Um livro que é «mais do que um pedaço da longa vida» de Margarida Tengarrinha

«Este é um livro que é mais do que um pedaço da minha vida, longa, prestes a atingir 90 anos», […]

«Este é um livro que é mais do que um pedaço da minha vida, longa, prestes a atingir 90 anos», disse Margarida Tengarrinha, no lançamento, na sua terra natal de Portimão, do livro quase autobiográfico «Memórias de uma Falsificadora», que acaba de ser editado pela Colibri.

A obra, que tem como subtítulo «A Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal», fala, pela primeira vez de uma forma aprofundada e na primeira pessoa, de um aspeto particular da vida clandestina onde, entre os anos 50 e 70 do século passado, tantos militantes comunistas mergulharam, para combater a ditadura salazarista: o trabalho dos falsificadores, que produziam os documentos que, tantas vezes, eram a diferença entre prisão e liberdade e até entre morte e vida.

Um trabalho onde se incluiu com brilhantismo Margarida Tengarrinha e o seu companheiro José Dias Coelho, ambos artistas que o regime de então expulsou da Escola Superior de Belas Artes.

«No caso do casal Tengarrinha-Dias Coelho, a construção destas outras identidades dos clandestinos foi vivida não apenas enquanto protagonistas delas, mas como construtores delas, isto é, como falsificadores de identidades», diz Manuel Loff, no prefácio da obra.

Ou, como disse a investigadora Maria João Raminhos Duarte no lançamento do livro, no Museu de Portimão, «a clandestinidade vai ser marcante na vida de Margarida Tengarrinha», que «assume novas identidades, transforma-se em outras personas (foi Marta, Beatriz, entre outras). Alexandre Castanheira diria que Margarida Tengarrinha outra-se. Mas, mais do que isso, no seu trabalho clandestino, vai para além da sua persona e constrói outras identidades, sendo uma fazedora de identidades alheias».

«O jovem casal de artistas montou um fabuloso aparelho de falsificação de documentos, por cuja oficina passaram os mais emblemáticos militantes do PCP para elaboração de documentos para fugitivos, procurados e clandestinos do Partido», acrescenta Maria João Raminhos Duarte.

E, nesses tempos em que a tecnologia era ainda rudimentar, sublinha também a investigadora, «a tarefa e a responsabilidade eram gigantescas», tendo valido ao casal Tengarrinha-Dias Coelho a sua habilidade de artistas: «a minúcia do trabalho, verdadeiramente artesanal, e o domínio de velhas e novas técnicas (linogravura, xilogravura, gravação em metal, carimbos de borracha e selos brancos) foi de excelência».

Com o auditório do seu Museu de Portimão cheio de amigos, no lançamento desta sua obra que disse ser «a última», Margarida Tengarrinha explicou que «chamar-lhe livro de memórias é uma forma simplificada de colocar as coisas», já que o que pretendeu foi «acima de tudo falar daqueles a que chamo heróis anónimos».

«No percurso da minha vida na clandestinidade, e ainda foram muitos anos, reparei que muitas e muitas pessoas que nos deram apoio, que nos acolheram nas suas casas, cujos automóveis ficaram ao nosso dispor para nos transportar de uma reunião para outra, de um encontro para outro, muitos deles – a maior parte deles até! – nem eram comunistas. Por isso, lhes chamo amigos e amigas dos tempos difíceis», disse a autora.

«São pessoas cujo apoio à nossa luta foi fundamental para que ela fosse para a frente. São esses que são muito menos conhecidos. Achava que havia um lapso: falar daqueles que nos deram apoio inestimável, sem esperar nem honras, nem glórias, mas que o fizeram generosamente, arriscando-se!».

Esses anónimos, que «solidariamente e com muito risco amenizaram a vida dura de muitos clandestinos», foram «médicos, parteiras, compagnons de route, amigos», tinha já recordado a investigadora Maria João Duarte.

Também heroínas anónimas, na opinião de Margarida, eram as famílias dos presos da PIDE, que foram, eles próprios, «grandes heróis». «Mas esquecemo-nos que, por trás deles, apoiando-os, indo a caminho das prisões, indo até fora do país, ao Tarrafal, houve famílias de presos que sofreram praticamente tanto como eles. A maior parte dessas pessoas não foram torturadas. Mas viram as nódoas negras dos seus filhos e das suas filhas, receberam roupas deles com sangue, fizeram as suas encomendas com alguma comida e livros para lhes dar algum conforto. E quantos deles tiveram os seus filhos mortos, assassinados. É dessas pessoas que eu falo, é a eles que eu homenageio». É que, frisou, «as famílias dos presos políticos foram torturadas também…de outra maneira».

 

Oiça aqui, na íntegra, a intervenção de Margarida Tengarrinha:

 

A sessão no Auditório do Museu de Portimão foi marcada pela emoção, entre amigos, tendo começado com o Grupo Coral Adágio, dirigido pelo Maestro António Alves Pereira, a interpretar, a pedido de Margarida Tengarrinha, três peças emblemáticas de Fernando Lopes-Graça: «Acordai!», «A Ronda» e «A Nossa Jornada», entoadas em conjunto por muitas das pessoas que enchiam o auditório.

Muitas dessas pessoas eram seus antigos e atuais companheiros de luta, admiradores de longa data, bem como membros do Grupo dos Amigos do Museu de Portimão, associação da qual Margarida é fundadora e vice-presidente da Assembleia Geral, mas também funcionários do próprio Museu, com quem a autora tem trabalhado, de forma generosa, nomeadamente no setor de Restauro e Conservação.

Margarida Tengarrinha aproveitou o lançamento do seu mais recente livro para agradecer a quem para ele contribuiu, salientando que «foi por insistência de muitos dos Amigos do Museu de Portimão» que o escreveu. «Foi o seu incitamento que me deu alguma força para escrever este livro, que eu já não pensava escrever».

«Este livro tem muitos colaboradores e muitos padrinhos», frisou. Agradeceu explicitamente a Maria do Vale Cartaxo, sua amiga e que fez a primeira e exaustiva revisão, bem como a Silvestre Lacerda, diretor do Arquivo Nacional/Torre do Tombo, em cujo gabinete em Lisboa foi feito, com a sua ajuda, muito do trabalho de pesquisa, ou ainda a Manuel Loff, que assina o prefácio.

Assim como agradeceu a Fernando Mão-de-Ferro, das Edições Colibri, pela sua «paciência enorme, pelo apoio e generosidade muito particular comigo».

Em resposta, Fernando Mão-de-Ferro manifestou-se «um felizardo como editor, ao poder conhecer e editar um livro tão importante como este da Margarida Tengarrinha».

Margarida falou ainda, com emoção (mal) contida, das suas filhas, Teresa e Guida, «que me dão todo o apoio, ultrapassando ressentimentos pelos anos de separação forçada e pela longa e dolorosa ausência, difícil de preencher».

Por seu lado, Isilda Gomes, presidente da Câmara, depois de chamar à autora «pedaço da nossa história», salientou que «livros como este são importantíssimos, porque muitos dos jovens de hoje pensam que tudo isto foi uma invenção, que foi muito fácil de conseguir a Democracia, que ela já apareceu assim como a temos, de repente». E José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão, ao qual, como salientou, Margarida Tengarrinha está «intimamente ligada», evocou sobretudo a amizade que os une.

Será que escrever estas memórias, recordando também episódios tão marcantes a nível pessoal, como a doença terminal da sua mãe, que não pôde acompanhar por já estar na clandestinidade, a separação das suas filhas ou a morte brutal do seu companheiro José Dias Coelho, morto a tiro pela PIDE, numa rua de Lisboa, nas vésperas do Natal de 1961, foi uma espécie de catarse para Margarida Tengarrinha?

Na brilhante apresentação que fez, a historiadora Maria João Duarte falou sobre isso. «Na mitologia grega, tratar a memória e curar as experiências traumáticas que esta transporta era, precisamente, um dos objetivos da História. Paul Ricoeur diz-nos que, para permitir que o passado dê lugar ao presente e ao futuro, é importante fazer um “trabalho de memória”. É isso que Margarida Tengarrinha faz em “Memórias de uma Falsificadora”. Não é uma tarefa nada fácil. O filósofo compara-o a um verdadeiro “trabalho de luto”».

Mas, salienta Maria João Duarte, «História e memória não são, porém, a mesma coisa. A memória apoia-se numa experiência vivida de um passado que deixou marcas nos atores, enquanto a História é o conhecimento e interpretação dessa realidade, através de todas as fontes disponíveis. Por isso, a História tem um papel de equidade e de verdade, para temperar a exclusividade e a fidelidade das memórias particulares. A História pode contribuir para transformar uma memória infeliz em memória pacificada».

«O trabalho de recuperação e de fixação das memórias é, assim, um duplo trabalho de recordação e de luto, que assegura a ligação entre o passado e o futuro, bem como a relação entre as gerações. Margarida Tengarrinha aprendeu isso intuitivamente e, em boa hora, iniciou a sua escrita memorialística. Fá-lo por si, por uma necessidade imperiosa, mas acaba por contribuir para o resgate coletivo da memória da Ditadura, tantas vezes banalizada e branqueada».

 

Oiça aqui, na íntegra, a apresentação de Maria João Raminhos Duarte:

 

E sobre o livro «Memórias de uma Falsificadora» e as histórias que conta, algumas delas inéditas? Caberá ao leitor descobrir, ao longo das suas cerca de 180 páginas, ilustradas com fotografias e imagens que, na maioria das vezes, são aqui mostradas pela primeira vez. A história que é contada, essa, talvez possa ser resumida em duas frases que a autora escreve: «Éramos jovens e queríamos um mundo melhor», «éramos jovens e queríamos a Liberdade».

O livro, que custa 12 euros, já pode ser comprado no site das Edições Colibri, clicando aqui.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

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