Crónicas do Sudoeste Peninsular: Ambientes inteligentes e territórios em risco

A digitalização permite-nos a produção de conteúdos criativos e culturais a partir de recursos materiais. Mas os novos recursos imateriais […]

A digitalização permite-nos a produção de conteúdos criativos e culturais a partir de recursos materiais. Mas os novos recursos imateriais assim produzidos necessitam agora de ser rematerializados e reterritorializados e até exportados.

No entanto, a reterritorialização dos ambientes digitais inteligentes pode ser uma dolorosa realidade. De facto, à nova economia digital, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais ou associativos.

Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, que aí vegetam sem um mínimo de sustentabilidade.

Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal, associativa ou privada.

Na agricultura de precisão, na turistificação do território, na agricultura biológica, na organização de eventos, esta reterritorialização de serviços digitais já é observável. A cadeia de valor alonga-se e diversifica-se.

Os espaços de produção convencionais desmaterializam-se e geram recursos imateriais, estes diversificam a cadeia de valor e geram espaços-produzidos, isto é, recuperam e reinventam territórios que estavam abandonados ou expectantes.

Esta inversão da cadeia de valor é uma grande oportunidade pois podem gerar-se pequenas economias de aglomeração naquilo que podemos designar como “núcleos locais de inovação territorial colaborativa”.

 

Inovação territorial: os núcleos locais de governação colaborativa

Como dissemos, depois da digitalização como ferramenta criativa em ambientes inteligentes temos de voltar à territorialização e aos recursos materiais, isto é, aos territórios vividos.

E aqui começa uma fase que nós poderíamos designar de “inovação territorial colaborativa”, uma espécie de governação territorial polinucleada que seja capaz de gerar e reticular pequenas economias de aglomeração em redor de núcleos de governação.

Na verdade, mesmo à nossa frente, está um programa imenso por cumprir cujos tópicos principais poderiam ser, assim, alinhados (núcleos de governação territorial):

1. As redes de produção descentralizada de energia: os sistemas de microgeração em rede têm um balanço energético muito favorável, não obstante algumas dificuldades de montagem dos sistemas que o tempo resolverá facilmente; acresce que estas redes permitirão converter consumidores puros de energia em produtores e vendedores de energia à rede elétrica nacional;

2. As redes de produção local e multilocal de alimentos: não apenas no “modo biológico”, mas, também, nos “modos integrados” para os quais se elaborariam programas de conversão agroecológica apropriados a cada espaço biofísico, já para não falar das hortas sociais e urbanas nos pequenos aglomerados;

3. A gestão proativa de ecossistemas e a economia circular: este núcleo de governação é muito promissor e envolve a recuperação e a conservação do património genético, a produção de “internalidades e circularidades” para as atividades económicas, em seguida, a saúde dos ecossistemas e a sua conexão com a saúde pública, por último, o desenho e a reconfiguração dos próprios ecossistemas tendo em vista aumentar a autonomia dos sistemas produtivos locais;

4. As artes da paisagem e uma arquitetura biofísica dos elementos naturais: a gestão proativa do mosaico paisagístico, não apenas no sentido estritamente biofísico, mas, também, no sentido da bioconstrução e da regulação climática; a arquitetura inclui, ainda, a arte e a cultura no sentido de uma estética da paisagem com valor cultural e simbólico, como expressão artística e como fator de atratividade que atualiza a memória e o futuro dos lugares;

5. O turismo em espaço rural: é, seguramente, a atividade motora do próximo futuro, a atividade que torna possível e viável a existência e a gestão do sistema colaborativo e todo o trabalho de marketing territorial que resulta da necessidade de pôr em relevo a importância fundamental dos quatro núcleos de governação anteriormente referidos e as suas respetivas cargas de visitação;

6. O condomínio rural como modelo de governo dos “comuns colaborativos”: a mudança que se avizinha e anuncia, em todos os elementos que atrás referimos, é conhecimento-intensiva, por isso não está ao alcance dos modos mais convencionais de governo e administração da clássica propriedade agrorural; já não basta pagar uma renda, é imprescindível produzir serviços comuns de valor acrescentado que têm um custo e um benefício para o condomínio e para a comunidade em seu redor; o condomínio agrorural é um modelo de governo e administração, inspirado no condomínio urbano mas que o ultrapassa largamente por razões que se prendem com a natureza e complexidade dos recursos implicados na gestão do “agros” e as relações contratuais numerosas que este mantém com os poderes públicos.

Nestas diferentes áreas de intervenção os ambientes inteligentes serão determinantes, porventura com custos crescentes de prestação de serviços que se torna necessário mutualizar como serviços comuns colaborativos.

Falamos, por exemplo, da silvicultura preventiva à ecologia do fogo, da hidrologia à bio-engenharia, da agricultura de precisão à luta biológica e à arquitetura da paisagem, da telemedicina aos serviços ambulatórios ao domicílio, já para não referir a verdadeira revolução na visitação turística, que começa por ser uma pré-visão e uma pré-visitação ex situ para se transformar, depois, numa visitação interativa in situ.

Este é, porventura, o melhor exemplo do binómio digitalização-territorialização. Nesta visitação interativa, acoplada a toda a espécie de conteúdos, a realidade aumentada (RA) e a realidade virtual (RV) permitem-nos a observação, em várias dimensões, de endemismos locais, de sítios arqueológicos, de ruínas milenares, de monumentos históricos, de pinturas e arte sacra, de paisagens literárias, de épocas históricas e heróis locais, autênticas viagens no tempo que fazem reviver locais “aparentemente abandonados”.

Mas depois é necessário preparar esses mesmos locais, organizar as visitas e não dececionar os visitantes. Mas o mesmo se passará com a agricultura em geral à medida que o regime climático e o regime de risco que o acompanha impuserem a conversão agroecológica das atividades da 2ª ruralidade.

Como se observa, em todos os casos estamos a reterritorializar, isto é, a produzir redes locais compatíveis com uma economia rural biodiversa e de baixa entropia. Mas nada está garantido à partida. Os “núcleos locais de governação dos bens comuns” são apenas uma das possibilidades.

Para lá dos valores e dos princípios que eles encerram está a relação de forças em presença e o “poder corporativo” que ocupa território “de facto” e que, evidentemente, não morre de amores pelos “comuns colaborativos”. E, depois, é necessário reservar meios financeiros para cobrir a “socialização de prejuízos” em consequência das alterações climáticas, crises energéticas, calamidades naturais e problemas recorrentes de segurança alimentar e saúde pública. E esse poder de socializar prejuízos faz toda a diferença.

 

Transição ecológica, transição digital e transição produtiva

Os ambientes inteligentes precisam de aprender a lidar com o “risco da transição”. E nesta fase estamos perante uma tripla transição: a transição ecológica (as alterações climáticas), a transição digital (a inteligência artificial) e a transição produtiva (as migrações de pessoas e bens, plantas e animais).

Estas três transições e o risco sistémico que lhes está associado mudam substancialmente os termos da equação territorial. Neste momento, não sabemos ainda o que vai prevalecer, pois as aproximações são muito cautelosas.

Tudo aponta no sentido de a atividade agrícola e os sistemas produtivos locais em geral utilizarem mais medidas de prevenção, mitigação, adaptação e mesmo reconversão agroecológica em consequência do carácter endógeno do regime climático e do risco associado.

A tecnologia digital ao conectar e miniaturizar todas estas relações de interdependência passa a ser uma variável sempre presente e, mais do que isso, sempre requisitada para acompanhar um mais do que provável contencioso de responsabilidade.

Estou convencido de que a agricultura está a descrever uma curva muito pronunciada que a trará de volta à coevolução homem-natureza e a novas formas de governação territorial multifunções.

A grande interrogação que fica por esclarecer é saber se as três transições arrastam consigo uma rápida conversão agroecológica e um entendimento muito mais preventivo e rigoroso de risco climático e meteorológico.

A interpretação dos ambientes digitais inteligentes e a natureza das start-up que nascem em estruturas próprias de acolhimento devem ser, igualmente, colocadas neste contexto.

Quer dizer, devem ser avaliados de modo diferente, conforme contribuem para aumentar o risco da atividade ou para adaptar o sistema produtivo ao novo regime climático e meteorológico.

Isto quer dizer, ainda, que o sistema produtivo local deverá estar alinhado com o ecossistema da região biogeográfica em que se encontra, pois dessa forma será maior a probabilidade de que este agroecossistema seja sustentável. Já há sinais que apontam nessa direção e a conversão agroecológica, embora tímida e muito difusa, já está em marcha.

Estou, porém, convencido de que os eventos frequentes, intensivos e violentos do novo regime climático e meteorológico (o advento da nova era do Antropoceno) irão acelerar o ciclo de vida agroecológico, acompanhando nessa transição a própria aceleração digital.

Neste momento, estamos em plena intensificação verde, em busca de uma nova legitimação ou de uma nova ilusão, diria eu. Entre o produto de massa, branco e sem rosto, e o nicho de mercado, colorido e identitário, procuramos conciliar, tanto quanto possível, os contributos da biotecnologia com as normas da segurança alimentar, segundo uma qualidade dita standard. Portanto, the business as usual.

Muito mais interessante, e urgente, do ponto de vista social, ecológico e paisagístico, mas, também, científico e político, é a transição que se fará entre o “nicho e a horta”, passe a imagem um pouco bucólica que aqui utilizo. Mais rigorosamente, entre “a massa, o nicho e a horta”.

Refiro-me, em primeira análise, a três representações ideológicas, mais do que a três produtos comerciais. Com efeito, é minha convicção de que, com o conhecimento acumulado, caminharemos, cada vez mais, para formas descentralizadas de autogestão e autoregulação em matéria de aprovisionamento agroalimentar.

No mesmo sentido, apontam os “requisitos de formalidade” em matéria de sustentabilidade, certificação, rastreabilidade e responsabilidade social dos empreendimentos agrorurais. Por isso, podemos dizer que a ruralidade está à nossa frente e não atrás de nós.

De facto, quando a nossa consciência sociocognitiva sobre este problema estiver mais amadurecida, perguntaremos, com a ingenuidade dos inocentes, a razão pela qual um produto alimentar faz milhares de quilómetros para ser consumido, trazendo atrás de si um lastro de entropia indescritível e um balanço energético altamente desfavorável, quando podia ser produzido ao pé da porta, na “horta”, em condições agroecológicas muito mais sustentáveis.

Nota final
Tal como já aconteceu com o telefone e o computador, e a brevíssimo prazo com a energia, tudo aponta para formas cada vez mais descentralizadas de produção e gestão. O telefone móvel, o computador portátil, a microgeração de eletricidade, o ensino à distância, o acesso e o serviço em vez da propriedade, desencadearão a revolução da microgeoeconomia.

Que se reforçará com as exigências em matéria de conservação e biodiversidade, muito mais conseguidas quando se caminha da escala monótona dos produtos de massa para a escala biodiversa da produção policultural da “horta”.

No mesmo sentido, caminham os serviços de recreação e lazer muito mais sensíveis à variedade paisagística do que à monotonia da “revolução verde”.

Está em questão a construção da matriz multifuncional dos espaços rurais e o seu interesse público que, em cada caso, deverá juntar a produção de bens alimentares, de fibras e energia, de serviços de recreação e lazer, de serviços agroecológicos e ambientais e outros serviços rurais de carácter civil.

Por todas estas razões, é imperioso que encontremos um novo contrato social para a agricultura e os seus agroecossistemas no quadro dos sistemas produtivos locais e das unidades de paisagem em que se integram. Os ambientes digitais inteligentes serão um parceiro precioso neste novo contrato, em especial, nas plataformas da “economia das multidões” que eles saberão mobilizar para muitas tarefas.

O mundo rural é, hoje, um jogo de sombras e uma encruzilhada onde se cruzam perceções e representações de mundos em trânsito. As representações giram em redor de polarizações que foram sendo construídas ao longo das últimas décadas. Cada uma destas representações cria a sua própria verdade, o seu arsenal de propaganda, ideias simplistas e imagens desfocadas sobre o universo do mundo rural.

As alterações climáticas, as alterações demográficas, a inteligência artificial, a miniaturização, os bens comuns, as redes colaborativas e distribuídas, serão as próximas polarizações, que alimentarão novas representações, novas procuras e mercados emergentes.

A mudança é irrecusável, o espaço rural deixa de ser um espaço-produtor para ser um espaço-produzido que também ambiciona ser um espaço-produtor. Tão simples como isso.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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