O mar que sempre deu, ameaça agora tirar património a Cacela Velha

No topo da arriba, impõe-se, há séculos, a fortaleza de Cacela Velha. Centenas de anos antes dela ser construída, já […]

Foto: Fabiana Saboya|Sul Informação

No topo da arriba, impõe-se, há séculos, a fortaleza de Cacela Velha. Centenas de anos antes dela ser construída, já homens e mulheres se atarefavam nos campos  à volta do que é hoje uma aldeia de Vila Real de Santo António, Portugal, e na rica ria, lá em baixo, que terá, adivinha-se, sido sempre formosa. Este património – o construído e o outro, que a sedimentação do tempo escondeu – pode estar em risco devido à recente (e crescente) exposição da localidade à força do mar, agravada nos temporais do início do mês de Março, avisam os que zelam pelo legado histórico de Cacela e confirma quem quer conhecer os seus segredos.

Da parte da Adrip, a associação local de defesa do património, chega o alerta de que a barra aberta há cerca de oito anos, frente a Cacela Velha, está a escavar a arriba que sustenta a fortaleza, colocando-a em risco. Uma situação que se agravou a partir de 1 de Março. Nessa madrugada, um temporal, que aliou ventos intensos a forte agitação marítima, levou o que restava da praia, do lado de lá da Ria Formosa.

«Neste momento, as areias estão todas espraiadas na ria. Isso faz com que o mar entre e chegue mesmo junto da arriba», contou ao Sul Informação António Vicente, da Adrip – Associação de Defesa, Reabilitação, Investigação e Promoção do Património Natural e Cultural de Cacela.

«Tem-se notado um aumento do fluxo de águas, desde que foi aberta a barra. Tem sido acompanhado por um galgamento da duna primária, o espalhar das areias e a destruição total da duna. Em Cacela Velha, tem-se notado a água que vem bater mais junto à muralha. Há alguns anos que já quase não existe margem na preia-mar. Só resta uma zona, onde antigamente havia hortas, abaixo da arriba», acrescentou.

 

Foto da ADRIP, de arquivo, mostrando a situação anterior aos temporais de Março

Também preocupada, mostra-se Maria João Valente, arqueóloga e investigadora da Universidade do Algarve, uma das responsáveis pela campanha arqueológica que se irá iniciar este ano e durar até 2022, em Cacela Velha. É que, revelou, o mar que entrou barra adentro, no início do mês, já fez estragos no sítio arqueológico existente a poente da aldeia.

«Como consequência dos recentes temporais, foram aparecendo potes e panelas [centenários] partidos, ali junto à arriba, porque, logicamente, à medida que a erosão avança, entra pelo sítio arqueológico», explicou a investigadora, ao Sul Informação.

O potencial risco para o património existente nesta pequena localidade algarvia, cujo conjunto, lembra a Adrip, «está classificado como de Interesse Público», ficou mais evidente a partir do momento em que o mar deixou marcas, há cerca de três semanas. Mas o problema não é recente.

«Este é um processo que já leva oito anos. Em 2010, questionámos o município sobre a abertura desta barra frente a Cacela, que tínhamos a certeza que iria ser um erro. Sempre nos disseram que esta operação ia ser monitorizada pela Agência Portuguesa de Ambiente, pela Universidade do Algarve e pelos órgãos competentes, mas o que é certo é que até agora não houve controlo nenhum. Se houve, ficou dentro de gavetas, nunca ninguém fez nada», garantiu António Vicente.

A Universidade do Algarve poderá não ter monitorizado os efeitos da abertura da barra, mas tem estado bem atenta a Cacela Velha e ao seu património. Dias depois do temporal ter escavado a arriba, em Cacela – deixou marcas em vários pontos do litoral algarvio -, a Universidade, a Direção Regional de Cultura e a Câmara de VRSA anunciavam que as escavações arqueológicas iam regressar a esta aldeia.

Maria João Valente é uma das investigadoras responsáveis por esta nova campanha, que pretende aprofundar os trabalhos lançados por Estácio da Veiga, ainda no século XIX, e que foram aprofundados na década de 90 do século passado. Isso leva a que não olhe para a erosão deste ponto da costa algarvia, de ânimo leve.

«A ocupação humana do Algarve é muito marcada pela costa. O litoral foi sempre muito apetecível, desde a Pré-História. Muitas das nossas ocupações mais antigas são costeiras. À medida que a costa vai erodindo, é óbvio que os sítios arqueológicos são muito afetados», enquadrou a arqueóloga.

 

Foto: Fabiana Saboya|Sul Informação

No caso particular de Cacela, diz Maria João Valente, há três grandes questões. «Desde logo, há o problema do património natural, não só ao nível da barra em si, mas também da jazida fossilífera que existe na ribeira», que corre no lado nascente da fortaleza.

Já ao nível histórico-arqueológico, há dois problemas: «um tem a ver com o posicionamento da fortaleza, que está muito sobre a arriba. Ou seja, à medida que a arriba vai sendo comida, maior é o perigo para a fortificação e até de quedas de elementos».

«Outro problema é no sítio arqueológico que está cá em baixo. Porque esse, como pudemos verificar, está a ser erodido. Acaba por ser uma escavação que não é controlada, que vai destruindo. Nesse aspeto, o que se está a passar é muito preocupante», frisou a investigadora da UAlg.

Maria João Valente explicou ainda que Cacela Velha «tem importância do ponto de vista histórico, na perspetiva da fortaleza, que é uma construção um pouco mais tardia, do século XVI, mas tem, também, todo um historial da época medieval – e, provavelmente, até romano – que ainda falta descobrir».

O local onde decorreram importantes campanhas arqueológicas e onde se realizarão novos trabalhos, a partir do Verão, fica junto do chamado “caminho do forte”, que desce da aldeia para a ria, a Nascente do núcleo urbano, e termina junto à foz da ribeira, a tal que alberga fósseis.

Foi precisamente nesta zona que o mar mais escavou a arriba. Como o Sul Informação verificou no local, numa das pontas da fortaleza, o mar comeu a terra, deixando-a apenas a um metro do local onde agora chega a água. Na zona onde começa o sítio arqueológico, a erosão também é evidente.

«Eu tinha um apoio de viveiro junto ao caminho do forte, que foi levado, durante o temporal, porque a água chegou lá. Quando existia a duna, isto não acontecia», contou ao nosso jornal Jorge Minhalma, o último produtor de ostras de Cacela Velha, que desistiu desta atividade na sequência desta tempestade.

 

“Postal” de Cacela Velha e da ria – Antes e depois da barra frente à fortaleza – Foto: Filipe da Palma

É que, como ilustrou António Vicente, da Adrip, além das questões ligadas ao património, também há um problema «do ponto de vista sócio-económico, dos viveiristas e daqueles com atividades ligadas à ria».

António Vicente e Jorge Minhalma estiveram presentes numa reunião com a presidente da Câmara de Vila Real de Santo António, onde apresentaram a documentação que vêm recolhendo ao longo dos anos, no sentido de a sensibilizar para os problemas vividos em Cacela.

Em declarações ao nosso jornal, Conceição Cabrita disse que já pediu uma reunião urgente com o ministro do Ambiente, para falar sobre este tema. «Temos de pensar o que queremos ter ali em Cacela, se queremos turismo [de praia] ou manter o património local. Na minha opinião, devemos manter o património».

Maria João Valente diz que há dois problemas: «um tem a ver com o posicionamento da fortaleza, que está muito sobre a arriba. Ou seja, à medida que a arriba vai sendo comida, maior é o perigo para a fortificação e até de quedas de elementos»

Entretanto, o assunto também já foi levado à Assembleia da República pelo grupo parlamentar do PSD. Cinco deputados social-democratas, entre os quais os dois eleitos pelo círculo do Algarve, José Carlos Barros e Cristóvão Norte, pediram ao Governo que avance com medidas de «emergência na orla costeira do Algarve, com especial atenção às situações de risco», ao nível do património, nomeadamente ao caso «preocupante da Fortaleza de Cacela Velha, afetada por um antigo processo erosivo, que as severas condições atmosféricas das últimas semanas vieram agravar».

O ministro do Ambiente, numa recente visita ao Algarve para ver in loco os estragos causados pelo temporal, disse não estar inteirado da situação. Também a Direção Regional de Cultura do Algarve garante ainda não ter sido alertada para o potencial risco no conjunto classificado de Cacela Velha, garantindo que, a existir, irá ao local fazer uma avaliação.

Por seu lado, Sebastião Teixeira, diretor regional da Agência Portuguesa do Ambiente, disse ao Sul Informação que este organismo ainda irá ao local apurar, a fundo, os estragos causados pela tempestade. Quanto ao risco para o património, este responsável lembrou que, «ao longo dos séculos, a barra já esteve muitas vezes aberta à frente da fortaleza».

Mas este é um argumento que não vinga junto dos defensores do património e dos que vivem da Ria Formosa, em Cacela Velha. Estes pedem que a ilha-barreira seja reposta frente à aldeia e a barra aberta noutro local, como acontecia há pouco anos.

 

Cacela Velha e a ria a seus pés, na atualidade – Foto: Fabiana Saboya|Sul Informação

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