Crónicas do Sudoeste Peninsular: Das TIC aos TIC

Num país tão pequeno e tão bem servido de vias de transporte e com o acesso crescente e generalizado das […]

Num país tão pequeno e tão bem servido de vias de transporte e com o acesso crescente e generalizado das gerações mais novas às tecnologias digitais, o problema da valorização do interior e do mundo rural tem necessariamente de ser pensado e equacionado em outros termos e condições.

Estou a pensar, por exemplo, na rede de ensino superior, universitário e politécnico, que cobre o país todo e, em particular, no papel das escolas superiores agrárias e nos alunos que delas saem todos os anos nas áreas de produção agrícola, produção animal e produção florestal, mas, também, de engenharia alimentar e do ambiente.

Das tecnologias da informação e comunicação (TIC) aos territórios inteligentes e criativos (TIC) da 2ª ruralidade, eis, pois, o grande desafio.

Das TIC aos TIC
Serão as TIC uma oportunidade única para o grande país do interior, para a formação da sua inteligência coletiva, serão os recursos intangíveis e a produção de conteúdos a eles associados os fatores inovadores e decisivos para editar os territórios inteligentes e criativos (TIC) do nosso interior?

Tomemos o exemplo da realidade aumentada (RA) e da realidade virtual (RV). A realidade, hoje, já não é o que era. Com efeito, com a realidade aumentada e com a realidade virtual nós acrescentamos realidade à realidade, viajamos no tempo, recuperamos recursos, misturamos o passado virtual e o futuro virtual com a realidade presente.

Passamos a ter uma “realidade tridimensional” e, em bom rigor, ambientes digitais em vez de realidades presenciais.

Se quisermos, realidades tangíveis e materiais serão transformadas em ecossistemas inteligentes de aprendizagem, conhecimento e recreação, que serão outros tantos recursos intangíveis para juntar aos recursos materiais com os quais os nossos singelos territórios do interior estão habituados a lidar.

Aqui está uma grande oportunidade. Estes recursos intangíveis – a realidade aumentada (RA) e a realidade virtual (RV) entre outros – aumentam a cadeia de valor dos territórios já existentes convertendo-os em territórios inteligentes e criativos, mais extrovertidos e abertos ao mundo.

A realidade aumentada é um ambiente que mistura elementos do mundo real com elementos do mundo virtual, sob o modo interativo, em duas e três dimensões e processada em tempo real. A realidade virtual é a simulação da realidade através da tecnologia, é a compreensão de um universo ficcional, pleno de significado para o entendimento do universo real e a sua transformação digital.

Hoje em dia praticamente todas as áreas de atividade estão ao alcance das TIC: da silvicultura preventiva à ecologia do fogo, da hidrologia à bioengenharia, da agricultura de precisão à luta biológica e à arquitetura da paisagem, da telemedicina aos serviços ambulatórios ao domicílio, já para não referir a verdadeira revolução na visitação turística, que começa por ser uma pré-visitação para se transformar, depois, numa visitação interativa.

Nesta visitação interativa, acoplada com toda a espécie de conteúdos, a RA e a RV permitem-nos a observação, em várias dimensões, de endemismos locais, de sítios arqueológicos, de ruínas milenares, de monumentos históricos, de pinturas e arte sacra, de paisagens literárias, de épocas históricas e heróis locais, autênticas viagens no tempo que fazem reviver locais “aparentemente abandonados”.

Este é o verdadeiro significado da “realidade tridimensional” e dos seus variados recursos intangíveis. Em síntese, alguns aspetos merecem ser sublinhados: em primeiro lugar, a enorme variedade de recursos imateriais que podem ser acrescentados aos recursos materiais originários, em segundo lugar, a emergência de um importante setor de produção de conteúdos, quer históricos, literários ou artísticos, em terceiro lugar, aquilo que podemos designar como a “ludificação dos territórios” a partir, justamente, do seu vasto imaginário simbólico e cultural, em quarto lugar, a importância de transformar eventos ocasionais em atos orgânicos duradouros tendo em vista estruturar uma pequena economia local, finalmente, a oportunidade única de regressarmos à “celebração ou sublimação de um lugar” que já julgávamos perdido ou abandonado.

Os territórios inteligentes e criativos
Aqui chegados, está criada uma enorme expetativa relativamente aos territórios inteligentes e criativos. Em qualquer caso, há um lado “menos benigno” e um lado “mais benigno” quando se invoca a inteligência das plataformas digitais, imprescindíveis para construir os territórios inteligentes e criativos.

A primeira face do problema leva-nos através da NET e das suas inúmeras redes e plataformas, sendo que o potencial de extração de mais-valias do trabalho humano é cada vez maior. De certo modo, voltámos à indústria extrativa do capitalismo, agora por alguns também denominado de capitalismo cognitivo (Boutang, 2007) e por muitos outros com a designação ambígua de economia colaborativa.

Passámos, pois, a ser colaboradores. Quer gostemos ou não, na era digital que já aí está, uma das alternativas em presença é a via dos precários da rede, se quisermos, os novos proletários das redes digitais. Este hipercapitalismo GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber), também chamado de “uberização” da sociedade, à imagem e semelhança da empresa UBER, congrega os grandes conglomerados da nova economia digital.

No estádio atual da revolução digital, o vazio de poder criado pela inovação disruptiva apanhou o Estado-regulador bastante desprevenido, impreparado e impotente. Estamos hoje em plena sociedade algorítmica rodeado de plataformas e aplicações por todos os lados. Enquanto se aguarda que a nova ideologia regulatória, talvez de origem europeia, com o mercado único digital, tome conta da ocorrência e ponha alguma ordem no sistema económico, o mundo do trabalho oscila completamente ao sabor da economia das plataformas hipercapitalistas.

A ideologia da “uberização” é a última versão radical do capitalismo, desta vez com uma pretensão verdadeiramente alucinante, a saber, o anúncio de um novo regime independente pós-salarial “com reputação”.

Doravante, não há relação salarial, não há sindicato, a reputação não tem contraditório, não há hétero nem auto-regulação, não há estímulos, trata-se, afinal, de trabalho dito independente, mais uma prestação de serviço do que uma relação contratual. Tudo fluido, precário, transitório, passageiro, como tudo o que a UBER transporta.

Estamos, portanto, em trânsito acelerado para o precariado digital, quais escravos das redes e dos aplicativos e das “estrelas de reputação”, sempre no interior do capitalismo neoliberal e numa clara regressão civilizacional em matéria de direitos económicos, sociais e humanos.

É preciso avisar, em particular, os nativos digitais mais distraídos para esta “sedução virtual” e para a ilusão do auto- empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial. O espírito comunitário e a solidariedade cooperativa e colaborativa ainda são os melhores antídotos.

É aqui que reside o lado mais prometedor das tecnologias de informação e comunicação ao serviço dos territórios mais desfavorecidos e é aqui que regresso ao papel essencial das universidades e escolas politécnicas, sobretudo na forma como se ocupam dos territórios onde estão implantadas e como promovem o empreendedorismo e a empregabilidade dos seus nativos digitais, pois existe o risco real de as regiões mais debilitadas perderem esses recursos tão preciosos que são os seus nativos digitais.

Com efeito, construir redes regionais de ensino superior e uma inteligência coletiva própria é um imperativo categórico para estes territórios do interior e é neste contexto que emerge o lado mais benigno das plataformas digitais, em especial no que diz respeito às várias modalidades de economia colaborativa.

Trata-se, além do mais, de construir um território-desejado que seja capaz de forjar um imaginário identitário com os seus sinais distintivos territoriais, digamos, a sua iconografia, imagem de marca e autoestima regional.

As instituições de ensino superior, em primeira instância, têm uma responsabilidade direta de que não podem abdicar, desde logo porque detêm um saber analítico, instrumental e tecnológico que podem colocar ao dispor da comunidade a que pertencem.

Basta pensar na acumulação de fatores como o declínio demográfico, as alterações climáticas e a aceleração tecnológica, e na sua iminente colisão, para deduzir, imediatamente, que é absolutamente necessário que os territórios se pensem a si próprios de forma inteligente e criativa.

Notas Finais
A terminar quatro pequenas notas finais. Em primeiro lugar, o poder real está, cada vez mais, fora das fronteiras nacionais. Os territórios do interior são minúsculos peões neste grande xadrez internacional.

Nunca a polarização e a desigualdade capitalistas foram tão pronunciadas. Neste contexto tão competitivo, a assertividade dos territórios do interior é um recurso de que não podemos prescindir. Os territórios-rede e os atores-rede podem alimentar essa autoestima tão necessária.

Em segundo lugar, a democracia doméstica só agora aprende a lidar com o universo digital, mas as contradições são inúmeras. As comunidades virtuais online também são extra-territoriais e não se identificam, muitas vezes, com as antigas comunidades reais offline. A cultura conectada é uma bricolage permanente, muitas vezes uma verdadeira caricatura, enquanto o discurso e o espaço públicos estão muito fragmentados para serem representativos e eficazes. O ator-rede precisa de estar avisado desta fragilidade.

Em terceiro lugar, o capitalismo vai atacar de novo na versão “3C”, ou seja, mais cognitiva, criativa e cultural. Será um capitalismo ainda mais sedutor, omnipresente na vida quotidiana e distribuindo sensibilidade, empatia e felicidade.

O risco de alienação é enorme, pois o acesso fácil e rápido ao oceano de informação que a internet e os motores de buscam proporcionam é uma verdadeira armadilha e deve ser tomado com conta, peso e medida.

Seja como for, este capitalismo 3C é, também, uma “nova economia de aglomeração” que é preciso explorar a todo o custo em benefício dos nossos territórios menos desenvolvidos.

Os territórios inteligentes e criativos do interior devido à sua baixa densidade e estrutura rarefeita precisam urgentemente dos efeitos aglutinadores desta economia a três dimensões. Este é um campo imenso de progresso que as redes regionais de ensino superior e as plataformas da economia digital terão de investigar e percorrer em conjunto no futuro próximo.

Por último, e apesar dos perigos, acreditamos que há uma esperança imensa na “internet primordial” e na capacidade que ela tem de nos mobilizar a todos na boa direção.

Há já uma energia positiva muito forte à nossa disposição, basta “apenas” que ajustemos um pouco melhor a nossa hierarquia de valores e o nosso sistema operativo à comunidade dos pares e aos bens comuns e colaborativos correspondentes.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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