Crónicas de uma escavação arqueológica: Quem passa por Cacela… (1)

As escavações arqueológicas regressaram a Cacela Velha, no concelho de Vila Real de Santo António, na segunda-feira. O Sul Informação […]

As escavações arqueológicas regressaram a Cacela Velha, no concelho de Vila Real de Santo António, na segunda-feira. O Sul Informação vai acompanhar os trabalhos a partir de dentro, com crónicas semanais escritas pelas arqueólogas Maria João Valente e Cristina Garcia, coordenadoras da campanha, que durará até ao dia 13 de Julho:

 

É difícil ficar indiferente a Cacela-Velha. É um pouco como o ditado (normalmente aplicado a Alcobaça): “Quem passa por Cacela, não passa sem lá voltar”.

Este pequeno núcleo fortificado está implantado num espaço altamente privilegiado do ponto de vista visual, no canto oriental do Parque Natural da Ria Formosa. Dali vista, é belíssima, seja no interior da aldeia, que ainda mantém o encanto típico das pequenas povoações litorais do Algarve Oriental, seja em seu redor, onde a ria se junta ao mar.

Das estruturas de Cacela-Velha, aquela que predomina nos nossos olhos é inevitavelmente a fortaleza. De fundação medieval islâmica, a atual fortaleza setecentista posiciona-se sobre uma arriba junto à barra de Cacela. Dela se pode observar, para nascente, a baía de Monte Gordo até à foz do Rio Guadiana, e, para poente, o canal que conduzia ao porto de Tavira, passando pela zona da Fábrica.

Vista da barra de Cacela e da baía de Monte Gordo, a partir da Fortaleza – Foto de Maria João Valente

Até 1990, os dados arqueológicos e históricos sobre Cacela eram escassos. Conheciam-se algumas estruturas e peças isoladas de cronologias várias, que haviam sido descritas nos fins do séc. XIX e inícios do XX por Sebastião Estácio da Veiga (autor da obra «Antiguidades Monumentaes do Algarve») e José Leite de Vasconcelos (fundador do Museu Nacional de Arqueologia).

Parte do mapa arqueológico do Algarve publicado por Estácio da Veiga em 1886. Aqui se assinala Cacela, com achados da Proto-História e o silo medieval então identificado

Sabemos que, na época islâmica, Cacela se denominava Qastalla Darrag, graças à família que ali habitava, os ibn Darrag. Um elemento desta família, Abu Amr Ahmad ibn Muhammad ibn Darrag Al-Kasttali (958–1030) foi, na sua época, considerado estar “entre os sábios e os poetas de primeiro plano”. Foi também secretário da chancelaria do Califa Omíada al-Mansūr em Córdova. Por seu lado, o geógrafo al-Idrisi no século XII descreveu Cacela como “(…) uma fortaleza construída à beira-mar, bem povoada e há nela muitas hortas e campos de figueiras”.

Na década de 1990 e 2000, intervenções arqueológicas de emergência coordenadas por Cristina Tété Garcia puseram a descoberto vestígios diversos, como fornos romanos e casas de habitação islâmicas, destacando o valor histórico e patrimonial de Cacela. A partir de 1998, uma parceria entre o Parque Natural da Ria Formosa, a Comissão de Coordenação da Região do Algarve e a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António permitiu realizar várias campanhas arqueológicas.

As escavações arqueológicas realizadas em Cacela puseram a descoberto restos habitacionais de época medieval islâmica na plataforma superior (em especial no Largo da Fortaleza), associados a um conjunto de silos, sobrepostos por vestígios da muralha medieval construída após a conquista pela Ordem de Santiago (entre 1238 e 1240). Daqui saíram milhares de materiais arqueológicos, como cerâmicas, restos animais, material de construção, etc.

Silos de origem islâmica no Largo da Fortaleza. Atualmente, estes silos estão cobertos por empedrado. Foto de Cristina Tété Garcia

Fora do perímetro muralhado, na zona imediatamente a leste, numa plataforma inferior na margem da ribeira das Hortas (ou de Cacela), foi escavado parte do Bairro Islâmico do Poço Antigo, que foi abandonado na primeira metade do século XIII. Trata-se de uma zona habitacional alargada que pode corresponder a uma medina de idade almóada (provavelmente fundada no séc. XII). Após o seu abandono, as casas e as ruas deste bairro sofreram um processo de deterioração e foram cobertas de areia.

Sobre estas areias, os novos povoadores cristãos implantaram o cemitério local, também ele parcialmente escavado. Aqui foram identificadas dezenas de sepulturas. Associadas a esta necrópole, foram encontradas estruturas que podem corresponder à primitiva ermida de Nossa Senhora dos Mártires.

Escavações na área do Poço Antigo em 2001. Foto de Cristina Tété Garcia

O aparecimento desta necrópole junto à ribeira das Hortas revela a existência de um lugar de culto, provavelmente anterior à construção da atual Igreja Matriz de Cacela. As Visitações, relatórios das inspeções efetuadas pela Ordem de Santiago nos sécs. XV e XVI, mencionam a existência, nas imediações do Castelo, de uma capela em atividade e respetivo cemitério. Aparentemente, terá sido encerrada ao culto nos sécs. XVII ou XVIII e a sua imagem então trasladada para a Igreja Matriz.

As fontes documentais registam que, quando Cacela foi ocupada pelas forças militares da Ordem de Santiago, foi ali que se estabeleceram as bases de apoio à reconquista do restante território algarvio oriental. A urbe foi então doada por D. Sancho II à Ordem, vindo a tornar-se sede de Comenda que abrangia um amplo território entre o rio Vascão a Norte, o rio Guadiana a oriente, limitando a poente com o termo da cidade de Tavira.

Alguns anos mais tarde, D. Dinis concedeu foral aos povoadores de Cacela, que ocuparam terras e casais, circulavam com os rebanhos ou dedicavam-se à pesca.

Entretanto, o novo castelo de Cacela passou a ser habitado por uma guarnição militar dirigida pelo Capitão-Mor do exército do Rei. Ao lado, durante o período renascentista, foi iniciada a construção da atual Igreja Matriz (também dedicada a Nossa Senhora dos Mártires) e casas para habitação do pároco local.

O grande terramoto de 1755 provocou alterações geomorfológicas e ambientais da orla costeira, como o assoreamento da laguna, a amputação da barreira arenosa que se estendia mais para leste até ao Guadiana, bem como graves destruições das construções, nomeadamente da fortaleza e da igreja de Cacela.

Planta da Fortaleza de Cacela por José de Sande Vasconcelos (1788; cópia disponível em http://purl.pt/762)

De enorme importância estratégica na Idade Média, quando dominava a navegação que ali se cruzava (com destino a Tavira ou ao Guadiana, e na ligação às terras norte-africanas), Cacela foi-se despovoando e acabou por perder a sua função estratégica e portuária. O seu aspeto atual corresponde às obras de reconstrução realizadas na segunda metade do século XVIII.

Vista sobre a atual aldeia de Cacela a partir da área do Poço Antigo, junto à ribeira das Hortas. Foto de Maria João Valente

O que se perdeu permitiu, contudo, a fortuna de ter o rico património de Cacela relativamente bem conservado. Um dos poucos casos no litoral algarvio. Infelizmente, é também uma realidade que este património costeiro se encontra em situação de erosão e destruição iminente. É com essas duas ideias em mente — um património único e a sua iminente erosão — que voltamos (“Quem passa por Cacela…”) agora ao terreno, para ver que segredos e estórias a antiga Qastalla Darrag nos pode contar.

 

Dessas estórias voltaremos a falar na próxima semana. Entretanto, podem saber um pouco mais sobre este novo projeto aqui.
Para informações mais detalhadas podem assistir à sua apresentação no dia 4 de Julho (quarta-feira, às 18h00) no Arquivo Histórico de Vila Real de Santo António (tel. 281510260).
Finalmente, se quiserem visitar a escavação, o Dia Aberto ao público irá decorrer a 9 de Julho, das 10 às 13h00. Serão muito bem vindos.

 

Autora: Maria João Valente
Co-coordenadora dos trabalhos arqueológicos de Cacela.
Professora na Universidade do Algarve e investigadora do CEAACP (Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património).

 

 

 

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