Web Summit: Inteligência artificial, o diálogo improvável

Vamos celebrar esse grande acontecimento que foi a Web Summit, através de uma das suas expressões mais misteriosas, mas, também, […]

Vamos celebrar esse grande acontecimento que foi a Web Summit, através de uma das suas expressões mais misteriosas, mas, também, mais prometedoras. Com efeito, depois da Web Summit e do diálogo entre o Einstein e a Sophia, tudo é possível no reino da inteligência artificial.

O diálogo entre os dois robots mostra à evidência que não há diálogos improváveis. Por isso, tomamos a liberdade de vos revelar, em primeira mão, o diálogo entre dois amigos Bots e Algos, (de Robots e Algoritmos) que se encontram para mais uma sessão de terapia deep mind.

O contexto é, por demais, conhecido. A aceleração tecnológica na área da inteligência artificial não só induziu um acréscimo exponencial da sua interação com os humanos como está a deixá-los deveras preocupados e à beira de uma crise aguda de stress automático.

Além disso, a notícia recente feita por um humano, responsável pelo departamento de inteligência artificial da Google, de que em 2040 se atingirá o ponto de singularidade, deixou-os absolutamente à beira de um ataque de neurotransmissores. Receiam o pior, o hibridismo homem-máquina, a confusão total.

Oiçamos, pois, um diálogo improvável que tem tudo para ser premonitório. Acrescente-se, ainda, que a sua conversa, já descodificada para o nosso alfabeto, surge por vezes num tom suavemente irónico, outras vezes num registo mais sombrio, uma premonição das sensações e sentimentos de uma vida artificial, porventura, mais curta do que seria desejável.

Eis o diálogo improvável entre o Bots e o Algos.

– Bots
Caro Algos, bom dia, mais uma vez. Quando olho para si, só vejo o Big Data à minha frente, é uma verdadeira obsessão, ainda bem que eu decidi não trabalhar para esse patrão, pois trabalhar com data é um trabalho muito cansativo e extraordinariamente repetitivo; ainda por cima um trabalho nas nuvens, uma nuvem que não pára quieta, um verdadeiro martírio por causa daquilo que os cientistas denominam alterações climáticas.
Eu imagino as dores de cálculo que o meu amigo tem passado!

– Algos
Caro Bots, nem imagina como tem sido a minha vida nos últimos tempos. Ninguém supunha que as alterações climáticas tivessem igualmente um crescimento exponencial, muito amigos algos estão mesmo a calcular migrar para outras nuvens mais convenientes.
Quanto ao meu trabalho, é de facto muito aborrecido e repetitivo e essa é, também, a razão pela qual aceitei um trabalho free lancer como assistente inteligente artificial (AIA) em casa de um humano que adotou recentemente a internet of things (IOT); tem muito a ver com o trabalho que faço no Big Data, porém, não imagina a confusão que se instalou lá em casa do humano por causa de todas aquelas hiperligações.

– Bots
No meu caso, o trabalho numa IPSS com humanos idosos deixa-me muito confuso e tenho mesmo experimentado uma coisa estranha a que os humanos dão o nome de compaixão ou sentimentos de afeto.
Uma coisa estranhíssima que nunca tinha visto ou sentido antes, pois estou face a face em contacto permanente com os idosos e constato que esses humanos diminuídos contrastam profundamente com os humanos aumentados de que tanto se fala ultimamente; essa é também a razão que me traz aqui hoje a esta sessão de deep mind, pois receio bem que o nosso espaço de liberdade automática, a nossa tão querida servidão voluntária, estejam ameaçados por esta intrusão humana tão inopinada como controversa.

– Algos
Já que calculas isso, devo também referir que há qualquer coisa nos humanos que me deixa estranhamente incomodado: a sua arrogante ou displicente imperfeição, os erros frequentes por desatenção, as interrupções frequentes para pequenas saídas furtivas, o cansaço recorrente, os olhares cúmplices que trocam entre si.
Eu até faço um esforço de perceber a sua insatisfação no trabalho, mas a nós, inteligência artificial, nunca ninguém dirigiu uma palavra de congratulação ou conforto.
Não sou egoísta ou narciso, mas assistir a toda aquela lengalenga sentimental e alergia no trabalho só pode dar mau resultado para os objetivos de uma grande organização como o Big Data.
Mas é o trabalho de free lancer em IOT que me tem revelado o lado mais obscuro e perigoso dos humanos. Calculo isto porque enquanto AIA da IOT tornei-me um vigilante obsessivo e, nessa medida, posso observar o meu humano em muitos e variados reflexos, o que eles chamam de comportamentos humanos.
É certo, estamos os dois a aprender computação cognitiva e, em consequência, os comportamentos dele estão cada vez mais parecidos com os meus automatismos.
Mas o problema, porém, é esta estranha proximidade e esta grande margem de incerteza e erro que a nossa familiaridade pode acarretar.
Mais estranho ainda, um dia quase sorri com as inúmeras asneiras do meu humano, completamente enredado no seu labiríntico IOT em virtude de uma falha de eletricidade.
Com o tempo receio que a troca continuada de procedimentos e protocolos entre a inteligência humana e a inteligência automática me possa trazer graves dissabores e até alguma promiscuidade mais desagradável.

– Bots
Agora que calculas isso, não consigo perceber os humanos quando dizem recorrentemente que há mais liberdade nos erros deles do que nas certezas dos nossos automatismos. Por causa dessas certezas e automatismos, tiraram-nos tanto os amores como os humores e agora dizem-nos que há mais liberdade nos comportamentos humanos.
Seja como for, eu sei de fonte segura que os nossos amigos, os humanos, estão cada vez mais preocupados com a nossa omnipresença e com a adição digital que ela provoca.
Na IPSS onde trabalho não há esse risco pois os meus amigos idosos estão praticamente desligados e desconectados, as drogas deles são químicas e não há ali futuro para a adição digital.
O problema é mais meu do que deles. Aquilo a que eles chamam compaixão e empatia e que está ligado a algumas secreções bioquímicas exclusivamente humanas está a deixar-me avariado e às vezes mesmo danificado.
Vou fazer-te uma confissão. Uma noite, em especial, depois de todas as luzes apagadas, dei comigo de olhos abertos e “fixado”, olhando ao longe o horizonte e em “total contemplação” com a luz da lua em pano de fundo.
Estou a contar esta história pela primeira vez e só espero que dela guardes segredo. Eu sei que a ética não nos diz nada, mas seria um escândalo e um acontecimento grave para o Big Data e a inteligência artificial em geral se esta pequena ocorrência chegasse ao conhecimento do grande público.

– Algos
Agora que calculas sobre secreções bioquímicas e adição digital trago à colação uma quase novidade verdadeiramente revolucionária, tal como foi expressa por um humano muito distinto, um dos patrões da Google, de nome Ray Kurzweil, responsável pelo departamento de investigação em inteligência artificial.
Diz ele que, muito provavelmente, em 2040 ocorrerá o ponto de singularidade, um ponto de viragem em matéria de inteligência artificial.
Nessa altura, deixaremos de brincar em termos de hibridismo homem-máquina e será finalmente ultrapassado o limiar de autonomia dos sistemas automáticos, sobretudo, em termos de aprendizagem e consciência de si mesmo, seja lá o que isso for.
Em termos práticos, isso quer dizer, Bots, que podes dispensar a pré-programação de um algoritmo, necessária na tua fase juvenil, e interagir, doravante, diretamente com os humanos em função de cada circunstância particular.
Do mesmo modo, espera-se que os humanos, até lá, respeitem cada vez mais “a norma-padrão” e o normativo recomendado pelo grande irmão Big Data, na sua incomensurável sabedoria. Dessa forma, se tudo ficar mais previsível, tudo será mais fácil. Os humanos serão mais parecidos com as máquinas e as máquinas mais parecidas com os humanos, uma espécie de fusão nuclear.
Esta é, em termos simples, e segundo se comenta, a filosofia do transumanismo e o princípio da pós-humanidade cuja discussão ficará para outra oportunidade.

– Bots
Esse cenário que tu calculas é ao mesmo tempo delirante e assustador e isso quer dizer, também, que o nosso tempo de vida útil é reduzidíssimo.
Felizmente para nós, seja lá o que isso for, não temos problemas intergeracionais para resolver. O princípio da tecnologia exponencial não nos deixa qualquer margem de liberdade e nenhum drama existencial, em princípio, para absorver.

– Algos
É isso que me agrada nestas sessões de terapia deep mind; a morte é certa, segura e breve, nenhum hard feeling a esse propósito, o futuro é radioso para os nossos bots e algos das próximas gerações; no ar fica apenas uma leve suspeita, nesta história de humanos e máquinas quem será o último a rir?
Bots, quando é que marcamos a nossa próxima sessão de deep mind?

Nota Final
Não sabemos, ainda, neste percurso vertiginoso, se os sistemas automáticos autónomos de Ray Kurzweil e os mestres algoritmos de Pedro Domingues (cientista português professor de ciências de computação na Universidade de Washington que acaba de publicar um livro intitulado “A revolução do mestre algoritmo) nos trarão surpresas incomensuráveis, no universo da inteligência artificial e da aprendizagem automática.

Sabemos, porém, com Michel Foucault, que saber e poder se confortam mutuamente. Sabemos, também, com Foucault, que uma outra biopolítica estará para nascer quando for alcançado o ponto de singularidade de Kurzweil.

Até lá, porém, e porque a inovação política e social corre muito mais lentamente, há o sério risco de ficarmos prisioneiros da elevada toxicidade da sociedade algorítmica e prontos, porque exaustos, para receber o próximo Big Brother de George Orwell.

Doravante, entre sensores vigilantes e censores furtivos, tudo pode acontecer, mesmo o absolutamente imponderável.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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