Crónicas de uma escavação arqueológica: Os cemitérios de Cacela-a-Velha

O Sul Informação está a acompanhar os trabalhos a partir de dentro, com crónicas semanais escritas pelas arqueólogas Maria João […]

Escavação de um esqueleto em Cacela
O Sul Informação está a acompanhar os trabalhos a partir de dentro, com crónicas semanais escritas pelas arqueólogas Maria João Valente e Cristina Garcia, coordenadoras da campanha, que durará até ao dia 13 de Julho:

 

Cacela-a-Velha é uma terra de cemitérios.

Há o cemitério antigo com a sepultura de José Gil Cardeira, falecido em 1850. Diz-se que era o homem mais forte daquela região, que matou uma cobra de seis metros de comprimento com as suas mãos. E um ossário de época desconhecida.

Aqui encontram-se também sepultadas muitas vítimas da febre pneumónica de 1917-1918, que assolou a Europa no período da I Guerra Mundial.

Até há pouco tempo, o senhor Rui zelava pelo cemitério novo, onde agora repousa. Homem de olhos claros, bondosos, sempre prestável na ajuda aos arqueólogos de Cacela e disponível para uma conversa.

Sepultura de José Gil Cardeira no cemitério antigo

Os arqueólogos, com esta mania de escavar e ler a História na terra, encontraram um terceiro cemitério em Cacela. Localiza-se no terreno junto da ribeira das Hortas, chamado Poço Antigo. Como começou a aventura? Primeiro surgiu um crânio junto do caminho. “É islâmico, tens de escavar isto”, disseram uns arqueólogos conhecidos.

Primeiro procedimento, encontrar o proprietário e pedir autorização para realizar a escavação arqueológica. O capitão Assunção e a sua esposa distinguiam-se pela educação, cultura e civismo: não hesitaram em ceder a terra para a pesquisa arqueológica.

Estabelecido o acordo e o financiamento entre as entidades, por iniciativa do Parque Natural da Ria Formosa, apoio dos fundos europeus e da Comissão de Coordenação da Região do Algarve, colaboração do Campo Arqueológico de Mértola e a participação da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, estavam criadas as condições para iniciar o projecto arqueológico.

Corria o ano de 1998. Afinal, o crânio não era islâmico. Foram encontrados 6 esqueletos e em 2000 avançava-se com nova campanha arqueológica naquele lugar.

Vista geral da necrópole medieval de Cacela

No total, escavou-se uma área de 212 metros quadrados com 56 sepulturas e foram contabilizadas 74 pessoas.

As sepulturas eram simples fossas escavadas no chão. Os esqueletos estavam em posição de decúbito dorsal com os braços normalmente cruzados sobre o peito ou o abdómen, de acordo com os pressupostos da fé cristã. Foram encontrados alfinetes e pequenos fragmentos de tecido, provavelmente correspondentes a panos de linho ou lã que envolviam os defuntos.

Por vezes, havia o acto intencional de compor a sepultura, depositando, por exemplo, a cabeça sobre uma almofada pétrea, delimitando a cabeceira com blocos ou colocando pedras lateralmente para manter a zona frontal da cabeça virada para nascente.

Um dos esqueletos (a sepultura 39) estava rodeado de vários pregos de ferro e rosetas metálicas, o que levou à conclusão que teria sido enterrado em caixão. O braço direito estava colocado ao longo do corpo e o braço esquerdo dobrado sobre o abdómen. Possuía ainda outra peculiaridade: um pendente metálico com a forma de uma vieira, símbolo dos peregrinos de Santiago de Compostela. Seria um membro da milícia da Ordem de Santiago instalada em Cacela?

A análise antropológica concluiu que seria um indivíduo com uma idade à morte superior a 50 anos e estatura aproximada de 1,64m. Mais tarde, o trabalho de análise no gabinete permitiu que o antropólogo identificasse artrose acentuada na coluna vertebral e desgaste dentário acentuado, com cáries e vestígio de abcesso. O esqueleto apresentava uma lesão no osso frontal (crânio), consequência provável de uma pancada com um objecto de ponta afiada.

Sepultura 39

Um outro esqueleto chamou a atenção dos arqueólogos: na sepultura 31 tinha o pescoço rodeado por um conjunto de três pedras calcárias. Um calhau de maiores dimensões foi colocado de forma a tapar a face superior do crânio. Esta disposição das pedras pode revelar um propósito. Por exemplo, a intenção de evitar que o defunto no momento da ressurreição consiga orientar-se de forma a atingir o arrais do céu ou evitar que o defunto, ainda enquanto matéria, perturbe os vivos.

A este propósito escreveu o Professor José Mattoso: o “ritual de imobilizar o cadáver (era) especialmente necessário, quando o falecido ou falecida tinha poderes especiais de carácter oculto, quando se tratava de uma bruxa ou feiticeiro, quando se tratava de um criminoso, de um suicida ou de alguém morto inesperadamente num acidente”.

Dos 58 esqueletos estudados, verificou-se que metade eram homens, um número elevado de crianças e jovens com idade até aos 16 anos e as mulheres representavam 25% deste grupo.

Na época medieval, a idade das pessoas era repartida pela infância até aos 7 anos, puerícia até aos 14, adolescência até aos 21, mancebia até 50, velhice até 70, sénior até aos 80 anos e até ao fim da vida, decrepitude. A partir dos 14 anos, o/a jovem estaria apto a desenvolver actividades próprias de um adulto.

Após estudo em laboratório, o antropólogo concluiu que o grupo de Cacela desenvolvia trabalhos de elevada dureza física, a que nem as crianças escapavam. Com o aumento de idade aumentava também a prevalência de lesões degenerativas, como infecções, artroses, periostites. As lesões devidas ao esforço continuado e repetitivo de certos músculos abundavam igualmente neste grupo. Que apresentava ainda fortes carências alimentares, demonstradas pelo elevado número de cáries e hipoplasias.

Era recorrente acontecerem acidentes, como quedas, a fractura de um pé ou de uma vértebra. Os acidentes causavam traumatismos diversos mal consolidados e a quase ausência de cuidados médicos naquela época terá causado infecções e sofrimento na vida quotidiana das pessoas.

 

Parcial do desenho da necrópole

Foram realizadas duas datações absolutas em fragmentos de dois esqueletos. Este método de datação é aplicado da seguinte forma: os seres vivos ingerem carbono 14 através das plantas. Estes átomos de C14 mantêm-se constantes durante a vida de um ser vivo. Quando o ser vivo morre, o C14 começa a reduzir no corpo e não volta a ser reposto.

Deste modo, é possível, em laboratório, medir a percentagem de C14 (em osso humano, por exemplo) e calcular a idade do ser vivo.

Ora, os relatórios apresentaram resultados de datações entre 1240-1260. Sabemos pelos documentos antigos que o Castelo de Cacela foi conquistado nos anos de 1238 ou 1240, pelas milícias da ordem de Santiago, ao serviço de D. Afonso III de Portugal.

Assim, o conjunto de sepulturas escavadas em Cacela-a-Velha pode corresponder à primeira geração de povoadores do sotavento algarvio, após a conquista do reino do Algarve. Este grupo possivelmente integrava residentes do castelo, camponeses arrendatários, camponeses contratados, pastores, pescadores, artesãos, algum clérigo e elementos da guarnição militar do castelo.

Homens e mulheres, certamente valentes, que desempenhavam as tarefas que lhes eram incumbidas no espaço doméstico, nas tendas ou nas fangas, nos fornos de pão e de telha, nas terras de lavoura, na serra, no castelo, no porto, no rio, ambicionando ascender na hierarquia social em tempo de reconquista.

Vinte anos passados da primeira escavação arqueológica, regressamos ao terreno.

Procuramos agora a primeira ermida de Nossa Senhora dos Mártires, que estaria naquele local dando protecção aos defuntos.

Procuramos também resposta a algumas questões, como por exemplo: qual a dimensão deste cemitério? Em que período de tempo foi utilizado? Quais seriam as características desta comunidade viva? Como viviam? Como se alimentavam? Haviam nascido em Cacela ou eram oriundos de outros locais?

Mãos à obra!

Sobre Cacela voltaremos a falar na próxima semana (podem ler a crónica anterior aqui). Para informações mais detalhadas podem assistir à apresentação deste projeto no dia 4 de Julho (quarta-feira, às 18h00) no Arquivo Histórico de Vila Real de Santo António (telefone 281510260).

Finalmente, se quiserem visitar a escavação, o Dia Aberto ao público irá decorrer a 9 de Julho, das 10h00 às 13h00. Serão muito bem-vindos.

 

 

Autora: Cristina Tété Garcia
Co-coordenadora dos trabalhos arqueológicos de Cacela
Técnica superior da Direcção-Regional de Cultura do Algarve e investigadora do CEAACP (Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património)
Cristina Tété Garcia escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

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