Crónicas do Sudoeste Peninsular: O drama dos limites e a tragédia dos comuns

As grandes transições anunciam-nos o drama dos limites e a tragédia dos comuns. A transição ecológica anuncia-nos a incógnita das […]

As grandes transições anunciam-nos o drama dos limites e a tragédia dos comuns. A transição ecológica anuncia-nos a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática, o Antropoceno). A transição digital anuncia-nos a incógnita da inteligência artificial (o advento do transumanismo). A transição de modelo produtivo anuncia-nos a incógnita das migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais, o advento de uma nova geopolítica).

1. O advento de uma nova era geoclimática, o Antropoceno
Já aí está a polémica acerca de um novo regime climático, designado por Antropoceno. As ciências sociais e humanas colam-se mais às ciências naturais em busca de uma explicação, enquanto a variável climatérica deixa de ser uma variável exógena para se converter, cada vez mais, numa variável endógena. A severidade e a hostilidade do clima afetam a nossa vida quotidiana, avisando-nos de que a transição ecológica é um horizonte incontornável de sentido para a vida humana, um sentido de finitude, de limite e responsabilidade.

Eis, pois, a utilidade social do respeito em toda a sua plenitude. Se não respeitarmos a natureza, não haverá coevolução benigna homem-natureza e o nosso quotidiano poderá transformar-se num verdadeiro inferno.

2. O advento da era digital
A segunda grande transição diz respeito à transformação digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade e transgressão, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade.

A informação bruta produzida pelas tecnologias da informação e comunicação é a matéria-prima do século XXI e a economia crowd a nossa principal força propulsora. Para além disso, a transformação digital arrisca-se a ser uma verdadeira revolução antropológica.

3. O advento de uma nova geopolítica das migrações
A terceira grande transição diz respeito ao modelo produtivo, aos mercados de trabalho e às grandes migrações: de pessoas que buscam trabalho e refúgio, de bens e serviços que buscam a melhor deslocalização para serem produzidos, de capitais que enlouquecem em busca da melhor rentabilidade, de plantas e animais que buscam novos ecossistemas e habitats para poderem sobreviver.

Face a um novo padrão de escassez e conflito motivado por estes fluxos migratórios, estamos a falar, também, de uma nova era geopolítica de consequências absolutamente imprevisíveis. É verdadeiramente uma luta pela vida.

4. Convergência e divergência das transições
E neste ambiente a três dimensões, será que os seus principais protagonistas têm consciência, em toda a sua plenitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência. É certo, há muitos sinais contraditórios e suspeições recíprocas. A comunidade ecológica suspeita da arrogância tecnológica e digital, enquanto os atores do digital, marcados pela desmaterialização e a eficiência, se consideram ecológicos por natureza.

As duas transições desencadeiam círculos virtuosos e círculos viciosos e pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas. Por outro lado, e face a estas duas transições, a perceção do risco fica de tal modo vulnerável e instável que as migrações acabam por acelerar o metabolismo global e sistémico das três transições ao mesmo tempo que provocam ondas de choque em todas as direções. Veja-se, por exemplo, a conexão cada vez mais intensa entre as alterações climáticas, os fluxos de refugiados e emigrantes e os movimentos populistas e racistas na Europa.

5. A ambiguidade e duplicidade das grandes transições
Face ao advento destas grandes transformações, que nos transportam para lá das fronteiras nacionais convencionais até ao universo da extra-territorialidade, estamos perante uma realidade emergente muito complexa sem direção e linha de rumo conhecidas. Neste imenso turbilhão magmático, a ambiguidade e a duplicidade são, para já, as principais características deste movimento civilizacional tridimensional.

O anúncio de uma nova era geoclimática designada de Antropoceno, o anúncio da chegada de um ponto de singularidade em 2045 em matéria de inteligência artificial, bem como o advento de um transumanismo e uma nova biopolítica, a iminência de uma nova guerra fria no horizonte e a provável conexão/colisão entre os impactos das grandes migrações transcontinentais e o futuro das democracias liberais tal como as conhecemos no mundo ocidental, são algumas das linhas vermelhas que impendem sobre a governança mundial do próximo futuro.

A temperatura política destas grandes tempestades anunciadas e a geopolítica que lhes está associada não deixam muito espaço aberto para abordar serenamente os assuntos da transição e da convergência entre ecologia, economia e tecnologia. Vejam-se os casos recentes da COP 21, da crise do multilateralismo, do Facebook e da violação de direitos fundamentais, da escalada do conflito diplomático com a Rússia, da nova corrida aos armamentos, ou o caos em que se encontram continentes inteiros à beira do desastre humanitário.

No plano oposto, em múltiplas iniciativas empreendidas à escala humana, é possível entrever com clareza o outro lado do mundo. Falo das abordagens colaborativas e solidárias para explorar a convergência das transições. Trata-se de privilegiar a economia das multidões sob a forma de plataformas coletivas, utilizando as tecnologias digitais para promover a inteligência coletiva territorial à escala humana local e regional.

Com efeito, a ecologia, a economia e a tecnologia poderão convergir em muitas áreas. Por exemplo: as economias de energia e redução das pegadas respetivas, ao serviço da intermobilidade e contra a obsolescência e o desperdício, ao serviço da natureza pela aplicação da política dos 4R (redução, reciclagem, reutilização e reparação), pela mobilização e participação dos consumidores e cidadãos, pelas economias de proximidade e os consumos partilhados e colaborativos, pelas dinâmicas de inovação social inclusiva e o desenvolvimento do chamado 4º setor, pela smartificação dos territórios e sua inteligência coletiva, pelas políticas de abertura e livre acesso de dados e respetiva segurança privada. A teoria dos bens comuns e a partilha de responsabilidade que algumas destas áreas implicam serão, sem dúvida, um bom pretexto para experimentar o governo dos comuns colaborativos.

6. O drama dos limites e a tragédia dos comuns
Em todos os casos referidos anteriormente, sobressai o “drama dos limites e a tragédia dos comuns”. Onde colocamos os limites, como responsabilidade política inalienável, e até onde usamos os comuns, como governo colaborativo essencial, são dois desafios que não podemos abordar de ânimo leve.

No tempo de Karl Polanyi (1944) o drama dos limites, a tragédia dos comuns e a noção de risco moral não tinham o alcance e a amplitude que têm hoje. Além disso, o progresso e a utopia estavam à sua frente, hoje, porém, à nossa frente, parece estar uma mistura acre de ansiedade e distopia. Por isso, e em face desta transição tridimensional, o “drama dos limites e a tragédia dos comuns” avisam-nos para as seguintes interrogações:
– Será que, perante o “drama dos limites e a tragédia dos comuns”, a transição ecológica contribuirá para repolitizar o nosso tempo, recolocando a equação do tempo no registo certo?
– Será que, ao contrário, a transição e a adição digitais contribuirão para despolitizar as nossas relações pessoais e sociais, vistas, cada vez mais, como egoístas e narcísicas?
– Será que o medo, a ansiedade e a insegurança transformarão a esfera pública num espaço de transação de inúmeros riscos, ameaças e perigos que põem em causa, constantemente, a nossa confiança e reputação, uma espécie de grande irmandade entre o Big Data e o Big Brother?
– Será que os principais protagonistas da política contemporânea têm consciência, em toda a sua amplitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência?

Tópicos ou “pontos de singularidade” para reflexão futura
Como não tenho respostas para estas interrogações e como também não tenho a certeza sobre se se trata apenas de uma conjunção infeliz de protagonistas ou se, pelo contrário, estamos a assistir ao “condicionamento de uma política do medo” que interessa a imensas corporações e grupos de interesse, deixo aqui alguns tópicos para reflexão futura, se quisermos, vários “pontos de singularidade” que, de resto, já nos acompanham há algum tempo.
– Estamos, claramente, colocados entre a fragmentação geopolítica e geoestratégica, a sair do multilateralismo do pós-guerra e a entrar numa nova era de equilíbrio de poderes e áreas de influência.
– A corrida ao ciberespaço e as várias encenações cibernéticas em redor da segurança e da insegurança serão um dos principais scripts do próximo futuro.
– Os episódios e as ocorrências climatéricas graves e severas tornar-se-ão mais intensas e mais frequentes minando a confiança e a reputação dos estados e das organizações internacionais.
– As guerras por procuração, os refugiados ambientais, a fome e as epidemias, o colapso dos mercados de trabalho e da ajuda internacional estarão na origem de grandes fluxos migratórios.
– As democracias iliberais, a crise da representação política e os fascismos sociais de várias colorações tomarão conta da ocorrência em muitos países, praticando uma política do condicionamento e do medo (veja-se a recente reeleição do governo húngaro).
– A transição ecológica será uma das primeiras vitimas desta nova geopolítica e geostratégia das áreas de influência, a outra vítima serão as políticas migratórias e o acolhimento dos fluxos migratórios.
– O progresso da inteligência artificial e a singularidade transumanista acontecerão inelutavelmente, à mistura com uma despolitização generalizada por via da alienação e adição digitais.

Enquanto tudo isto acontece, as democracias liberais e participativas, a sociedade do conhecimento, a economia das multidões e das plataformas colaborativas preparam os próximos combates contra os nacionalismos, os populismos, os autoritarismos, os racismos e o regresso em força dos fascismos mais variados. O próximo combate, já anunciado, acontecerá a propósito e por causa de diversas jurisdições e regulações em matéria de proteção de dados pessoais (Diretiva da União Europeia).

A terminar, e para que fique registado, o governo francês de Emmanuel Macron criou dois novos ministérios designados, respetivamente, ministério da transição ecológica e solidariedade e ministério da coesão territorial e, ainda, uma secretaria de estado para a transição digital.

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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