Crónicas do Sudoeste Peninsular: O rural tardio português

As imagens dos fogos e das aldeias serranas, na sua imensa crueza, devolvem-nos aquilo que eu costumo designar como o […]

As imagens dos fogos e das aldeias serranas, na sua imensa crueza, devolvem-nos aquilo que eu costumo designar como o “rural tardio português”, um universo pleno de sentimentos contraditórios acerca do nosso passado, presente e futuro e do que, geralmente, entendemos por tradição e modernização do mundo rural.

Do mesmo passo, aquelas imagens revelam-nos a dureza da tarefa que temos pela frente em matéria de remediação e reconstrução e em busca de espaços agro-rurais que reúnam um mínimo de requisitos para serem considerados unidades de intervenção, planeamento e gestão de territórios multifunções nas zonas ardidas.

Perante tal tragédia e desapontamento, pergunto-me se será, ainda, possível definir uma nova convenção de compromissos-responsabilidades-benefícios, uma espécie de contrato entre a sociedade e a natureza, que seja uma exigência e um imperativo éticos, mais do que uma promessa da política pública.

Mais uma vez, perante as imagens da tragédia, quando queremos pôr ordem no pensamento e na ação, levantam-se os problemas de sempre, de natureza institucional e organizacional, se quisermos, questões de instituições e normas, de processo e procedimento. Num tempo de aceleração sem precedentes, façamos uma breve incursão por este mundo paradoxal do rural tardio português.

 

Os novos conceitos e as mudanças de agenda

Os conceitos novos ou emergentes têm uma carga prescritiva e normativa muito elevada. Falamos de conceitos como segurança, nas suas várias versões, de sustentabilidade, de multifuncionalidade, de conservação, de biodiversidade, de ecossistema, de paisagem, etc.

Qual é o risco e, portanto, a prudência? O risco é que a política pública para o mundo rural adote as suas recomendações prescritivas e normativas sem que, para tanto, adote o envelope orçamental e as medidas de acompanhamento que se impõem ou, ainda, sem que uma avaliação rigorosa da “realidade” nos diga qual é efetivamente o nosso ponto de partida e de aplicação.

A consequência mais imediata é uma pressão sobre os “custos de formalidade” a cumprir pelos agentes económicos e, na ausência de apoios apropriados e diferenciados, a eventualidade do crescimento da economia clandestina e do abandono.

Esses conceitos, quase sempre de origem urbana e importada, refletem, é certo, valores societais emergentes, o problema é que não podemos matar o doente com uma dose prescritiva desproporcionada. O rural tardio português assiste com circunspeção.

A esta normatividade excessiva, em boa parte oriunda da União Europeia, que desterritorializa a pouco e pouco o país e, objetivamente, elimina muitas micro e pequenas empresas agro-rurais, adiciona-se uma outra característica do sistema político atual, a saber, a abdicação do Estado-administração em ter um discurso coerente, no espaço e no tempo, ideológico, como se dizia há uns anos, sobre os seus programas e medidas de intervenção.

Dito de outro modo, a política pública para o mundo rural perdeu o carácter unitário que tinha outrora no tempo dos “grandes sistemas de pensamento”. Digamos que “outrora o sistema tomava conta da realidade, hoje a hiper-realidade tomou conta do sistema”.

O sistema está, digamos, a purgar-se do unitarismo ideológico de antigamente, do seu paternalismo conservador, mas sem nos dar, em troca, nenhum quadro de coerência alternativo.

Por isso, a fragmentação de hoje parece substituir o unitarismo de outrora. De certa forma, o sistema está a fragmentar-se e a pulverizar-se em várias direções, experimentando várias soluções e vias muito diversas, talvez para se reagrupar um pouco mais à frente de forma mais sólida e consistente.

Mas será mesmo necessário um quadro de coerência alternativo? Não estará este “quadro de coerência” fora de moda? Quais são, então, os novos temas em agenda?

Hoje em dia, os temas fortes em agenda dizem respeito à segurança alimentar, à agricultura de precisão, à ambientalização da agricultura, à florestação de terras agrícolas, à energetização das culturas e à turistificação do espaço.

Estes temas introduziram uma maior mediatização da política pública para o mundo rural porque se alteraram, claramente, as relações de força e as condições de exercício do poder em meio rural.

Dito de outra forma, a velha regulação agro-sectorial produtivista ligada à produção agrícola cede, progressivamente, o passo a uma outra administração agro-rural dominada pelo rural não-agrícola, por via de um conjunto de regras, processos e procedimentos que aqui designamos de governança agro-rural, sendo certo que sem uma normatividade favorável esta governança perde efetividade. O rural tardio português assiste com circunspeção.

É aqui, também, que entronca uma nova questão política, qual seja, a coabitação pacífica entre propriedade e acessibilidade, uma questão de sociedade que marcará as próximas décadas. De facto, as novas procuras socio-urbanas clamam pelo acesso aos bens públicos rurais, independentemente do direito de propriedade, público ou privado, que sobre eles impende.

Como é evidente, esta acessibilidade pode contender com o direito de propriedade e ser uma fonte de conflito recorrente se a relação entre propriedade e acessibilidade não for rapidamente esclarecida pela política pública.

Dito de outra forma, no próximo futuro, a relação entre liberdade de circulação, direito de propriedade, bens públicos rurais e política pública estará no centro das atenções e será objeto de diversos conflitos de interesse em espaço agro-rural. O rural tardio português fica na expetativa.

Entretanto, o mundo não pára e a questão que fica por saber é o que acontecerá às várias movimentações em curso no espaço rural e respetiva regulação: à economia da “destruição criativa” de quem se esperam milagres de realização, à economia da prevenção do abandono e do fogo, à economia da especulação fundiária e imobiliária ou, ainda, aos efeitos da economia de predação por parte daqueles que por cá passaram, temporariamente, para explorar os nossos recursos naturais e que, uma vez exaustos, abandonaram.

A questão essencial, desde logo, é a de saber se nos sentimos confortáveis e confortados com a saída de cena do Estado-administração que deixa território soberano entregue a si próprio e, objetivamente, favorece a aquisição e concentração da propriedade da terra, ou se o Estado-administração, num assomo de “brio político-profissional”, reclamará e replicará sobre todo o território rural a apelação “projeto de interesse nacional”, assim salvando a honra do convento? O rural tardio português aguarda com expetativa.

 

Ideologia e preconceito no rural tardio português

Ao longo do século XX fomos acumulando inúmeras contradições em redor do binómio tradição-modernização que fizeram prolongar, mais do que deviam, o rural tardio português. A título de exemplo, já sabíamos, há muito tempo, que uma mudança não se decreta nem termina com a publicação de um diploma em Diário da República.

No entanto, passados mais de 40 anos sobre a revolução de Abril, este “vício do sistema” continua a fazer-nos companhia. Façamos, então, uma breve viagem aos “vícios e promessas” do conservadorismo português em matéria de administração agro-rural.

a) a polarização urbano-rural: uma dicotomia embaraçosa

Uma dicotomia embaraçosa é o mínimo que se pode dizer a propósito da polarização urbano-rural. Estão, ainda, por apurar os malefícios que esta polarização causou aos territórios rurais, em geral, e às zonas agrícolas desfavorecidas, em particular.

Os zonamentos da chamada política urbanística substituíram a circulação dos elementos e os corredores ecológicos, os espaços deixaram de comunicar entre si, a rede urbana desequilibrou-se e invadiu os solos agrícolas, malbaratando um recurso escasso que tem hoje um custo de reposição elevadíssimo.

b) das funções nobres às funções pobres: o fim da extensão rural

O mercado, o associativismo, os serviços de assistência técnica, a consultadoria, substituíram a velha administração “extensionista e paternalista”. O processo produtivo segmentou-se. A especialização conduziu à fragmentação das disciplinas de vocação rural.

Os serviços passaram, gradualmente, do “front office” para o “back office”. As funções de controlo e inspeção tomaram a dianteira por virtude da aplicação da política agrícola comum.

A conceção, o planeamento e a logística própria das ações de extensão rural foram relegados para plano secundário.

c) o conservadorismo agro-profissional e a corporativização do mundo rural

A falência do triângulo associações-universidades-administração foi fatal para a modernização do nosso mundo rural. Sem esta associação falharam as tarefas de programação, planeamento e aplicação das atividades de investigação-extensão-ação. Com honrosas exceções.

O campo ficou aberto para o domínio da indústria sobre a agricultura, assente em pacotes tecnológicos, no difusionismo tecnológico e na “superioridade esmagadora” do saber técnico sobre o saber tradicional. Uma mistura perigosa de dirigismo associativo, de funcionarização administrativa e de carreirismo científico tornou tudo mais difícil.

d) o conservadorismo da política pública: a prioridade à execução financeira de programas

Há muitas formas de conservadorismo da política pública, uma delas é substituir a qualidade e a sustentabilidade dos projetos pela “execução dos programas” para manter o estatuto de “bom aluno”.

Outra forma de conservadorismo é não diferenciar os instrumentos de política pública, o que tem como consequência a imposição de custos de formalidade excessivos e a segregação das micro e pequenas explorações agro-rurais por via da normalização tecno-burocrática.

Outra forma, ainda, é a forte dependência do movimento associativo dos financiamentos públicos, o que lhes retira margem de liberdade e alguma ousadia para inovar a sua relação com os associados e o território.

Passemos agora em revista algumas promessas da nova governança agro-rural, em especial as ligações entre os vários “agros”, em relação às quais o rural tardio português também olha com circunspeção.

e) o analfabetismo multifuncional e ecossistémico sobre o espaço rural

Em períodos de transição, como este que vivemos, há sempre vários discursos sobrepostos sobre o futuro do mundo rural. Ou, o que é pior, discursos difusos e confusos sobre os vários “agros” em agenda. Falamos dos “agros” e da sua articulação espacial e territorial: o agro-alimentar, o agro-florestal, o agro-ambiental, o agro-conservacionista, o agro-energético, o agro-recreativo, o agro-paisagístico e o agro-rural.

Como é que todos estes agros convivem e comunicam entre si, como articulam os seus de efeitos de aglomeração, reticulação e capilaridade, na exata medida em que é preciso pôr ordem no mapeamento do espaço rural que eles configuram.

A governança agro-rural diz, justamente, respeito ao planeamento e gestão destas ligações, inscritas em territórios concretos e à administração de redes de atores, atividades e organizações que eles implicam. Trata-se de uma atividade muito complexa, intensiva em conhecimento, se quisermos, uma pequena revolução na cultura organizacional da administração do “agros” nacional.

Neste sentido, a ausência de um regulador agro-rural acreditado pode significar abandono, especulação, oportunismo, predação. Esse regulador sistémico, na minha opinião, só pode estar fora do mundo rural, mais propriamente no “centro de racionalidade” que é plano de desenvolvimento regional.

f) uma administração direta da infraestrutura ecológica e biofísica regional

Nesta linha de raciocínio, uma das tarefas primordiais da nova governança agro-rural é a administração direta de uma infraestrutura ecológica e biofísica regional e, bem assim, os serviços ambientais e ecossistémicos que dela derivam, o que não invalida que não se possam estabelecer parcerias ou contratos público-privados para o mesmo efeito.

Trata-se de restabelecer, tanto quanto possível, a energia vital dos ecossistemas locais e regionais para, a partir dessa regeneração, reiniciar novas atividades económicas. No mesmo sentido, os serviços ambientais e os serviços ecossistémicos podem constituir uma fonte de receita com interesse para os produtores.

g) uma administração indireta da matriz energética agro-rural

Uma tarefa prioritária da nova governança agro-rural, em íntima relação com a infraestrutura ecológica, é o redesenho da matriz energética local e regional. Trata-se de uma área da maior importância para o futuro sustentável do mundo rural, a requerer, por exemplo, uma forte ligação entre a investigação aplicada e a extensão agro-rural.

Referimo-nos, por exemplo, aos sistemas combinados, à escala de uma exploração agrícola e/ou de uma aldeia, de produção de energia, calor e combustíveis, a partir do aproveitamento de resíduos e culturas energéticas renováveis.

É, além disso, um domínio de intervenção privilegiado para relançar, em novas bases, a cooperação triangular entre as universidades, as organizações do mundo rural e a administração pública.

Nas intervenções territoriais integradas (ITI) do novo programa de desenvolvimento rural a construção de uma matriz energética adaptada aos recursos endógenos pode constituir um projeto inovador com fortes efeitos multiplicadores sobre o território envolvente.

h) uma administração regulatória ligada ao cumprimento de normas

Na nova governança agro-rural, as tarefas ligadas à produção agrária, convencional e não-convencional, são, cada vez mais, tarefas ou funções de cariz regulatório.

Que podem ser desempenhadas diretamente pela administração pública ou por terceiras entidades acreditadas pela própria administração que se transforma, assim, num regulador de último recurso.

As funções de regulação são, genericamente, de dois tipos: o primeiro, mais ligado ao cumprimento de normas, a maioria das quais de origem europeia, a chamada administração de formalidade, o segundo tipo mais ligado às funções de controlo e avaliação, traduzidas, na prática, por ações de inspeção e auditoria.

i) uma administração direta da contingência e dos riscos globais

Na nova governança agro-rural emerge, com redobrado vigor, uma nova/velha função ligada à gestão dos riscos globais e dos respetivos planos de contingência. O aquecimento global e as alterações climáticas que daí decorrem estão na origem de um aumento da frequência e intensidade dos acidentes naturais.

O fator contingência não se compadece com meras ações de “banco de urgência”, é fundamental investir em prevenção, montar a complexa engenharia dos avisos e alertas, profissionalizar os agentes da proteção civil, informar as populações e programar/executar ações rigorosas de simulação de calamidades naturais.

 

Notas Finais

Do que se disse, pode retirar-se que o próximo futuro é, ou anuncia-se, como uma administração agro-territorial mais do que uma administração agro-sectorial. Uma administração com uma noção mais crítica do equilíbrio necessário entre recursos, pessoas, empresas e territórios.

Sabemos que a competição global dos mercados pulverizou os sectores e que a referência sectorial perdeu coerência e racionalidade. O mesmo poderá acontecer com os territórios se, em cada caso, não encontrarmos uma lógica de funcionamento bem reticulada que assegure um retorno satisfatório composto por receitas de mercado, transferências públicas e pagamentos contratuais.

O meu objetivo aqui foi, modestamente, a pretexto da economia de subsistência e do abandono no rural tardio português, valorizar e reabilitar as funções nobres de programação e planeamento de espaços agro-rurais de modo a que neles se contenham aquelas três modalidades de rendimento.

Para obter esse efeito, procurei fazer convergir alguns conceitos desavindos, cujos impactos positivos se reforçarão mutuamente se estiverem debaixo da alçada de uma mesma unidade de planeamento e gestão.

Talvez seja o tempo de voltar de novo ao unitarismo de outros tempos, regressando à política e às causas públicas, reabilitando o discurso ideológico sobre a ocupação do nosso território antes que o tenhamos de recuperar num qualquer leilão de ocasião aqui ou no estrangeiro.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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