferta agregada de alojamento local e todas as necessidades no que diz respeito à gestão do turismo de aldeia.

6. Rede de serviços agro-silvo-pastoris
As tecnologias digitais podem aliviar o trabalho com as operações agrícolas e poupar imensos recursos em água e energia, ajudar a uma tomada de decisão mais eficaz, planear uma silvicultura preventiva mais eficiente e organizar a pastorícia de uma forma muito mais inteligente.

7. Rede de artes e ofícios e eventos culturais
As tecnologias digitais podem ajudar a programar as atividades criativas e culturais e as respetivas atividades de merchandising e marketing digital.

Os exemplos referidos são redes digitais que precisam de “multidão” para serem funcionalmente rentáveis. Por isso, julgo, também, que se justifica a criação de algumas infraestruturas de rede – redes físicas – que funcionem como uma espécie de mercados de destino para a visitação. Dou três exemplos:

– Querença, Vales Verdes: agricultura local de proximidade em duas versões, a primeira para o abastecimento local, a segunda para uma agricultura de nicho, os “Primores de Querença”,

– Querença, Campo Aventura: campos de trabalho e de férias para jovens do serviço europeu de voluntariado,

– Querença, Quinta Pedagógica e Terapêutica, para a aprendizagem pedagógica dos mais jovens e o envelhecimento ativo dos seniores.

III. Querença Smart Village, uma Fundação Serralves para o Algarve!!

Uma referência final ao projeto mais emblemático para o barrocal serra com o seu lugar geométrico sedeado em Querença: refiro-me à Querença Romântica e ao Imaginarium de Querença que as tecnologias digitais podem rapidamente catapultar para o ciberespaço.

No respeito pelas missões gerais da Fundação Viegas Guerreiro, numa linha próxima da antropologia sociocultural do Prof. Viegas Guerreiro, mas, também, na linha da “perspetiva ecológica do Homem” do Prof. Manuel Gomes Guerreiro, pergunto-me em que medida podemos nós utilizar os recursos naturais e culturais do barrocal serra com o objetivo de criar um projeto que reinvente esses recursos numa perspetiva, digamos, mais antropológica e cultural, isto é, que se constitua um projeto emblemático em Querença, mas que tenha um atrativo simbólico especial e traga benefícios para a população de todo o Algarve. Trata-se, por um lado, de reinventar a memória histórica do barrocal serra mediterrânico, mas, também, de ficcionar a sua memória futura; se quisermos, poderia dizer que se trata de reinventar uma Querença Romântica que eu aqui denomino de Imaginarium de Querença e onde o visitante, mais do que um turista ocasional, seria um verdadeiro peregrino do espírito do tempo. Neste Imaginarium romântico nós encontraríamos, por exemplo:

1. O passeio das fontes ou das minas de água,

2. O jardim dos sentidos, as artes da paisagem e as esculturas vivas,

3. O ciclo da água e o património hídrico: as minas de água, as levadas, as picotas e as cegonhas, as noras, os poços, as fontes, as cisternas.

4. Os endemismos, a biodiversidade e os circuitos biodiversos da rede natura,

5. A escrita na paisagem, literatura oral e história local,

6. A arquitetura popular, as histórias de vida e os itinerários familiares,

7. Os circuitos de mobilidade especial para grupos sensíveis,

8. As peregrinações e os retiros espirituais ao rural remoto algarvio,

9. As artes plásticas e a transformação do artesanato tradicional,

10. As paisagens literárias, as residências artísticas e culturais e o festival literário internacional de Querença.

Creio que se trata de um projeto com um enorme potencial de crescimento, que pode ser operacionalizado e desdobrado de muitas maneiras e que merece uma inscrição muito especial no espaço e na arquitetura da paisagem que envolve a freguesia de Querença e o barrocal serra. Seria, além disso, a melhor homenagem que poderíamos prestar ao património mediterrânico.

Estou convencido de que certas entidades, como, por exemplo, a Fundação Serralves ou a Fundação Gulbenkian nos poderiam aconselhar a propósito do conceito, da conceção e da realização deste projeto. E aqui, mais uma vez, as tecnologias digitais, em particular, no que diz respeito à produção de conteúdos criativos, seriam um auxiliar precioso. Fica a proposta.

Nota Final

Chegados aqui, não se trata, evidentemente, de substituir as redes materiais do Projeto Querença 2011 pelas redes digitais do Projeto Querença 2018. Ao contrário, trata-se de averiguar qual é a melhor rede de complementaridades materiais-imateriais em ordem a obter uma outra carteira de ativos e uma nova economia de aglomeração para o barrocal serra na sua plenitude. Quero crer que, nesta matéria, e a breve prazo, a união de freguesias onde Querença se inclui, pode vir a administrar uma “plataforma digital multifunções” onde cada funcionalidade corresponde a uma das redes antes referidas.

Na mesma linha de pensamento, as infraestruturas de rede propostas, bem como o emblemático Imaginarium, serão fundamentais para alcançar uma escala mínima de operações. Mesmo a terminar, é bom não esquecer que as redes digitais precisam de redes físicas “de fibra”. Para bom entendedor!!!

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