Pauline Yang: Festival Terras sem Sombra «é algo que nunca esquecerei!»

Concentrada sobre o piano, com os dedos correndo velozmente sobre as teclas e o corpo vibrando ao som da própria […]

Concentrada sobre o piano, com os dedos correndo velozmente sobre as teclas e o corpo vibrando ao som da própria música, amplificada pela inesperada boa acústica de um lagar de azeite. Agachada no meio da erva alta, de olhos postos no chão, à procura da minúscula flor da Linaria ricardoi. De olhos muito abertos, um enorme sorriso na cara, ouvindo as vozes masculinas do cante alentejano, mesmo sem perceber uma palavra. Foi assim que a pianista norte-americana Pauline Yang passou o fim de semana, em Ferreira do Alentejo, em mais uma jornada dupla do Festival Terras sem Sombra.

«Tem sido incrível! Há tanto que aprendi sobre tão diferentes aspetos, mesmo sobre os vários sentidos. Tenho visto e experienciado coisas novas e diferentes como nunca tinha visto em mais lado algum», confessou Pauline Yang, em entrevista ao Sul Informação, após uma manhã de domingo no meio de uma natureza que, confessou, a deixou «maravilhada».

Mas não foram só as plantas raras, delicadas e ameaçadas que viu de perto e fotografou com o seu smartphone, os insetos que, pela primeira vez, deixou caminhar sobre a pele da sua mão ou que observou em pormenor ao microscópio, que entusiasmaram esta que, apesar de jovem, é já considerada uma das melhores pianistas mundiais.

«É também especial a forma muito próxima e a atenção que as pessoas aqui dão aos mais pequenos detalhes das coisas. Isso está a ser muito construtivo para a minha própria forma de ver a vida e o mundo. De repente, percebi como há tanta coisa por aí fora que eu não via ou não tinha tido a oportunidade de ver. É bonito perceber como as pessoas aqui prestam tanta atenção e dão tanto do seu tempo para fazer essas coisas», acrescentou.

Pauline Yang foi a convidada deste fim de semana do Terras sem Sombra, o festival que decorre (sobretudo) no Baixo Alentejo e cruza a música erudita, com o património construído e com a biodiversidade, uma mistura inédita no nosso país.

Com o fim da ligação do festival à Diocese de Beja, devido à intransigência do atual bispo, foi preciso encontrar uma sala alternativa à igreja matriz que costumava ser o palco em Ferreira do Alentejo. E a escolha acabou por recair no novo lagar da empresa Sovena na Herdade do Marmelo, onde se produz o azeite Oliveira da Serra. Mas não é um lagar qualquer: é uma verdadeira peça de arte, desenhada pelo arquiteto português Ricardo Bak Gordon e que faz o milagre de aliar a beleza e originalidade das suas linhas à funcionalidade de uma estrutura industrial.

É uma «nova catedral», como lhe haveria de chamar José António Falcão, diretor-geral do Terras sem Sombra. É que o «fio dourado» do azeite sempre serviu para a liturgia cristã (e judaica) e para iluminar as próprias igrejas.

A grande surpresa, porém, foi a acústica perfeita do espaço. Pauline Yang não cabia em si de contente pelo facto de poder tocar, pela primeira vez na sua carreira, num espaço industrial.

«Foi a primeira vez que toquei num espaço como aquele. É algo que nunca esquecerei. Foi tão criativo, tão único! E também a acústica era belíssima, o piano era excelente», disse, ainda entusiasmada, na sua entrevista ao nosso jornal.

Luís Folque, administrador da Sovena, confessaria, nas breves palavras que disse ao público antes do início do concerto, na noite de sábado, dia 28, ter ficado «com algum receio» quando lhe foi apresentada a hipótese de usar o lagar como venue do concerto. «E a acústica será boa?», perguntou. Muito boa! responde agora Pauline Yang: «consegui ouvir o som de cada nota e isso foi muito especial!», garantiu, na conversa com o Sul Informação.

A vinda da jovem, mas já consagrada, pianista norte-americana ao Terras sem Sombra foi o resultado da parceria do festival com a Embaixada dos Estados Unidos da América. Se no ano passado a ministra conselheira Herro Mustafa plantou um sobreiro em Santiago do Cacém, este ano foi assistir a um concerto repleto de emoção, num local nada habitual.

Fazendo questão de falar em português, a ministra conselheira da Embaixada norte-americana (os Estados Unidos já há algum tempo que não têm embaixador formal em Portugal, sendo essas funções desempenhadas por Herro Mustafa) salientou as boas relações entre os dois países e sobretudo entre a sua Embaixada e este original festival alentejano.

Por seu lado, José António Falcão disse que o concerto era «um retrato das convicções mais profundas de Pauline», que não fica fechada na sua redoma de grande artista, mas tem-se destacado como “embaixadora da Música” em campos de refugiados no Médio Oriente e em hospitais pediátricos, levando a música às crianças e às suas famílias em cenários dramáticos.

O «apoio inestimável» da Embaixada americana ao festival, acrescentou, «celebra a ligação muito íntima entre os dois lados do Atlântico».

No dia seguinte, toda sorrisos, Pauline Yang elogiou o público de Ferreira do Alentejo: «também o público foi muito bom, senti que estava comigo ao longo de toda a interpretação, conseguia sentir a sua respiração e isso é raro! Foi mesmo um grande público».

A pianista norte-americana, que interpretou um programa com diversos compositores, estilos e épocas, do século XVII aos nossos dias, tendo como fio condutor a temática do sentimento na música, ficou a saber que, para muitas pessoas, esta tinha sido a sua estreia num concerto de música erudita e confessou ter ficado «muito contente com isso».

«Também recebi feedback de muitas pessoas que me vieram dizer que, fosse onde fosse que estivessem sentadas, podiam ver as minhas mãos. Para muitas destas pessoas, algumas delas habituadas a ir a concertos, outras nem por isso, foi uma experiência interessante, porque conseguiram ver as mãos, estavam muito próximas».

O concerto foi um tal sucesso que as 210 cadeiras que a organização tinha colocado no meio dos depósitos, dos tubos, das centrifugadoras e outra maquinaria do lagar de azeite acabaram por se revelar escassas. Foi preciso ir buscar mais cadeiras e, mesmo assim, houve muita gente a assistir de pé. No total, umas 300 pessoas terão estado nessa chuvosa noite de sábado no Lagar da Herdade do Marmelo, para ouvir as composições de Bach, Scarlatti, Mendelssohn, Chopin, Brahms, Granados, Liszt, Schumann e Bolcom, interpretadas com mestria ao piano por Pauline Yang.

Ainda mal refeita das emoções de sábado, na manhã de domingo a jovem intérprete, mais a sua mãe que sempre a acompanha, já estavam preparadas para partir para os campos à volta de Ferreira do Alentejo, em busca da minúscula Linaria ricardoi, uma planta de flor delicada que é endémica do Baixo Alentejo, ou seja, que só existe aqui, em zonas onde predominam as terras argilosas e básicas.

Só que o uso de agroquímicos e a expansão vertiginosa da agricultura intensiva – com destaque para o olival super intensivo – estão a pôr em risco a sobrevivência desta planta dedicada e ameaçada de extinção, bem como de todas as outras que a acompanham no seu habitat.

A EDIA, a empresa que gere a mega barragem de Alqueva, no âmbito das suas obrigações de compensação ambiental, tem sido responsável nos últimos anos, pela monitorização desta linária, mas a defesa da planta e do seu habitat começou pela sociedade civil, nomeadamente graças ao trabalho de botânicos amadores como o médico Dinis Cortes, que acompanhou a visita.

Quando, ainda no caminho, à beira de uma estrada, um dos guias, Ivo Rodrigues, descobriu uma pequena orquídea silvestre, Pauline Yang ficou espantada: «mas em Portugal há orquídeas? E até nascem à beira da estrada?»

No meio das ervas altas, sempre maravilhada pela delicadeza da pequena flor da Linaria ricardoi e de outras que ia descobrindo, tentando descobrir os seus nomes graças à folha com informação que lhe tinha sido dada pela engenheira de ambiente Ana Ilhéu, Pauline ia exclamando: «que maravilha! que extraordinário!».

À beira de um campo de trigo, que ondulava com o vento, «como se fosse música» (palavras da pianista), e depois de falar do fado, surgiu a conversa sobre o Cante alentejano. A repórter do Sul Informação e ainda Alexandra Ferreira, da comunicação do festival, explicaram a Pauline o que era esse canto entoado pelas vozes dos homens alentejanos. Alexandra mostrou-lhe, no seu smartphone, a gravação das atuações feitas por um grupo coral na Hungria, em Fevereiro, aquando da apresentação do festival naquele país da Europa Central. E Pauline ficou maravilhada. «Pode ser que, numa próxima visita a Portugal, eu possa ouvir isso», comentou. Mas não foi preciso esperar tanto.

Quando pensava que as emoções deste fim de semana estavam terminadas, no almoço oferecido pela Câmara de Ferreira do Alentejo numa antiga taberna recuperada como museu vivo, de copo de vinho branco na mão, Pauline começou, de repente, a ouvir o som das vozes masculinas de um grupo coral que por ali estava a petiscar…e a cantar.

A pequena pianista foi para o meio deles, olhando-os no rosto quando cantavam, virando a cabeça sempre que uma nova voz se fazia ouvir, não percebendo as palavras, mas, pela amplitude do sorriso e pelo brilho dos olhos, sentindo todas as emoções deste cante, património da humanidade.

Entre o balcão de mármore e as altas talhas de barro para guardar o vinho, na antiga taberna, o almoço fez-se com petiscos, do chouriço a ser assado ali à vista de todos – e que Pauline fotografou -, ao queijo fresco, iscas, peixinho frito, orelha de porco com coentros, alho e azeite, bom pão, bom vinho, e um grande tacho de açorda de beldroegas. Pauline até é vegetariana, mas outros membros da comitiva americana provaram de tudo e adoraram.

No final, Luís Pita Ameixa, presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, manifestava-se satisfeito com mais este fim de semana do Terras sem Sombra no seu concelho e agradado pelo facto de quem veio de longe, com a pianista norte-americana em destaque, ter gostado tanto da jornada.

Mas, apesar do sucesso, há nuvens negras sobre este original festival: Sara Fonseca, diretora executiva, sublinha que o Terras sem Sombra corre o risco de morrer se não tiver mais financiamentos, até das grandes empresas que operam no território e no país. «Para preparar esta edição, tivemos reuniões de angariação de fundos com grandes empresas, como a Galp ou a EDP, que correram muito bem, fizeram imensos elogios ao nosso trabalho…mas depois, na hora de nos atribuírem o financiamento, deram-nos o mesmo que já davam antes…», lamenta Sara Fonseca.

O problema, sublinha, é que «não conseguimos ter em Portugal grupos empresariais fortes que nos ajudem a fazer a preservação destas coisas, que nos ajudem a manter um festival como o Terras sem Sombra. Precisamos da ajuda urgente de todos para garantir que este trabalho de tantos anos, todos os prémios que o festival já ganhou, não vá tudo por água abaixo».

José António Falcão, por seu lado, recorda que a falta de apoio não parte só dos privados. O Estado também não se tem portado bem, de tal forma que este ano, pela primeira vez, o festival não conta com o apoio do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). Porquê? «Porque quando lhes fomos apresentar a nova edição o ICNF apresentou-nos um plano de negócios, queriam ganhar dinheiro com isto», revela, frontal, o diretor-geral do Terras sem Sombra. «Nós respondemos: se nós não cobramos nada às pessoas, se todos dão um pouco de si para que isto se faça, não podemos estar a pagar ao ICNF».

Bem pode o ministro da Cultura escrever, no prefácio do catálogo da edição 2018 do festival, que «o Governo apoia vivamente a continuidade e a sustentabilidade de iniciativas como esta»…A realidade prática é outra e bem diferente, e o Festival Terras sem Sombra, várias vezes premiado a nível internacional, não poderá sobreviver só com…apoio moral.

Este ano, quem apoia efetivamente é a Embaixada da Hungria, que é o país convidado, bem como os municípios por onde o programa passa. E é assim que o festival vai continuando a sua luta pela descentralização da cultura e pela valorização do património local, seja o edificado, seja o ambiental, do Baixo Alentejo.

No próximo fim de semana, ruma a Beja, para andar nos passos de Soror Mariana (na visita cultural de sábado à tarde), render-se às vozes corsas, aparentadas com o cante alentejano (no concerto da noite, não na Sé, como era costume, mas na igreja que hoje está integrada na pousada) e depois ir à descoberta das aves de arribação, na manhã de domingo.

Tudo isto, imagine-se, com entrada livre e gratuita.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Nota: O Sul Informação acompanhou o Festival Terras sem Sombra a convite da organização

 

 

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