Último viveirista de Cacela Velha não produzirá mais ostras enquanto não fizerem «alguma coisa por esta ria»

Jorge Minhalma já era, há alguns anos, o último produtor de ostras de Cacela Velha. Há uma semana, depois da […]

Jorge Minhalma já era, há alguns anos, o último produtor de ostras de Cacela Velha. Há uma semana, depois da tempestade Ema ter assolado a costa algarvia, decidiu deixar de lutar contra as muitas adversidades que vem enfrentando – e que afastaram muitos outros desta atividade -, deitou ao mar as 400 mil ostras que tinha no seu viveiro e desistiu. As bancadas e sacos, esses, vão ficar guardados, longe de água, e só voltarão a ser utilizados «no dia em que alguém fizer alguma coisa por esta ria».

A ria de Jorge Minhalma é a de Cacela Velha, a enseada frente a esta aldeia histórica que marcou, durante séculos, o final da Ria Formosa, a Nascente. Foi nela que explorou, nos últimos 20 anos, dois viveiros que já antes haviam pertencido ao sogro, que os recebera de seu pai. Uma herança passada de geração em geração que termina agora, debaixo da areia que entrou na ria por uma barra aberta em 2010, com o intuito de ajudar os viveiristas.

«O temporal foi a gota de água. O assoreamento da Ria, naquela zona,  já se arrasta há alguns anos, desde que abriram a barra. O temporal deu o golpe final. Tenho o meu viveiro com mais um metro de altura. De uma maré à outra, as ostras só conseguem apanhar água meia hora. É impossível sobreviverem estando só esse tempo debaixo de água», explicou Jorge Minhalma ao Sul Informação.

Sentado na mesa do estabelecimento comercial que explora em Tavira – «antes este era o armazém do meu negócio de compra e venda de peixe, que tive de deixar» -, o último viveirista de Cacela Velha explicou o que o levou a desistir.

«Para estar a perder a produção, bancadas, sacos e tudo o resto, a melhor solução foi deitar ao mar os juvenis e ficar apenas com umas poucas bancadas e sacos, mais como experiência, para ver se morrem ou sobrevivem e para poder ir buscar algumas, se me apetecer comer. Quando fizerem alguma coisa por esta Ria, logo investimos outra vez», disse.

Jorge Minhalma a deitar fora as ostras – Foto Fatinha Afonso|ADRIP

Uma decisão que não foi, de certeza, tomada de ânimo leve. «O investimento que fiz foi-se todo, todo. Foi perda total. Foram-se perto de 400 mil ostras. Já em 2012 me tinha acontecido a mesma coisa, noutro viveiro que tenho em Cacela. Aí, perdi cerca de 100 mil unidades».

O assoreamento da ria, naquela zona, «é causado pela entrada da areia da duna primária. É o caos total para a Ria Formosa, para a própria praia, que deixou de existir na maré cheia».

Tudo por causa de uma barra aberta em 2010, que veio alterar as dinâmicas locais. Tanto assim é que, atualmente, o cordão dunar frente a Cacela quase já não existe. O que há é uma espécie de praia, com o mar a chegar perto da arriba na maré cheia e a recuar até à ilha na maré vazia, deixando umas poucas zonas com apenas alguns centímetros de água.

O Sul Informação falou com Sebastião Teixeira, diretor regional da Agência Portuguesa do Ambiente, que admite que se deu «um galgamento generalizado da duna, que depositou areia na ria», nesta zona. «Estamos agora a analisar a situação, para percebermos o que se irá fazer», assegurou.

Quanto à escolha do local para abrir a barra, criticado por Jorge Minhalma, mas também pela Adrip – Associação de Defesa, Reabilitação, Investigação e Promoção do Património Natural e Cultural de Cacela, o responsável pela APA na região salientou que «a barra já esteve aberta frente ao forte muitas vezes, ao longo dos séculos», sem que isso tenha colocado em risco a arriba ou posto em causa a dinâmica económica local.

 

Jorge Minhalma – Foto: Fabiana Saboya|Sul Informação

Até há poucos anos, a barra abria na zona do Lacém, a poente de Cacela. Mas esta entrada «começou a assorear e a água deixou de vazar, aqui na zona. Os viveiristas pressionaram as entidades para fazer alguma coisa. Mas a solução encontrada foi fazer um rasgo na duna primária, numa zona em que não se devia mexer», segundo Jorge Minhalma.

Na altura, os viveiristas não contestaram a medida, confiando nos conhecimentos técnicos dos promotores da obra. O mesmo não aconteceu em relação à Adrip, que repudiou a decisão e defendeu que não devia avançar.

«Vimos a fazer este alerta desde 2010. A Adrip vem, desde então, a alertar não só para o risco ambiental, mas também patrimonial», disse ao Sul Informação António Vicente, membro da associação.

«Temos um problema, não só do ponto de vista sócio-económico, dos viveiristas e daqueles com atividades ligadas à ria, mas também o risco para a zona urbana de Cacela Velha e o seu património», reforçou.

Por um lado, está em causa a integridade da arriba e, por acréscimo, do forte ali existente. «Tem-se notado um aumento do fluxo de águas, desde que foi aberta a barra. Ele tem sido acompanhado por um galgamento da duna primária, o espalhar das areias e a destruição total da duna. Em Cacela Velha, tem-se notado a água que vem bater mais junto à muralha. Há alguns anos que já quase não existe margem na preia-mar», descreveu.

Mas a Adrip não esquece os viveiristas e mariscadores. «Penso que existe uma tentativa de afastamento das atividades ligadas à ria e que o importa é o turismo e os três meses de Verão. Mas a nós, que vivemos aqui, não é isso que interessa. O Verão são três meses, o resto do ano são nove», disse António Vicente.

António Vicente – Foto: Fabiana Saboya|Sul Informação

Também Jorge Minhalma se mostra preocupado com as duas dimensões do problema. Foi, de resto, com elas em mente que se encontrou, na quarta-feira, com a presidente da Câmara de Vila Real de Santo António Conceição Cabrita, numa reunião onde participaram, igualmente, elementos da Adrip.

«O problema não é só dos viveiristas. Os barqueiros que costumam fazer o transporte para a praia não vão trabalhar este Verão, porque, na maré cheia, uma pessoa passa com água por debaixo dos braços. Isto não é fundura para uma ria. Na ilha, já não há praia, os turistas já não a poderão utilizar. E há o património de Cacela, que também está em risco. O caminho ao lado do forte já não existe», ilustrou.

A presidente da Câmara de VRSA não perdeu tempo, depois de se reunir com Jorge Minhalma e com elementos da Adrip, e aproveitou a presença na região do ministro do Ambiente para lhe pedir, presencialmente, uma reunião, para falar da questão de Cacela Velha.

«Temos de pensar o que queremos ter ali em Cacela, se queremos turismo ou manter o património local. Na minha opinião, devemos manter o património. A nossa costa, até agora, praticamente não teve estragos, mas eu vim a este encontro [na AMAL, com o ministro, por causa dos estragos causados pelo temporal] só para tentar marcar uma reunião com o ministro do Ambiente, para que ele possa ouvir as nossas preocupações, pois os viveiristas estão numa situação crítica», disse Conceição Cabrita, em declarações ao nosso jornal.

Para aquele que se tornou o último produtor de ostras de Cacela Velha, não é preciso inventar nenhuma solução miraculosa, basta olhar para o passado.

«Deverá ser realizada uma intervenção semelhante à que foi feita em 1999, que consistiu no desassoreamento do canal e reforço do cordão dunar. Terão de ser feitas dragagens, como fizeram na altura. Aí sim, ficou a ilha reforçada. Também deviam instalar passadiços para as pessoas não pisarem as dunas. Estou a falar de toda a zona que vai desde a Fábrica até à Manta Rota, que está a ser toda afetada. Em 99, fizeram um excelente trabalho e deixaram-no perder-se», recordou.

Abertura da barra em Cacela Velha em 2010 – Foto: ADRIP

O mesmo não se pode dizer da intervenção que foi feita este século. «Já estou como último produtor pelo menos há cinco anos. A barra foi aberta em 2010 e, assim que o fizeram, os viveiros que ficavam em frente foram todos destruídos. Essas pessoas desistiram logo».  As restantes foram desistindo ao longo do tempo.

Cacela já teve, em tempos, «20 ou 30 viveiristas» e famílias inteiras que tiravam o seu sustento da Ria Formosa. «Inicialmente, eram quase todos viveiros de amêijoa. No tempo do meu sogro, era o que se produzia aqui. Mas hoje em dia já não há nada. Há pessoas que, como eu, continuam a pagar as licenças, mas não estão a produzir», assegurou Jorge Minhalma.

No final do século XX, os produtores da zona de Cacela e da Fábrica começaram apostar em força na ostra. De resto, são muitos os algarvios ( e não só) que provaram esta iguaria, pela primeira vez, no restaurante da Fábrica, que ficou conhecido em todo o país pelas ostras que servia.

«Há pessoas que conseguem de diferenciar as ostras de Cacela só pelo paladar. Há dias, esteve aqui no meu restaurante um casal francês que costuma vir cá pelas ostras. No final de comerem, perguntaram: estas ostras não são das suas, pois não? E eu respondi que não, não são. É que as suas são diferentes e nós gostamos mais, têm um toque a avelã no final, disseram eles», contou.

Jorge Minhalma produz a variedade Crassostrea gigas, também conhecida como ostra-do-pacífico. Ao contrário da larga maioria dos viveiros deste bivalve que existem, atualmente, no Algarve, a ostra usada por este produtor é diploide, que se reproduz, e não triploide, criada em maternidade e estéril. «Não atingem o mesmo tamanho, mas têm outro sabor», defendeu.

«Nós fazemos a captura de juvenis, no próprio viveiro. Vamos retirando e, assim, sabemos que não está contaminada. A ostra francesa tem vindo a ser atacada pelo vírus do herpes, o que leva a uma mortalidade muito elevada. Em França, há viveiros com mais de 90% de taxa de mortalidade». Há poucos anos, os produtores de ostra da Ria de Alvor enfrentaram o mesmo problema.

Até há pouco tempo, usando os juvenis que capturava no seu próprio viveiro e na Ria Formosa, Jorge não tinha «mortalidade quase nenhuma». Mas, mais recentemente, começou a ter perdas, durante o Verão, porque, «com o assoreamento, temos de pôr as mesas mais altas e as ostras, com o calor, cozem». «Este ano, se continuasse com aquilo como estava, a ostra ia morrer toda, ficava com o miolo cozido».

Efeito da tempestade Ema no viveiro de ostras – Foto: Jorge Minhalma

Jorge Minhalma ainda mantém a esperança de que possa voltar a produzir, mesmo que seja noutro local da ria. Em 2012, procurou trocar a licença de um dos seus viveiros, que foi arrasado – «perdi cem mil ostras, nesse ano» – por outro na zona de Tavira.

«Fui ao Parque Natural da Ria Formosa, à Sociedade Polis, corri tudo, para ver se me arranjavam outro viveiro, na zona de Tavira, dos que estão há muitos anos abandonados, sem produzir e sem pagar licenças», contou.

«Estou à espera de uma resposta da Agência Portuguesa do Ambiente desde então. A única alternativa que me dão é mudar o viveiro de local. Mas já tentei e não consegui. Não percebo porque é que alguém que quer pagar e produzir não pode ficar com as licenças que há anos não são pagas», desabafou.

Enquanto a areia continuar a cobrir os viveiros onde pode, atualmente, trabalhar e não houver abertura da parte da APA para ceder nova licença, num local onde haja condições, Jorge Minhalma só poderá mesmo olhar para a paisagem que atrai tantos turistas a Cacela Velha. Ele ainda poderá fazê-lo saboreando as suas ostras. Os outros, já não.

 

Fotos: Fabiana Saboya|Sul Informação; Jorge Minhalma; Fatinha Afonso|ADRIP

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