Crónicas do Sudoeste Peninsular: a turistificação do espaço rural e uma rede de suporte à dieta mediterrânica

Agora que se prepara para entrar em funções a nova direção da Região de Turismo do Algarve (RTA), esta é […]

Agora que se prepara para entrar em funções a nova direção da Região de Turismo do Algarve (RTA), esta é uma boa ocasião para fazer uma brevíssima reflexão sobre a turistificação do espaço rural algarvio e, nesse contexto, uma referência ao lugar central ocupado pela dieta mediterrânica.

A apelação “Dieta Mediterrânica, Património Imaterial da Humanidade” afigura-se como uma oportunidade única para realizar a modernização da economia local e regional algarvia, em especial a promoção da economia do barrocal-serra algarvio.

Para o efeito, creio que a região precisa urgentemente, no plano da economia experimental, de levar a cabo uma ação-piloto, uma rede de suporte temática e territorial, que possa lançar as primeiras sementes do que será, no futuro próximo, uma política de certificação regional da dieta mediterrânica.

Este é um desafio de longo alcance e um bem comum inestimável para o país e a região do Algarve. Vejamos alguns aspetos do problema em apreço, é um pequeno contributo para a discussão.

 

A história recente da economia algarvia

A estruturação da economia algarvia no último meio século, pelo menos, ocorreu ao longo de quatro linhas paralelas: a linha de costa, a linha urbana da EN125, a linha do barrocal do rural algarvio tradicional e a linha serrana que acompanha, por exemplo, a EN 124 e a EN 2 e que inclui a economia florestal e os produtos derivados da floresta, a economia do montado assim como a economia cinegética.

A história recente é, por demais, conhecida. Devido à hegemonia da economia do imobiliário, nas suas diversas modalidades turísticas e residenciais, o espaço compreendido entre a linha de costa e a linha da EN 125 foi sendo capturado para a atividade imobiliário-turística, tendo como consequência a fragmentação da propriedade rústica, a profusão de equipamentos e infraestruturas e, portanto, a inviabilização económica de muitas explorações agrícolas tradicionais que revestiam características multifuncionais adequadas ao ecossistema mediterrânico algarvio.

Esta pulverização da propriedade rústica e da exploração agrícola tradicional coincidiu, por um lado, com o definhamento do movimento associativo e cooperativo regional e, por outro, com a emergência de um sector comercial muito heterogéneo de onde emergiram as superfícies comerciais, de todas as dimensões, que impuseram regras mais severas de produção e comercialização à economia agroalimentar da região.

A velocidade de implantação do modelo imobiliário-turístico, pelos efeitos cruzados que provocou, não deixou tempo para conceber e praticar uma verdadeira política de desenvolvimento agrícola e rural na região, não obstante o volume de ajudas que foram chegando por via da PAC.

Acrescente-se o agente comercial intermediário que, nos interstícios da pequena economia local, continuou a fazer os seus negócios de oportunidade tirando vantagem das evidentes fragilidades financeiras e comerciais da agricultura familiar, dominante no rural tradicional algarvio.

Acrescente-se, ainda, a desorganização do mercado de trabalho local em consequência da sazonalidade do mercado de trabalho turístico, mais agressivo e mais atrativo.

Esta relação desigual, económica e comercial, mas, também, interprofissional e contratual, conduziu a uma forte descapitalização da agricultura familiar algarvia e, com o tempo, ao seu recuo para a economia informal e, mesmo, ao abandono de muitas pequenas propriedades, ao mesmo tempo que se reduzia a sua relação ecológica e paisagística com os recursos naturais locais da região.

Os sinais mais evidentes são bem conhecidos: muitos terrenos agrícolas expectantes e à espera de valorização urbana, a perda de importância relativa da economia do pomar tradicional de sequeiro e da economia serrana, o crescimento de uma agricultura intensiva e forçada na horto-fruticultura e nos pequenos frutos, mas com pouca vocação associativa, os canais de comercialização e as respetivas margens nas mãos das superfícies comerciais e dos intermediários transportadores, muita dificuldade em implantar as cadeias de produção locais, finalmente, a degradação do património rural imaterial local e regional, por exemplo, da paisagem mediterrânica à arquitetura rural do barrocal-serra algarvio devido, justamente, ao abandono de muitas propriedades rústicas.

 

Uma rede de suporte à dieta mediterrânica

De um ponto de vista teórico-prático, estou convencido de que a construção de uma rede-piloto de suporte à dieta mediterrânica é fundamental para programar e planear a reforma da economia agrícola, rural e regional. Essa rede-piloto pode assumir várias geometrias e naturezas, desde uma micro-rede local muito circunscrita a uma rede de natureza temática e a um território-rede de âmbito mais alargado.

Uma micro-rede pode justificar-se para resgatar uma “semente perdida, uma raça autóctone ou um terroir específico” que podem revestir um valor científico e simbólico extraordinário.

A rede temática é uma rede sobre inventariação e classificação das “práticas alimentares e culturais e os estilos de vida” mais representativos da Dieta Mediterrânica. Uma rede territorial é um território-rede que, em primeira instância, visa compor uma nova economia de rede e aglomeração relevante para a dieta mediterrânica.

Neste sentido, a eleição da Estação Agrária de Tavira como sede do futuro Centro de Estudos da Dieta Mediterrânica seria uma excelente escolha para celebrar o arranque desta rede de suporte tanto mais quanto a Estação Agrária de Tavira dispõe de um espólio valioso de variedades hortofrutícolas que seriam, não apenas no plano simbólico, mas, sobretudo, no plano da biodiversidade local e regional, um ótimo ponto de partida para o lançamento e a promoção da economia da Dieta Mediterrânica.

Como também já escrevi noutra ocasião, estou convencido de que, em primeira aproximação, uma das zonas mais relevantes para este efeito é aquela que encontramos no cruzamento e na área de influência das estradas nacionais N124, N2 e N270.

Assim sendo, a primeira rede experimental de suporte da Dieta Mediterrânica poderia incluir as freguesias de Martin Longo, Cachopo, Barranco do Velho e Querença no alinhamento da N124, o Ameixial, novamente o Barranco do Velho e Alportel no alinhamento da N2 e Alportel novamente, Santa Catarina e Santa Luzia/Barril no alinhamento da N270. No prolongamento destas linhas podíamos ainda acrescentar as aldeias típicas do barrocal como são Alte, Salir e a União das Freguesias de Querença, Tor e Benafim.

Num plano mais programático e inspirada nos princípios de desenvolvimento territorial que sustentam a filosofia da dieta mediterrânica, esta rede de suporte poderia abranger e experimentar as seguintes áreas de trabalho:

– O alargamento das áreas de agricultura biológica e outros modos de agricultura agroecológica,

– O alargamento das atividades criativas e culturais, desde as artes culinária e gastronómica, ao artesanato tradicional, os materiais locais e as oficinas de artes e ofícios;

– A consideração das artes da paisagem e da terra associadas ao turismo de natureza;

– O desenvolvimento dos produtos e serviços turísticos nas tipologias do turismo de saúde e bem-estar para a sociedade sénior;

– O desenvolvimento das atividades ligadas à economia circular e, neste âmbito, a criação de oficinas associadas aos 4R, (redução, reciclagem, reparação e reutilização);

– A promoção das artes do lazer e do recreio, dos espaços pedagógicos, lúdicos e terapêuticos, por exemplo, para a sociedade sénior, onde se incluem os campos de férias e as residências seniores;

– O desenvolvimento das artes multimédia e performativas e a criação de residências artísticas e culturais, assim como os eventos ligados à história local, a literatura oral, a poesia, as paisagens literárias, etc.

Todas estas atividades podem e devem ser objeto de uma “convenção territorial” que passaria a ser a “lei fundamental” do futuro território-rede do Barrocal-Serra.

Uma comissão promotora pode ser o elemento de instigação do projeto tendo em vista criar uma nova inteligência territorial para a sub-região. A experiência do Projeto Querença (2011/2012) pode ajudar.

 

Uma linha de produtos e serviços emblemáticos

Pensemos, por exemplo, na verticalização da cadeia de valor da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sempre numa perspetiva de valorização das economias locais e dos seus ecossistemas mais sensíveis, lá onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico preferido (quem diz cabra diz mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradicional de sequeiro, citrinos, flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.).

A verticalização de uma atividade económica ao longo de uma cadeia de valor deve ser cruzada com uma rede de atividades reticuladas horizontalmente, de tal modo que destes cruzamentos e desta malha possamos derivar uma nova economia de aglomeração e, a partir dela, desenhar um cabaz de “produtos e serviços estruturados” que possamos identificar com uma imagem mais contemporânea e cosmopolita da região.

A título de exemplo, apontamos algumas inovações em matéria de designe de produto obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de produção e as fileiras horizontais da visitação e do consumo, aqui designadas sob a forma de “um dia em”:

– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

– Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

– Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

– Um dia na ria formosa: a observação de peixes e aves na ria formosa, os percursos de natureza pela ria, a gastronomia da ria, sessões sobre a natureza e a vida selvagem da ria e atividades culturais e recreativas a pretexto da ria;

– Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite e o olivoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.

Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos e espetáculos noturnos de fados, de teatro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc..

Se pensarmos nas múltiplas associações técnicas, tecnológicas e culturais entre a produção agrícola, a engenharia alimentar, a logística da distribuição, o marketing territorial e o design e a comunicação teremos um campo imenso de possibilidades para os “produtos e serviços estruturados” em redor da cabra algarvia, frutos silvestres, mel, medronho, cogumelos, ervas aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, etc., para já não falar do universo das “sementes perdidas”, sobretudo na área hortofrutícola, um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à espreita de uma oportunidade.

 

Notas Finais

A economia da região algarvia depende, como sabemos, da estratégia seguida e prosseguida pela indústria do turismo/lazer, em sentido amplo. As condições de funcionamento em baixa densidade, a maioria do território da região, só são possíveis se o turismo/lazer, ele próprio, polinuclear e reticular o seu crescimento pelo interior da região algarvia.

Deve fazer isto por razões de racionalidade económica e não por meras razões de circunstância ou oportunidade, dado que estou convencido de que o futuro da indústria do turismo/lazer depende, também, da diversificação que for capaz de imprimir ao contínuo campina-barrocal-serra.

Se os atores principais desta economia vertical não estiverem à altura das suas responsabilidades, a indústria do turismo/lazer continuará, muito provavelmente, a desequilibrar toda a região, ao mesmo tempo que ficam postos em causa os programas de índole local, rural e sub-regional, supostamente desenvolvimentistas, mas cada vez mais assistencialistas.

Será a Dieta Mediterrânica um foco e um feixe de medidas de política suficientemente fortes e capazes de contrariar os riscos de vária ordem que já hoje afetam o interior algarvio?

Em primeiro lugar, e no que diz respeito ao capital social disponível, hoje e no futuro próximo. É imprescindível fazer algum trabalho de investigação no terreno da rede territorial de suporte que aqui sugerimos e realizar uma pré-qualificação dos atores disponíveis para este efeito.

As juntas de freguesia podem ser, em primeira instância, um ponto de partida com interesse, mas outras estruturas associativas já existentes podem funcionar como os animadores dos pontos da rede. Outro ponto da rede com muito interesse, em matéria de capital social, são todas as iniciativas que podem envolver os jovens saídos das escolas técnicas profissionais e superiores da região.

Em segundo lugar, os valores culturais, patrimoniais, naturais e paisagísticos do mundo rural são um bem público inestimável cuja fragilidade e vulnerabilidade importa contrariar a todo o custo.

A desertificação, as secas prolongadas, os incêndios florestais, a degradação das reservas naturais de futuro, são uma ferida a céu aberto nos ecossistemas agro-rurais da região do Algarve.

Mais uma vez, a rede de suporte da Dieta Mediterrânica pode dizer-nos, em matéria de arquitetura paisagista e engenharia biofísica, qual é o estado da arte e o ponto de partida nesta matéria.

Em terceiro lugar, é preciso acautelar as diversas tipologias de certificação e controlo que podem causar danos significativos na micro e pequena agricultura local.

Importa relembrar, mais uma, vez que a Dieta Mediterrânica é uma apelação internacional que não se resume a ser uma “cultura alimentar da escassez e da natureza hostil”, ela é, também, um estilo de vida e uma antropologia do quotidiano.

Uma abordagem meramente produtivista e economicista da dieta mediterrânica pode ter efeitos contraproducentes e impactos negativos sobre os modos de produção familiar e artesanal.

Finalmente, e no que diz respeito à imagem de marca e à política de imagem, é preciso acautelar que, no futuro próximo, a Dieta Mediterrânica apareça travestida de produtos e serviços turísticos de bom gosto e bom senso muito duvidosos.

Se a imagem de marca da Dieta Mediterrânica for confundida com uma sucessão de eventos mais ou menos turistificados, então o risco de uma dieta kitsch espreitará a todo o momento.

Comentários

pub