Crónicas do Sudoeste Peninsular: Cuidar da qualidade paisagística

Os sinais distintivos territoriais (SDT) são a imagem de marca de um território e a sua matéria-prima mais valiosa. Um […]

Os sinais distintivos territoriais (SDT) são a imagem de marca de um território e a sua matéria-prima mais valiosa.

Um desses sinais distintivos é a “qualidade paisagística” ou, se quisermos, a distinção paisagística. Num tempo de “turismo total” não é apenas a gentrificação das vilas e cidades que nos deve preocupar, é, também, a ludificação excessiva e, sobretudo, o critério e o modo como dispomos e usamos de recursos escassos como a água, o solo e a vegetação, isto é, a paisagem global que nos acolhe.

A paisagem global é uma espécie de seio materno, a substância das coisas e uma grelha de leitura coerente para os problemas do território. Sob a sua perspetiva, o problema ganha profundidade, espessura e novas dimensões. Não simplifiquemos, pois. Todos nós somos, cada um à sua maneira, cuidadores da paisagem.

Mas não nos iludamos. Há uma literacia própria da paisagem, que necessita de ser convenientemente abordada, sob pena de a nossa perceção da paisagem ser um crime de lesa-pátria e um mau serviço prestado ao país.

Esta literacia é tanto mais complexa quanto a paisagem é um assunto multi-escalar, um vai e vem entre a microescala (a unidade de produção), a mesoescala (a unidade de paisagem) e a macro escala (a paisagem global), uma realidade multifacetada que nem sempre se deixa delimitar.

Este pequeno escrito é, por isso, uma espécie de teste de pertinência em busca dessa qualidade ou distinção paisagística, sabendo nós que, com tantos free raiders, pairam inúmeros riscos sobre a proteção e valorização dos sinais distintivos territoriais.

Por isso, é fundamental que, para a paisagem global e os seus cuidadores, definamos uma convenção de compromissos-responsabilidades-benefícios, uma espécie de contrato entre a sociedade e a natureza que reduza o grau de conflitualidade potencial e que trace os limites de uma outra institucionalidade ou governança territorial em redor da qual se possa operacionalizar a intervenção pública e social. Vejamos algumas facetas do problema.

 

A paisagem global e o trânsito paisagístico

O nosso tempo é de velocidade e acessibilidade, de muitas procuras sociais e outros tantos atores emergentes, logo, também, de muitas perceções da paisagem global.

Não nos devemos surpreender, portanto, que o território passe de espaço de produção a espaço produzido e que neste acréscimo de complexidade se intercalem e sucedam as diversas paisagens e unidades de paisagem que serão, cada vez mais, funcionalmente interdependentes em tudo o que diga respeito ao seu planeamento, gestão e avaliação.

As paisagens tradicionais formaram-se tendo em consideração as características biofísicas do território e a necessidade de obter produtos essenciais às populações, segundo a maneira própria de cada comunidade entender a vida e o mundo.

As paisagens tradicionais, rurais, urbanas e outras, são, pois, um ato de criação, a marca de um povo, a memória de um país, que hoje se prolongam no plano das artes, da contemplação e da poesia.

Porém, com a vertigem do quotidiano e a velocidade da deslocação, o arco-íris das paisagens tradicionais tornou-se cada vez mais monocromático, um ponto no horizonte igual a tantos outros. Esta dissociação entre a vida e o trabalho, entre a história longa e a história curta, interessa à indústria turística.

As paisagens tradicionais são “embelezadas paisagisticamente” para serem consumidas como produtos turísticos. Podem, mesmo, ser replicadas algures. Para o sucesso desta operação é essencial que sejamos desapossados e esvaziados da nossa própria memória histórico-familiar porque quase todos nós construímos a trajetória de vida a partir das nossas origens agro-rurais.

Quer dizer, a turistificação do país se encarregará de clonar as paisagens tradicionais do país lá onde for necessário. Por esta via, que apaga e dissipa as nossas memórias, garante-se a modernização e o progresso!

 

A Convenção Europeia da Paisagem

Na Convenção Europeia da Paisagem do Conselho da Europa pode ler-se: Constatando que a paisagem desempenha importantes funções de interesse público, nos campos cultural, ecológico, ambiental e social, e constitui um recurso favorável à atividade económica, cuja proteção, gestão e ordenamento adequados podem contribuir para a criação de emprego;

Conscientes de que a paisagem contribui para a formação de culturas locais e representa uma componente fundamental do património cultural e natural europeu, contribuindo para o bem-estar humano e para a consolidação da identidade europeia;

Reconhecendo que a paisagem é em toda a parte um elemento importante da qualidade de vida das populações: nas áreas urbanas e rurais, nas áreas degradadas bem como nas de grande qualidade, em áreas consideradas notáveis, assim como nas áreas da vida quotidiana;

Constatando que a evolução das técnicas de produção agrícola, florestal, industrial e mineira e das técnicas nos domínios do ordenamento do território, do urbanismo, dos transportes, das infraestruturas, do turismo, do lazer e, de modo mais geral, as alterações na economia mundial estão em muitos casos a acelerar a transformação das paisagens;

Desejando responder à vontade das populações de usufruir de paisagens de grande qualidade e de desempenhar uma parte ativa na sua transformação;

Persuadidos de que a paisagem constitui um elemento-chave do bem-estar individual e social e que a sua proteção, gestão e ordenamento implicam direitos e responsabilidades para cada cidadão.

Assim sendo, a Convenção Europeia da Paisagem aplica-se a todo o território das Partes e incide sobre as áreas naturais, rurais, urbanas e periurbanas.

 

Abrange as áreas terrestres, as águas interiores e as águas marítimas. Aplica-se tanto a paisagens que possam ser consideradas excecionais como a paisagens da vida quotidiana e a paisagens degradadas. Para o efeito, a Convenção introduz os seguintes conceitos:

a) «Paisagem» designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e/ou humanos;

b) «Política da paisagem» designa a formulação pelas autoridades públicas competentes de princípios gerais, estratégias e linhas orientadoras que permitam a adoção de medidas específicas tendo em vista a proteção, a gestão e o ordenamento da paisagem;

c) «Objetivo de qualidade paisagística» designa a formulação pelas autoridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das aspirações das populações relativamente às características paisagísticas do seu quadro de vida;

d) «Proteção da paisagem» designa as ações de conservação ou manutenção dos traços significativos ou característicos de uma paisagem, justificadas pelo seu valor patrimonial resultante da sua configuração natural e/ou da intervenção humana;

e) «Gestão da paisagem» designa a ação visando assegurar a manutenção de uma paisagem, numa perspetiva de desenvolvimento sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações resultantes dos processos sociais, económicos e ambientais;

f) «Ordenamento da paisagem» designa as ações com forte carácter prospetivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de paisagens.

Assim, com base no artigo 5º da Convenção cada Parte signatária compromete-se:

a) A reconhecer juridicamente a paisagem como uma componente essencial do ambiente humano, uma expressão da diversidade do seu património comum cultural e natural e base da sua identidade;

b) A estabelecer e aplicar políticas de paisagem visando a proteção, a gestão e o ordenamento da paisagem através da adoção das medidas específicas estabelecidas no artigo 6º;

c) A estabelecer procedimentos para a participação do público, das autoridades locais e das autoridades regionais e de outros intervenientes interessados na definição e implementação das políticas da paisagem mencionadas na alínea b) anterior;

d) A integrar a paisagem nas suas políticas de ordenamento do território e de urbanismo, e nas suas políticas cultural, ambiental, agrícola, social e económica, bem como em quaisquer outras políticas com eventual impacto direto ou indireto.

Do ponto de vista que aqui nos interessa, a importância desta abordagem centra-se no envolvimento do público no planeamento e gestão do território e da paisagem.

A partir do momento em que há vários atores envolvidos e conflitos emergentes de usos do solo, imagina-se a importância de conhecer as perceções e preferências desses atores quanto à evolução desejada da paisagem, os cenários alternativos de planeamento que daí decorrem e, bem assim, o desenho das medidas de política pública mais apropriadas a este novo compromisso de interesses em volta de objetivos de qualidade paisagística.

 

Paisagem e sistema produtivo local (SPL)

O nosso ponto de partida é, pois, o de que uma política de paisagem, nos termos definidos anteriormente, cria “benefícios de contexto” para o sistema produtivo local (SPL) da unidade de paisagem que estamos a considerar. A unidade de paisagem seria, também, nesta aceção, um território próximo de uma região biogeográfica.

Em teoria, esta abordagem diz respeito aos sistemas produtivos locais (SPL) e à importância da agroecologia e agroecossistemas no desenvolvimento da capacidade produtiva local, em especial, pela sua especial habilitação para se integrarem harmoniosamente no conceito, mesmo, de unidade de paisagem.

Por agroecologia entende-se a aplicação dos conceitos e dos princípios de funcionamento da ecologia ao desenho e gestão de agrossistemas que, por essa via, se passariam a designar de agroecossistemas.

O que importa realçar, em espaço agro-rural, industrialmente mais difuso e menos artificial, é o grau de adequação do sistema produtivo agro-rural à política de paisagem, por um lado, e à política agroecológica, por outro, de modo a que todos os efeitos externos positivos dessas políticas se façam sentir sobre a qualidade do sistema produtivo local.

Neste contexto, para lá das dificuldades do percurso a empreender, teremos de dar acolhimento a duas opções em presença: damos como boa uma unidade de paisagem já conhecida e estudamos o sistema produtivo que lhe corresponde (um subsistema daquela paisagem) ou partimos de um sistema produtivo local, à nossa escolha, e averiguamos de que modo ele cumpre e/ou contraria as unidades de paisagem que o integram e/ou enquadram.

No mesmo sentido, averiguamos qual a importância dos agroecossistemas presentes no SPL e o seu potencial de crescimento. Nestas condições, julgamos poder dizer o seguinte:

– Não há uma “política de paisagem” proactiva e bem dotada para, não apenas recuperar passivos paisagísticos acumulados, como, também, para desencadear as externalidades positivas que o sistema produtivo local espera dela; não é muito previsível que uma unidade de paisagem seja um sistema produtivo local perfeito, isto é, que reúna uma massa crítica de recursos e desencadeie uma série de efeitos de aglomeração, capilaridade e reticulação sobre os territórios adjacentes ou da sua área de influência;

– Não é muito previsível que um sistema produtivo local seja exemplar do ponto de vista paisagístico, isto é, que tenha internalizado e incorporado todas as boas práticas de lidar com os recursos naturais e o ordenamento do território;

– Não é muito previsível que as várias paisagens coincidam, isto é, que as representações paisagísticas dos atores presentes e ausentes no território forneçam indicações seguras à política pública para promover os seus programas de ação; de resto, a política pública é sempre uma racionalização das mensagens contidas nessas várias representações;

– Não há uma política agroecológica bem estabelecida porque ela não se confunde ou limita a uma transposição de normativos internacionais e europeus ou a um programa nacional de agricultura biológica;

– Não há uma cultura de ordenamento do território que esclareça qual a importância e a posição destas duas políticas públicas, de paisagem e agroecológica, no desenho e na gestão dos territórios multifuncionais existentes no espaço agro-rural.

 

Nota Final

Dito isto, estamos, aparentemente, num impasse. Por um lado, já antecipávamos que as lógicas “unidade de paisagem”, “agroecossistemas” e “sistema produtivo local” não coincidiriam facilmente, por outro, é visível que a globalização dos mercados acelera a dinâmica das atividades económicas e, portanto, das paisagens que as integram ou enquadram e mesmo os sistemas produtivos mais remotos não estão imunes a este movimento global de desconstrução.

Desta constatação, fácil de verificar, pode retirar-se a questão pertinente de saber se, face a este movimento global, as políticas de paisagem e agroecológica têm argumentos políticos e meios suficientes para se impor, sob pena de serem consideradas como um custo adicional, que afeta a competitividade das atividades e empresas, e não como uma despesa de investimento que revela um retorno satisfatório.

Sabemos, de antemão, que as políticas de paisagem e agroecológica são de conversão gradual e de retorno lento e sofrem do descompasso do tempo face às políticas de produção, que são mais imediatas.

Todavia, no plano dos sistemas produtivos locais, na escala da geoeconomia correspondente a muitos concelhos rurais de baixa densidade, a promoção dos ensinamentos da engenharia biofísica e da arquitetura da paisagem e a experiência de alguns agroecossistemas já em operação podem ter um valor demonstrativo muito elevado e revelar-se fundamentais para o lançamento de infraestruturas ecológicas desses municípios e, logo, para a concretização de uma política agro-paisagística de efeitos, porventura, surpreendentes.

Esta é uma aproximação entre os dois conceitos que vale a pena aprofundar tendo em vista os territórios agro-rurais de baixa densidade. Acrescentem-se os efeitos cruzados da transição ecológica e transição digital e teremos uma agenda muito preenchida para os cuidadores da paisagem.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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