Crónicas do Sudoeste Peninsular: Territorialização e digitalização das políticas do território

Agora que, por causa dos incêndios, se volta a falar de territórios desfavorecidos do interior e de programas de coesão […]

Agora que, por causa dos incêndios, se volta a falar de territórios desfavorecidos do interior e de programas de coesão territorial (ver a Resolução do Conselho de Ministros nº1/2018 em DR nº2/2018, série I de 3 de janeiro sobre o Programa de Revitalização do Pinhal Interior), creio que se reveste de alguma pertinência abordar a relação, algo equívoca e contraditória, entre territorialização e digitalização das políticas de coesão territorial.

De facto, no espaço público das políticas do território está em laboração um paradoxo de difícil administração.

Quanto mais se anuncia, na retórica do discurso político, a necessidade imperiosa de “territorializar as políticas públicas” mais se constata, no dia a dia da administração e dos beneficiários, a afirmação do império administrativo do template, do algoritmo, do vade-mecum, das boas práticas regulamentares, em tudo ou quase tudo o que diz respeito aos processos de candidatura, aos processos de aprovação, aos processos de contratação, aos processos de pagamento, aos processos de inspeção, aos processos de auditoria, aos processos de avaliação, etc.

Há, com efeito, qualquer coisa de paradoxal quando se fala em “territorializar” as políticas públicas. É certo, todos nós percebemos que quem disponibiliza os recursos financeiros quer proteger a sua transferência com medidas de rigor e disciplina e, se possível, que uma parte dos mesmos recursos regresse à origem através da imposição de “regras severas de processo e procedimento”.

É aqui que entra a “digitalização das políticas” sob a forma de categorias, códigos, algoritmos e templates, assim como de inúmeros normativos e regulamentos.

Em formação ordenada e sistemática, eles recriam o enquadramento normativo e regulamentar, geram categorias e conceitos, tipificam medidas e códigos de acesso, desenham baterias de indicadores, reconfiguram territórios e destinatários, redefinem regras e procedimentos de monitorização, controlo e inspeção.

A nossa observação e participação diretas em instrumentos de intervenção territorial dizem-nos que está criada uma clivagem entre o discurso público de legitimação política, repleto de inúmeras referências à coesão territorial e às abordagens territoriais integradas, e os instrumentos, recursos e organizações que, no terreno, procuram dar corpo a todo esse voluntarismo discursivo inscrito nos programas de coesão territorial.

A razão para esta clivagem é a profunda divergência entre o “discurso redondo” impresso na literatura cinzenta dos programas oficiais de coesão territorial, onde tudo parece bater certo, e a operacionalização sofisticada e rebuscada de processos e procedimentos, comandada à distância, por Bruxelas e Lisboa, por mestres-algoritmos, templates e códigos de acesso, que obrigam o “pobre destinatário”, desde logo nos avisos de concursos, a desembolsar verbas para apoio e consultoria, sob pena de ver a sua candidatura prejudicada.

Este é, digamos, o “lado malévolo” da digitalização das políticas públicas, pois a iniciativa empresarial é um recurso tão escasso nas zonas mais desfavorecidas do interior que nenhuma ideia de projeto deveria ser abandonada antes de ter sido avaliada in situ a sua real pertinência e necessidade.

Ao contrário, deveria ser criada uma estrutura de acolhimento, uma “rede colaborativa de iniciativas locais” e um regime específico de avaliação para os empreendimentos que não encaixam nos requisitos e condições normalizados e padronizados pelos algoritmos e templates.

Mas há um “lado benévolo” na digitalização das políticas públicas e que diz respeito à formação de territórios inteligentes e criativos a partir de uma judiciosa utilização das tecnologias da informação e comunicação. Das tecnologias da informação e comunicação (TIC) aos territórios inteligentes e criativos (TIC) da 2ª ruralidade, eis o desafio.

Por isso, a pergunta faz sentido: estaremos nós equivocados ao pensar problemas novos com conceitos velhos?

Serão as TIC uma oportunidade única para o grande país do interior, para a formação da sua inteligência coletiva, serão os recursos intangíveis e a produção de conteúdos que lhe está associada os fatores decisivos para editar os territórios inteligentes e criativos (TIC) do grande país do interior?

De facto, a realidade, hoje, já não é o que era. Tomemos o exemplo da realidade aumentada (RA) e da realidade virtual (RV).

Não há dúvidas, com a realidade aumentada e com a realidade virtual nós “acrescentamos realidade” à realidade. Passamos a ter uma “realidade tridimensional” e, em bom rigor, temos ambientes digitais em vez de realidades presenciais.

Se quisermos, as realidades ditas tangíveis e materiais serão transformadas em ecossistemas inteligentes de aprendizagem, conhecimento e recreação, que produzirão outros tantos recursos intangíveis para juntar à cadeia de valor dos recursos tangíveis com os quais os nossos singelos territórios do interior estão mais habituados a lidar.

Aqui está uma grande oportunidade. Estes recursos intangíveis (entre outros) – a realidade aumentada (RA) e a realidade virtual (RV) – aportam valor acrescentado aos territórios já existentes convertendo-os em territórios mais inteligentes e criativos.

Este é, digamos, o lado mágico da economia digital, a saber, a criação de ambientes e ecossistemas inteligentes de acolhimento que nos conduzem até ao universo da cibercultura e do ciberespaço.

Hoje em dia, praticamente, todas as áreas de atividade estão ao alcance das tecnologias da informação e da comunicação. Na transição para a 2ª ruralidade, aquela que está à nossa frente, nós falamos, por exemplo: da silvicultura preventiva à ecologia do fogo, da hidrologia à bioengenharia, da agricultura de precisão à luta biológica e à arquitetura da paisagem, da telemedicina aos serviços ambulatórios ao domicílio, já para não referir a verdadeira revolução na visitação turística, que começa por ser uma pré-visão e uma pré-visitação ex situ para se transformar, depois, numa visitação interativa in situ.

Nesta visitação interativa, acoplada com toda a espécie de conteúdos, a realidade aumentada e a realidade virtual permitem-nos a observação, em várias dimensões, de endemismos locais, de sítios arqueológicos, de ruínas milenares, de monumentos históricos, de pinturas e arte sacra, de paisagens literárias, de épocas históricas e heróis locais, autênticas viagens no tempo que fazem reviver locais “aparentemente abandonados”.

Nestes ambientes digitais inteligentes, a “realidade tridimensional” e os seus imensos recursos intangíveis adquirem um significado transcendente. Desde logo, e em primeiro lugar, a enorme variedade de recursos que pode ser acrescentada aos recursos materiais originários, em segundo lugar, a emergência de um importante setor de produção de conteúdos quer históricos, literários ou artísticos, em terceiro lugar, aquilo que podemos designar como a “ludificação extensa” dos territórios a partir, justamente, da visitação do seu vasto imaginário territorial e de suas amenidades, em quarto lugar, a importância de transformar um número crescente de eventos em “atos orgânicos” enraizados no tecido socioeconómico local, finalmente, a oportunidade única de regressarmos à “celebração ou sublimação de um lugar” que já julgávamos perdido ou abandonado.

Chegados aqui, depois desta viagem surpreendente em busca de territórios-desejados, é como se tivesse ocorrido uma inversão dos termos da equação “territorialização versus digitalização”.

Num primeiro momento, começámos por dizer que a digitalização poderia segregar e excluir muitas iniciativas e empreendimentos locais devido ao rigor formal das suas categorias, algoritmos e templates.

Agora, porém, dizemos que a digitalização acrescenta “realidades e recursos” à realidade já existente e que podemos viajar no tempo para visitar o passado e o futuro dos nossos territórios.

No trânsito das gerações, este é o balanço que as tecnologias da informação e comunicação (TIC) podem aportar aos territórios inteligentes e criativos (TIC) do futuro. Das TIC aos TIC eis o desafio.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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