Crónicas do Sudoeste Peninsular: A inteligência coletiva territorial, a experiência dos Grupos de Ação Local

Estamos no quinto exercício de programação e execução de fundos estruturais europeus (2014-2020). Na minha modesta opinião, estamos a cometer, […]

Estamos no quinto exercício de programação e execução de fundos estruturais europeus (2014-2020). Na minha modesta opinião, estamos a cometer, pela quinta vez consecutiva, o mesmo erro de avaliação e planeamento estratégico em matéria de agricultura, desenvolvimento rural e administração do território.

De facto, sem uma vigorosa política de desenvolvimento regional ao nível das NUTS II faltará sempre um centro de racionalidade a uma escala suficiente para dar profundidade, espessura e continuidade a uma política integrada de desenvolvimento territorial.

Tudo o que fica abaixo desta linha de intervenção NUTS II, nos planos local, intermunicipal e sub-regional, não tem a consistência e a sustentabilidade suficientes para inverter a tendência pesada de abandono e desertificação que se verifica há décadas em muitas regiões e concelhos de Portugal.

Para as câmaras municipais, porém, este “parece ser” o melhor dos mundos, pois ficam investidos em pivots de distribuição de fundos via associações de municípios, empresas e fundações municipais, associações de desenvolvimento local e comunidades intermunicipais.

Por outro lado, estigmatizámos de tal modo a “questão regional” que qualquer evolução nessa direção se assemelha a uma “desmunicipalização perigosa”. Ou seja, preparámos a armadilha para nós próprios.

 

Uma excessiva municipalização do desenvolvimento territorial

Para o período de programação 2014-2020 permanecem as dúvidas de sempre, que, de resto, foram confirmadas junto dos nossos interlocutores, as associações de desenvolvimento local (ADL). Eis algumas dessas dúvidas:

– Uma programação muito orientada para “maximizar gavetas de financiamento”;
– Uma excessiva municipalização das estratégias e dinâmicas de investimento territorial;
– As novas orientações pró-agricultura não são facilmente apropriáveis pelas ADL;
– A desvitalização técnica das direções regionais de agricultura é um sério problema;
– A repartição de tarefas entre atores associativos e institucionais não é muito clara;
– As ADL, elas próprias, assistem a uma desqualificação do seu quadro técnico;
– As parcerias locais são, muitas vezes, um simulacro de participação;
– Os GAL/ADL precisam de mais criatividade para atrair atores exteriores às regiões;
– Os custos de contexto ligados à territorialização das políticas públicas são um labirinto;
– Os atores não estão preparados para criar economias de aglomeração multilocais.

Se tivermos presente, na nossa análise, este enquadramento policontextual pouco acolhedor, vamos perceber mais facilmente a transição do “Programa Leader” para a “Abordagem Leader” e, em particular, a sua última fase, o denominado desenvolvimento local de base comunitária (DLBC).

Nos termos do convite para a apresentação de candidaturas, o Desenvolvimento Local de Base Comunitária (DLBC) visa promover, em territórios específicos, a concertação estratégica e operacional entre parceiros, focalizada no empreendedorismo e criação de postos de trabalho.

A história é bem conhecida. Nos últimos 25 anos, percorremos o caminho que nos trouxe do “Programa de Iniciativa Comunitária Leader até à abordagem Leader no quadro dos programas nacionais de desenvolvimento rural”.

O Leader nasceu em 1991, gerou 20 Grupos de Ação Local (GAL) no primeiro período entre 1991-1993, 48 GAL no segundo período entre 1994-1999 e 52 GAL no terceiro período entre 2000-2006.

Com o fim do programa Leader em 2006, seguiu-se a “abordagem Leader” no quadro da programação 2007-2014 e no âmbito do eixo 4 do programa de desenvolvimento rural, que marcou uma fase de “programação mais dependente”.

25 anos depois, quisemos saber onde está e como está a inteligência coletiva adquirida pelos territórios GAL/ADL que beneficiaram direta e indiretamente dos apoios públicos nesses quatro períodos de programação.

 

O que é a inteligência coletiva territorial (ICT)?

Para o efeito, elaborámos um guião de entrevista sobre a inteligência coletiva (ICT) dos territórios GAL/ADL com base nos seguintes pressupostos teórico-práticos:

– A ICT é variável com a natureza dos associados das ADL/GAL
– A ICT é variável com a periodização dos ciclos de vida das ADL,
– A ICT é variável com a composição das equipas técnicas e a liderança das ADL,
– A ICT é variável com a eficácia reticular e relacional das parcerias locais,
– A ICT é variável com a estratégia escolhida e a autonomia financeira conseguida,
– A ICT é variável com os sinais distintivos, a imagem de marca e a reputação externa,
– A ICT é variável com o mix operacional “institucionalização vs empresarialização”,
– A ICT é variável com a sua política de internacionalização e relações exteriores,
– A ICT é variável com a estratégia comunicacional e afectiva prosseguida.

Com base neste corpo de princípios, elaborámos um guião de entrevista semi-diretiva às ADL, que aplicámos nas associações do Algarve, do Alentejo e do Centro e Norte interiores.

Eis as questões principais que formulámos:

1. Quem são os fundadores da ADL: individuais e/ou institucionais?
2. Qual o ciclo de vida da ADL: ligado ou não à periodização dos QCA/QREN?
3. Quem é a equipa ADL: a mesma composição ou composição variável?
4. Quem exerce a liderança: quem “manda na ADL”, quais as “ligações perigosas”?
5. Qual a capitalização da ADL: recursos próprios, candidaturas, endividamento?
6. Quais as parcerias GAL: uma ligação real à economia local ou mero simulacro?
7. Qual o ADN da ADL: qual a imagem de marca e o que faz o prestígio da ADL?
8. Qual a EDL da ADL: navegação à vista ou programação/planeamento plurianuais?
9. Quais os sinais distintivos territoriais (SDT): quais os SDT de que nos orgulhamos?
10. Quais as “limitações inerentes ao modelo ADL”: e a sustentabilidade do modelo?
11. Qual a estratégia de comunicação da ADL: discrição ou visibilidade?
12. Quais os principais desafios do próximo futuro: “dentro da caixa ou fora da caixa”?

 

Os primeiros resultados preliminares do Sistema GAL/ADL

Das entrevistas realizadas (Centro e Norte Interior, Alentejo e Algarve), o que se pode recolher desde já pode ser descrito do seguinte modo:

1) Há uma municipalização do “sistema GAL/ADL”, mais evidente no Norte, menos evidente no Sul, o que condiciona e diferencia as respetivas estratégias de desenvolvimento local,

2) Há uma periodização do ciclo de vida dos GAL/ADL que acompanha a sucessão dos diferentes programas Leader, com mais autonomia até ao Leader+ e menos autonomia com os “programas nacionais” de desenvolvimento rural;

3) As contribuições do sistema GAL/ADL são modestas na sua expressão quantitativa ou financeira, mas o valor imaterial e simbólico supera de longe o valor material da “produção local”, uma contribuição nem sempre reconhecida;

4) As parcerias locais são “um quebra-cabeças”, mais um ritual para cumprimento de formalidades deliberativas e menos “um ambiente acolhedor” para a inteligência coletiva territorial (ICT); a liderança colegial inter pares nem sempre produz os resultados esperados;

5) As lógicas de integração complementar entre programas são aquelas que os regulamentos em vigor, os recursos humanos e os meios financeiros disponíveis autorizam; não é possível fazer e aplicar programação plurianual com instrumentos que são “frequentemente descontinuados”;

6) O ADN dos “territórios GAL/ADL” está muito ligado aos recursos imateriais, em especial, a animação, formação e promoção, por um lado, as marcas, os eventos e o touring, por outro; os sinais distintivos territoriais (SDT) têm cada vez mais a ver com estes valores intangíveis;

7) No que diz respeito às “limitações inerentes” ao associativismo local e territorial no período 1991-2016, as referências são quase unânimes: uma persistente “autonomia sob tutela ou condição”, uma subsidiação excessivamente institucionalizada, uma baixa qualidade do capital social disponível, um baixo efeito aglomeração das ADL, uma baixa empresarialização das ADL (não se faz sentir o efeito grupo empresarial), uma baixa territorialização das políticas públicas regionais (o efeito complementaridade e integração);

8) No que diz respeito à capitalização do “sistema GAL/ADL”, as referências são mais variáveis: a tutela municipal é um arranjo de conveniência, a empresarialização do “GRUPO ADL” não é uma ideia feita, o ajustamento do sistema GAL/ADL é necessário, mas o associativismo do 2º grau para criar músculo e mais centralidade não é ainda uma ideia adquirida, a imaginação criativa para operações inovadoras de engenharia financeira não é ainda uma prática comum;

9) Quanto ao futuro, as dúvidas prendem-se com a sustentabilidade do “sistema GAL/ADL7DLBC”, uma vez que o ajustamento operado durante o programa da Troika não foi corrigido pela programação 2014-2020, onde se incluem as DLBC: sem capitalização própria, a “economia GAL/ADL” não é sustentável, sem novos atores empresariais exteriores ao território GAL/ADL a formação do “GRUPO ADL” não é verosímil, sem lideranças esclarecidas, o associativismo territorial do 2º grau não parece possível, por último, o excesso de municipalização que é veiculado pela constituição das comunidades intermunicipais não permite valorizar as parcerias GAL/ADL e o “sistema multilocal” permanece uma incógnita;

10) Finalmente, “o sistema GAL/ADL/DLBC”, apesar da preocupação com o empreendedorismo, o emprego e a inclusão social, padece dos mesmos vícios que já antecipámos nas conclusões preliminares atrás referidas; o sistema produz mais dispersão do que aglomeração e os atrasos verificados na implementação de todo o sistema apenas confirmam os nossos receios, validados, de resto, pelos nossos interlocutores.

 

Notas Finais

Há, indiscutivelmente, uma memória e uma inteligência coletiva territoriais (ICT) formadas entre 1991 e 2016 por ação dos vários programas aplicados: falamos de uma imagem de marca associada ao território LEADER/GAL/ADL, uma cumplicidade entre os parceiros GAL/ADL, um modelo LEADER/GAL reconhecido pelas populações e autoridades, projetos emblemáticos que são o testemunho vivo dos programas aplicados, atores locais que são a memória viva desses programas, uma inteligência coletiva territorial que é testemunhada amiúde pelos herdeiros desses programas.

Não obstante todos estes ativos territoriais, e no que diz respeito à formação da ICT, existem quatro riscos maiores que será preciso levar em linha de conta e prevenir:

– Em primeiro lugar, a falta de aliados externos e, desde logo, uma aliança externa fundamental, que deverá servir para formar uma “rede de assistência técnica” às DLBC a partir dos contributos das associações de agricultores, da administração regional da agricultura e dos institutos politécnicos e universidades, isto é, precisamos de um ator-rede dotado de ICT para este efeito;

– Em segundo lugar, precisamos de evitar a todo o custo a “descontinuação da política de coesão territorial”, sobretudo no que diz respeito à integração e complementaridade dos seus diversos instrumentos e, em especial, ao efeito âncora desempenhado pelo investimento público; mais uma vez precisamos de um ator-rede dotado de ICT para providenciar essa reticulação;

– Em terceiro lugar, precisamos de evitar a todo o custo a “cacofonia territorial e o fracionamento dos interesses” que poderão advir de um congestionamento territorial formado pela constelação de municípios, associações de municípios, comunidades intermunicipais, GAL/ADL, CCDR/NUTS II, NUTS III, DLBC, AIDUS, etc; não há ICT que resista a esta cacofonia territorial;

– Finalmente, precisamos de um “centro de racionalidade territorial” ao nível NUTS II que seja competente para transformar a cacofonia em sinfonia territorial; é esta inteligência coletiva territorial do ator-rede NUTS II, que faz a multi-escalaridade e a governança dos diversos programas, a chave para o sucesso das intervenções sub-regionais DLBC.

Estas são as conclusões preliminares e provisórias do nosso trabalho sobre a formação da inteligência coletiva territorial (ICT) no quadro do associativismo de base territorial do sistema GAL/ADL.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

Comentários

pub