Crónicas do Sudoeste Peninsular: A organização subnacional do estado

Agora que se fala tanto em interioridade e valorização do interior e agora que PS e PSD se preparam para […]

Agora que se fala tanto em interioridade e valorização do interior e agora que PS e PSD se preparam para designar na Assembleia da República (no próximo dia 15 de Junho) uma comissão especializada de peritos, com mandato até Julho de 2019 e o objetivo de levar a cabo a reforma da “organização subnacional do Estado”, isto é, a reforma das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) e das Comunidades Intermunicipais (CIM), talvez seja uma boa altura para fazer uma breve incursão pela política de regionalização e revisitar alguns “formatos subnacionais” que podem estar em discussão no futuro próximo.

A minha posição de princípio é muito simples: não tenho posições fechadas ou dogmáticas sobre o assunto, tanto mais quanto as alterações climáticas, as alterações demográficas, os movimentos migratórios e a revolução digital modificam bastante as regras do jogo tal como as conhecemos hoje e aconselham a alguma prudência na forma de abordar estes assuntos politicamente muito sensíveis. Ainda por cima num país que mantém uma dívida pública extraordinariamente elevada.

Temos, pois, de manter o espírito aberto, adotar uma atitude de humildade democrática, técnica e científica e adaptar constantemente as nossas ambições aos nossos recursos, usando, para tal, a inteligência e imaginação.

A única estratégia de desenvolvimento regional em relação à qual não há razões para ter dúvidas, na conjuntura das duas próximas legislaturas (2019-2027), é aquela que afirma que é possível “fazer mais e melhor com menos recursos”.

Para além disso, e em qualquer estratégia, é preciso distinguir entre a política de regionalização, que é um assunto de política interna, e a política regional ou, melhor dito, o sistema de política regional, que é um assunto abordado em vários níveis de governo e administração, nos planos europeu, nacional, regional e local.

No debate sobre a organização subnacional do estado podemos ter várias opções em presença:

1. Manter o país bipolar tal como o conhecemos hoje,
2. Consagrar a regionalização administrativa, tal como recomenda a Constituição da República Portuguesa (CRP),
3. Consagrar e reforçar o regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR,
4. Consagrar a municipalização do país através de um reforço das CIM e dos Municípios,
5. Consagrar a municipalização do país através de um regime de promoção das uniões de municípios,
6. Consagrar um regime de equilíbrio dinâmico entre CCDR, CIM e Municípios,
7. Consagrar o regime das áreas metropolitanas e a recomposição das suas áreas de influência,
8. Consagrar instrumentos de recomposição dinâmica do território como as smart cities, as plataformas digitais e as uniões de municípios.

Podemos sempre fazer abordagens parciais ou setoriais ao problema, mas o gradualismo e a racionalidade de um assunto tão complexo recomendam a aprovação de uma lei-quadro para o efeito. As categorias e os atores em jogo são tantos que o risco de congestionamento e cacofonia territorial é bem real se não houver uma lei-quadro que esclareça a divisão do trabalho e as transações (atribuições, competências e meios) entre níveis de governo e administração. Quer dizer, a lei-quadro é necessária para criar uma ordem local e as suas diversas etapas e evitar, assim, uma “sopa corporativa e clientelar” desde a primeira hora.

1. Manter o statu quo do país bipolar

Entre o excesso de centralismo e o excesso de localismo, conservamos todos os males de que o país padece. Na atual conjuntura, porém, tem a vantagem de não acrescentar mais problemas aos problemas já existentes, seja de natureza financeira ou de ingovernabilidade política, no preciso momento em que assistimos à desagregação dos sistemas político-partidários e à ascensão dos populismos, nacionalismos e movimentos independentistas europeus.

2. Consagrar a regionalização administrativa tal como reconhece a CRP

A Constituição da República Portuguesa consagra a regionalização administrativa do continente desde a sua origem em 1976. Mesmo depois do referendo de 1998 nenhuma revisão do texto fundamental reconheceu a necessidade de retirar esse dispositivo jurídico da CRP.

Quatro décadas depois o país continuar a pecar, nesta matéria, por omissão constitucional e, só agora, se propõe discutir a organização subnacional do estado. Porém, a urgência em debater a valorização do interior, por razões que são conhecidas, não augura nem recomenda nenhuma revolução político-administrativa.

3. Consagrar e reforçar o regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR

Trata-se de uma solução moderadamente reformista que pode introduzir melhorias técnicas e funcionais no funcionamento da administração regional desconcentrada do Estado, mas, julgamos nós, de carácter meramente incremental, tendo em vista alguma adaptação orgânica e poupança de meios financeiros.

Sem uma reforma simultânea da administração central do Estado e da administração local o reforço do regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR será pouco mais do que uma operação de cosmética.

4. Reforçar a municipalização do país através das CIM e dos Municípios

Trata-se de dar continuidade ao movimento de municipalização do território através do reforço das comunidades intermunicipais (CIM) já consagradas em lei. Estamos, porém, perante uma geografia não-desejada, perante territórios sem qualquer dinâmica de identidade ou movimento desenvolvimentista. Neste contexto, qual é a ambição regionalista ou intermunicipalista que colocamos nesta organização subnacional do estado? Quais são os bens públicos ou bens comuns que estas comunidades “desejam ardentemente” para o seu território? Vamos construir equipamentos e infraestruturas por dever de obrigação ou transferir atribuições e competências que os municípios muito provavelmente não desejam? Ficam as dúvidas a pairar.

5. A municipalização por via de um regime de promoção das uniões de municípios

Para lá de um stock mínimo de atribuições e competências transferidas da administração central para a administração local, que uma lei-quadro pode estabelecer, trata-se, neste caso, de incentivar a formação de um federalismo autárquico de 2º grau por via da constituição, numa base voluntária e em geometria variável, de uniões de municípios. Através de uma lei da assembleia da república seriam definidos os termos e condições dos incentivos a conceder.

6. Um regime de equilíbrio dinâmico entre CCDR, CIM e Municípios

Trata-se, neste caso, com as atuais ou com novas competências, de estabelecer o regime de cooperação territorial descentralizada, entre as CCDR, as CIM e os Municípios, e os sistemas de incentivos fiscais e financeiros a que têm acesso. Por exemplo, a mobilidade interna de pessoal, os meios tecnológicos partilhados, os serviços comuns, as novas soluções tecnológicas, a formação técnica dos quadros e funcionários, podem ser objeto desses incentivos.

7. O regime das áreas metropolitanas e a recomposição das suas áreas de influência

A organização subnacional do estado pode considerar, entre as suas prioridades, a formação e o apoio a áreas metropolitanas do litoral – do Porto, do Centro, de Lisboa, do Algarve – assim como o apoio de variada ordem à recomposição e ordenamento das suas áreas de influência e abrangendo vários concelhos do interior do país. Esta preferência não é indiferente, não apenas por razões de ordem financeira, mas, também, no que diz respeito à organização político-administrativa do território no resto do país.

8. Instrumentos dinâmicos de recomposição: smart cities, redes de cidades, plataformas digitais, espaços de coworking, uniões de municípios, etc.

Estes instrumentos dinâmicos de recomposição territorial não são incompatíveis com as outras soluções, antes, devem ser concebidos em articulação com os outros formatos, uma vez que estão em causa problemas sérios de eficácia, eficiência e equidade. Em particular, a smartificação dos territórios está na moda, assim como a plataformização digital, razões mais do que suficientes para tomar algumas medidas cautelares a este propósito, em especial, novos instrumentos regulatórios.

Notas Finais

Já o escrevi várias vezes, os territórios não são pobres, estão pobres, porque padecem de um défice de autoconhecimento e nunca investiram o suficiente em si próprios por falta, justamente, de autonomia e condições para o fazerem.

Nesse sentido, é imperiosa a necessidade de subir na cadeia de valor da programação e planeamento, a partir de uma ideia global e consistente de desenvolvimento regional, que não se reduza a um “mero somatório de avisos de concursos e candidaturas avulsas” sem qualquer ligação entre si no espaço e no tempo e rever a dicotomia entre coesão e competitividade que tantos equívocos já ocasionou, pois, as regiões, na sua diversidade, estão obrigadas a converter essa diversidade em vantagem.

Por outro lado, é imperioso antecipar a mudança de ciclo dos fundos europeus e da política de coesão para o período pós-2020. Face à penúria de meios financeiros, na sequência do Brexit, as regiões precisam de mais liberdade para que todo o seu capital humano e material seja adequadamente valorizado por intermédio de um modelo de governo mais autonómico, competitivo e relacional.

Não há que ter medo das regiões assim constituídas, pois as leis da República, os regulamentos da política regional e os algoritmos de Bruxelas continuarão a ser os reguladores da “nova sociedade”. Precisamos de dar uma oportunidade a nós próprios e demonstrar que a regionalização pode corrigir este velho e anacrónico país pendular.

As CCDR são uma infraestrutura administrativa útil para ensaiar o que eu designo como a regionalização minimalista ou regionalização coordenativa. A partir daqui, a regionalização é um processo eminentemente político, pois podem ensaiar-se diversas vias, mais curtas ou mais longas, mais fixas ou mais variáveis, para converter as CCDR em órgãos de governo e administração, seja sob a forma puramente administrativa de Comissão ou Conselho Regional com poderes reforçados, sob a forma de Instituto Público Territorial, de Autarquia Regional ou de Governo Regional, e dotados com as atribuições, competências e recursos provenientes da capital do país.

Nenhuma das soluções ou formatos apresentados está isenta de contestação. Faço, por isso, e desde já, vários avisos à navegação, pois eles criarão, seguramente, muito ruído de fundo.

Em primeiro lugar, o princípio político de “fazer mais e melhor com menos” não passa facilmente como “vetor estratégico” de uma política de regionalização.

Em segundo lugar, as soluções territoriais apresentadas têm consequências diferenciadas no que diz respeito à estrutura corporativa e clientelar.

Em terceiro lugar, a União Europeia reduzirá os meios afetos à política de coesão e à política agrícola comum para o próximo período de programação 2030 que não só se tornarão mais restritivos como porão em causa as propostas territoriais mais onerosas.

Em quarto lugar, a dicotomia competitividade-coesão continuará a dividir os interesses corporativos e a gerar equívocos nas relações litoral-interior, com prejuízo para o país no seu conjunto.

Em quinto lugar, se, entretanto, regressar a instabilidade política e governativa, a reforma do Estado central e a respetiva descentralização para as “regiões de coordenação e desenvolvimento” sofrerão um grave revés e é todo o edifício da organização subnacional do estado que fica posto em causa.

Por último, e é preciso insistir neste facto nesta conjuntura, a falta de atribuições e competências próprias em matéria de relações exteriores vai impedir as “regiões de coordenação e desenvolvimento” de corresponderem, em pleno, ao lançamento de novos instrumentos de política por parte da União Europeia, seja no quadro do mercado único digital, das alterações climáticas, da política energética, da política migratória e demográfica, da política de cooperação e desenvolvimento ou da política de coesão territorial.

Todos sabemos que a organização subnacional do Estado não será uma tarefa fácil. Todavia, posso assegurar que não será por causa das “regiões de coordenação e desenvolvimento”, das CIM ou da valorização do interior, será antes por causa do statu quo corporativo e clientelar que aprisiona o país bipolar há muitas décadas.

Quanto ao resto, se em 1998 a regionalização administrativa poderia ser identificada com o modelo silo e mais despesa pública, hoje, vinte anos depois, com a economia das plataformas digitais, a regionalização é, na sua essência, um novo lugar central e um ecossistema digital onde “fazer mais e melhor com menos” é perfeitamente possível. É, por isso, uma grande oportunidade.

Hoje, a linguagem e a gramática do futuro já incluem um léxico muito variado: territórios-rede e atores-rede, ecossistemas inteligentes de acolhimento, centros partilhados de recursos digitais, utilities digitais e capitalismo popular de pequenas plataformas, redes distribuídas e bens comuns colaborativos, quarto setor e organização social do trabalho, governo dos comuns e comunidades de autogoverno.

É, sem qualquer dúvida, uma grande promessa de futuro.

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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