Centenário de José Vitoriano é recordado com exposição na Biblioteca de Silves

O centenário de José Vitoriano, resistente antifascista, operário, militante do PCP, e, entre outras funções, vice-presidente da Assembleia da República, […]

O centenário de José Vitoriano, resistente antifascista, operário, militante do PCP, e, entre outras funções, vice-presidente da Assembleia da República, será recordado na Biblioteca Municipal de Silves, numa exposição que estará patente ao público entre 19 e 27 de Janeiro.

Esta mostra, que dá a conhecer o silvense falecido em 2006 e aquele que até à atualidade ocupou o mais alto cargo político, abriu portas em Lisboa, na Casa do Alentejo, onde encerrou a 17 de Dezembro, e agora, vem para a cidade natal de José Vitoriano, onde todas as gerações poderão recordar ou conhecer este homem, que foi uma referência da luta operária na cidade e no país.

 

Para recordar José Vitoriano, reproduz-se aqui o texto publicado no jornal Terra Ruiva (edição nº 65, de Fevereiro de 2006) e intitulado “José Vitoriano, Um Silvense Singular”, da historiadora Maria João Raminhos Duarte:

«No 1º mandato presidencial de Ramalho Eanes, José Vitoriano foi agraciado com a “Ordem da Liberdade”. Do seu amigo Álvaro Cunhal ouviu, no seu 80º aniversário, o maior elogio: “Se pudéssemos escolher quem somos, eu quereria ser como o José Vitoriano”.

José Vitoriano faleceu a 3/02/2006, vítima de cancro na pleura.

Este pequeno artigo tem como objetivo dar a conhecer o silvense José Vitoriano, figura incontornável na História Contemporânea Portuguesa pelo seu extraordinário percurso de vida. Quem visse José Vitoriano não poderia adivinhar que aquele homem de corpo pequeno e franzino, de olhos meigos e sorridente, tivesse tido uma vida tão peculiar, quanto difícil, resultante da sua entrega total à luta pela liberdade e por uma sociedade mais humana.

A sua abnegação a esta causa mudou a sua vida comum de operário corticeiro, trazendo-lhe uma outra, a das prisões, da tortura, da clandestinidade, do exílio e da saudade.

A pertinácia dos seus pontos de vista, a retidão do seu pensamento, o trabalho incansável, a resistência inquebrantável perante a PIDE e o espírito de tolerância que o caracterizaram, fizeram que José Vitoriano, modesto militante de base do núcleo do PCP silvense dos anos 40, ascendesse ao topo da hierarquia deste partido, sendo considerado uma figura emblemática na galeria dos mais notáveis militantes do PCP.

Passemos à sua História!

A vida
José Rodrigues Vitoriano, filho de António Vitoriano e de Mariana da Conceição, nasceu em Torre e Cercas, perto de Silves, a 31 de dezembro de 1917, (embora tivesse sido registado como nascido a 01 de janeiro de 1918), no seio de uma família de camponeses pobres. Teve a infância característica das crianças silvenses das famílias operárias e camponesas.

Muitas vezes descalço, ajudava seus pais no trabalho do campo, a guardar os porquitos, a carregar água para casa e a arranjar lenha para queimar na cozinha. Muito irrequieto e ligeiro, revelava uma genuína curiosidade pelas coisas à sua volta, mas a Escola Primária ficava na cidade, a 6 km, e os pais precisavam da sua ajuda no trabalho rural.

Aos 8 anos aprendeu a ler com um “moço”, que morava a 3 km de sua casa e que tinha acabado de fazer exame de instrução primária, pelo que começara à noite a ensinar alguns miúdos, a quem cobrava 1$00 por semana. Quatro meses depois, o Zé, com o que aprendera, começou a ensinar os miúdos do seu monte e das proximidades e, segundo me confessou com ar meio envergonhado, “armado em professor” cobrava-lhes o mesmo. Ensinou ao pai o suficiente para ler o jornal e escrever o seu nome. Aos 10 anos, e porque o irmão mais novo o pode substituir no trabalho familiar, o Zé foi para a escola primária que concluiu aos 12 anos.

Os pais, entusiasmados com a facilidade com que ele aprendia, pensaram fazer “um sacrifício” para que continuasse os estudos na Escola Comercial e Industrial de Silves. Cometeram o erro de pedir a opinião a um lavrador conhecido.

O conselho deste foi perentório: “Oh! Homem, deixe-se disso. Ponha-o mas é a trabalhar!”.

Na fábrica
Assim, acabado de fazer 13 anos, o Zé foi trabalhar para a fábrica de cortiça de José A. Duarte. Entrou, como todos os rapazes, para o “tráfego”, que em linguagem da fábrica era o “estrafego”, um trabalho inqualificado composto de muitos serviços que eram feitos por miúdos.

O trabalho na cidade deu-lhe a conhecer um mundo que adivinhava, mas desconhecia, o da oposição operária ao regime. Não presenciou as greves de 1932 e 1934, pois os grevistas faziam piquetes nas veredas que conduziam o campo à cidade, pelo que os corticeiros vindos dos arredores voltavam para trás no dia em que “soava a greve”.

Ouvia, porém, as conversas e sabia o que se passara, especialmente nessa última greve que originara as prisões de muitos corticeiros anarquistas e comunistas seus conhecidos. Aos 15 anos, Fernando Melrinho, um velho corticeiro, dera-lhe o primeiro Avante! “Tu não percebes nada disto, mas toma lá e lê”.

Perante a sagacidade e destreza do rapaz, o patrão foi-o promovendo, até o colocar num armazém como responsável por um grupo de jovens aprendizas de escolha de rolhas, a quem deveria vigiar e controlar a produção. “Aqui foi o fim” e, aos 18 anos, foi despedido.

Seguidamente, o Zé foi trabalhar para a fábrica de Aldemiro Mira, um dos centros da organização do PCP local. Com a Guerra Civil de Espanha, despertou “para as coisas políticas”, ligando-se uma intensa atividade associativa.

Frequentava o Bar do Silves Futebol Clube, onde se ouvia à socapa a Rádio Madrid. Aprendeu Esperanto na Escola Esperantista de José Gonçalves Vítor. Recuperou do abandono, com outros corticeiros, a S. Filarmónica Silvense. Fundou e organizou, inicialmente em sua casa, a Biblioteca Popular. Inscreveu-se na Escola C. e I de Silves, tendo concluído o curso industrial noturno.

O início da atividade política
Apesar de não ser ainda militante do PCP, o Zé acompanhava alguns deles, participava nas discussões, nos comentários dos noticiários, vendia senhas do Socorro Vermelho Internacional, distribuía alguns Avante! e colaborava nas subscrições para a ajuda aos presos políticos da terra, que envelheciam em Angra do Heroísmo e no Tarrafal, em consequência do 18 de Janeiro de 1934.

Foi com a prisão do comité local do PCP, em 1938, que tomou “melhor consciência da necessidade de lutar”. No período da II Guerra Mundial, o Zé já era um homem esclarecido. Lera os clássicos da literatura e do marxismo, bem como a imprensa progressista nacional, nomeadamente O Diabo, cuja coleção completa lhe foi oferecida por Fernando Piteira Santos.

O ano de 1941, ano em que a reorganização do PCP se fez sentir no Algarve, marcou a entrada oficial do Zé no núcleo local do PCP. A par de um intenso trabalho associativo, pois fazia parte das direções do Silves Futebol Clube, da Filarmónica de Silves e da Cooperativa A Compensadora, rapidamente ascendeu ao comité local e seguidamente ao Comité Regional do Barlavento, que integrava as estruturas clandestinas do PCP de Silves, Portimão e Lagos.

Na conjuntura do final da guerra, a situação do operariado silvense era dramática. Havia desemprego e falta de géneros. Os operários formavam comissões e faziam concentrações, de modo a forçar que o Sindicato Nacional dos Operários Corticeiros interviesse junto da organização dos abastecimentos ou resolvesse as questões mais prementes.

Quando o regime anunciou, em Novembro de 1944, que iria haver eleições em todos os sindicatos, José Vitoriano, por vontade dos operários corticeiros de Silves, foi colocado à frente de uma lista que saiu vencedora em Janeiro de 1945. O PCP conseguira furar a organização corporativa, colocando à frente do sindicato corticeiro corporativo um dos seus mais ativos e promissores militantes.

A eleição de José Vitoriano para Presidente do Sindicato provocou uma reorganização do comité local e a subida de novos elementos. A partir desta altura José Vitoriano, por razões de segurança, afastou-se completamente da organização local do PCP, integrando somente o Comité Provincial do Algarve, no qual era responsável pela política sindical. Pela mesma razão, não integrou os movimentos democráticos silvenses do MUD e do MUD Juvenil, no pós guerra.

À frente do Sindicato, José Vitoriano realizou um excelente trabalho em defesa dos operários corticeiros silvenses que, nos anos 40, viviam no limiar da mais elementar pobreza, afetados pela fome, pelo desemprego, pela tuberculose e pelas habituais arbitrariedades de alguns industriais locais.

Em 1946, José Vitoriano foi delegado ao IV Congresso do PCP. Em consequência do Congresso, as suas responsabilidades aumentaram no movimento operário nacional. Tornou-se membro do Comité Nacional Corticeiro e da Comissão Nacional Sindical que coordenavam as lutas dos corticeiros no país. No Algarve, também clandestinamente, controlava uma comissão de líderes sindicais e ainda uma comissão sindical de operários, também de carácter provincial.

A prisão
Na razia que o Inspetor da PIDE Fernando Gouveia fez no Algarve, José Vitoriano foi um dos últimos silvenses a ser preso, a 30/06/1948. Numa primeira reação, pensou:- “Que alívio!”, pois sendo responsável por tantas tarefas, umas legais outras clandestinas, quase não tinha tempo para nada.

Às mãos de Gouveia, foi barbaramente espancado e sujeito “à estátua”. “Eu atirava-me para o chão. Nunca deixei passar mais de três e três noites. Atirava-me para o chão, e eles davam-me pontapés, atiravam-me água, mas eu mantinha-me no chão e eles levavam-me para a cela”.

Foi condenado em “Tribunal Plenário” sob a acusação de “participação no movimento operário clandestino” e condenado a 2 anos e meio de prisão maior celular e na suspensão dos direitos políticos por 15 anos, tendo passado pelas cadeias do Aljube, Caxias, Peniche e Setúbal. Participou na organização de várias fugas célebres das prisões portuguesas. Foi libertado em Maio de 1951. Regressou a Silves, onde trabalhou, por pouco tempo, na fábrica de Joaquim de Lisboa. Partiu para a Cova da Piedade, entrando para a clandestinidade em Agosto de 1951.

José Vitoriano voltou a ser preso por Rosa Casaco, em Alcanena, em Janeiro de 1953, quando era o responsável do PCP pela região do Oeste e Alto Ribatejo. À saída de Alcanena, depois de uma reunião clandestina, vinha ele de bicicleta, quando, de um carro que aparecera por trás, ouviu um grito: “É ele, é ele”! Foi imediatamente agarrado, e à pergunta: “Está armado?”, percebeu “Está arrumado”, e respondeu: – “Pois estou!”, o que lhe valeu alguma dureza na detenção. Foi condenado a 4 anos de prisão maior celular e a “medidas de segurança”. Sabendo da sua postura na prisão anterior, desta vez a PIDE não o torturou.

Começou, aí, o longo cativeiro de 13 anos e meio, que o privou da liberdade até 1966. Passou de novo, e várias vezes, pelas prisões do Aljube, Caxias e Peniche, onde conviveu com os mais destacados oposicionistas e militantes do PCP.

Foi várias vezes punido com privação de visitas ou dias em cela disciplinar por reclamar por escrito das condições e arbitrariedades prisionais. Não participou na fuga do Aljube de 1957 por “asneira”. Tendo iniciado o cumprimento de “medidas de segurança”, pensou ingenuamente que não valia a pena correr o risco, pois daí a uns meses sairia “com a porta aberta”.

O Processo dos Papelinhos
Entretanto, numa rusga às celas, os guardas encontraram alguns papéis escritos. A caligrafia de um deles era a de José Vitoriano, que se limitara a copiar os “Estatutos da Comuna”, sistema que havia nas celas coletivas e que organizava um fundo de solidariedade para as necessidades dos presos.

A PIDE instruiu outro processo, no qual José Vitoriano, entre vários, estava incluído. Ficou conhecido como o “Processo dos Papelinhos”. Julgado em Tribunal Plenário, foi condenado a 5 anos e meio de cadeia, “por atividades atentatórias da segurança interna e externa do Estado”, o que era, no mínimo, anedótico, dada a sua condição de preso.

Teve a defendê-lo Manuel João da Palma Carlos que em plena audiência foi destituído, julgado, multado e condenado. José Vitoriano recorreu para o Supremo Tribunal e foi condenado a mais 1 ano, a 6 anos e meio, por reincidência.

Quando foi libertado voltou para a profissão na Cova da Piedade, até tomar contacto com o PCP.

No estrangeiro
Em janeiro de 1967, mergulhou outra vez na clandestinidade, desta vez com sua mulher Diamantina Vitoriano, indo para o estrangeiro.

A primeira paragem foi Praga e depois a URSS. José Vitoriano regressou a França, onde trabalhou vários anos com Álvaro Cunhal.

Na primeira reunião do CC, após a sua libertação, na Checoslováquia, em 1967, foi cooptado para este órgão, no qual se manteve até ao ano 2000. Em 1968, após a morte do Manuel Rodrigues da Silva, foi eleito membro do Secretariado, do qual fez parte até 1972.

Durante a sua estadia no estrangeiro, veio várias vezes clandestinamente a Portugal fazer reuniões de organização do trabalho do PCP, ligando o Secretariado com a Comissão Executiva.

Em janeiro de 1973, José Vitoriano regressou a Portugal, para o Porto, integrando a Comissão Executiva, que era o organismo que dirigia o PCP no interior do país. Ficou como responsável pela organização sindical a Sul do Tejo, participava simultaneamente na equipa que preparava o Avante!, estando ligado a uma tipografia que imprimia O Militante.

Depois do 25 de Abril
O 25 de Abril de 1974 apanhou-o no Porto, em plena reunião da CE. “Fui para a rua e andámos misturados com aquela gente toda”. “Foi uma imensa alegria!”

José Vitoriano integrou a Comissão Política (1976 – 1988) e a Comissão Central de Controlo do PCP (1988 – 2000). Foi deputado à Assembleia da República de 1977 a 1987 e seu Vice-presidente até 1984. No 1.º mandato presidencial de Ramalho Eanes, José Vitoriano foi agraciado com a “Ordem da Liberdade”. Do seu amigo Álvaro Cunhal ouviu, no seu 80.º aniversário, o maior elogio: “Se pudéssemos escolher quem somos, eu quereria ser como o José Vitoriano”.

José Vitoriano faleceu a 3/02/2006, vítima de cancro na pleura.

A síntese biográfica aqui apresentada é só um pouco de José Vitoriano. Faltou espaço para descrever as peripécias mirabolantes da sua vida de clandestino, os inúmeros episódios prisionais de que foi testemunha privilegiada e, mais que tudo, a essência do seu espírito. Sob aquela fragilidade aparente, possuía princípios imutáveis que os quase 17 anos de prisão reafirmaram, e a crença inabalável num Homem verdadeiramente novo ….

Para mim, José Vitoriano foi um homem raro, senão único…»

Nota: As expressões referenciadas entre aspas, correspondem a citações feitas à autora por José Vitoriano

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