Crónicas do Sudoeste Peninsular: o decálogo da nova política de regionalização

Agora que se fala tanto em interioridade e correção de assimetrias regionais e territoriais, é uma boa oportunidade para rever […]

Agora que se fala tanto em interioridade e correção de assimetrias regionais e territoriais, é uma boa oportunidade para rever e atualizar a minha posição de princípio nesta matéria e, nessa atitude, contribuir para informar o leitor acerca da política de regionalização em sentido amplo.

A minha posição de princípio é simples: não tenho posições fechadas ou dogmáticas sobre o assunto, tanto mais quanto as alterações climáticas, as alterações demográficas, os movimentos migratórios e a revolução digital modificam bastante as regras do jogo tal como as conhecemos hoje.

Temos, pois, de manter o espírito aberto, adotar uma atitude de humildade democrática e científica e adaptar constantemente as nossas ambições aos nossos recursos, usando, para tal, a nossa inteligência e imaginação.

A única estratégia de desenvolvimento regional em relação à qual não há razões para ter dúvidas, na conjuntura das duas próximas legislaturas (2019-2027) é aquela que afirma que é possível “fazer mais e melhor com menos recursos e que aposta na gestão prudente dos 4E: equidade, eficácia, eficiência e economicidade”.

Para além disso, e em qualquer estratégia, é preciso distinguir entre a política de regionalização que é um assunto de política interna e a política regional ou, melhor dito, o sistema de política regional que é um assunto abordado em vários níveis de governo e administração, nos planos europeu, nacional, regional e local.

Eis o meu modesto contributo para o debate urgente sobre a regionalização no século XXI sob a forma de um decálogo favorável à política de regionalização administrativa na sua aceção mais ampla:

1º: O modo de ver o problema é uma parte importante do problema: quer dizer, é muito compensador fazer o debate político-ideológico a propósito da regionalização, pelo menos em duas versões:
o debate mais ideológico entre unitaristas e regionalistas acerca das conceções do estado e da administração pública, e o debate mais utilitarista e pragmático acerca do experimentalismo de uma política de regionalização e dos seus vários momentos; os efeitos político-pedagógicos e práticos destes debates seriam de uma utilidade indiscutível;

2º: A imprescindibilidade de uma lei-quadro da descentralização político-administrativa para enquadrar todos os sectores que contam para o processo de regionalização: para evitar uma regionalização furtiva, casuística, contingente e de intensidade variável consoante as conjunturas, que nos revele a posição relativa de todos os sectores envolvidos, a sua articulação estrutural e funcional e, bem assim, a monitorização dos seus contributos para o processo de regionalização;
falamos dos distritos, dos municípios e das suas associações, das comunidades intermunicipais, das áreas metropolitanas, dos agrupamentos europeus de cooperação territorial, das comunidades de trabalho transfronteiriças, das redes territoriais e urbanas de todo o tipo que congestionarão o território se não houver uma lei-quadro que esclareça o gradualismo do processo e as transações (atribuições, competências e meios) entre níveis de governo e administração;

3º: Na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos, sem “auto-estima regional” não há imagem de marca e mobilização territorial: é imperioso que as regiões possuam uma imagem positiva e assertiva de si próprias, que a sua energia positiva seja mobilizada na direção certa, que possam usufruir da sua liberdade plena para se pensarem a si próprias, correndo todos os riscos e consequências que essa assertividade pode acarretar e implicar;
neste contexto, o lema “fazer mais e melhor com menos recursos” pode ser um estimulo forte e uma motivação acrescida para uma estratégia de desenvolvimento regional tão autónoma como inovadora e, em especial, a sua “política de relações exteriores”;

4º: Subir na cadeia de valor da programação e do planeamento regional: confrontada com a estratégia de fazer mais e melhor com menos recursos, é imperiosa a necessidade de, a partir de uma ideia global e consistente de desenvolvimento regional, que não seja um mero somatório de candidaturas sem qualquer ligação entre si no espaço e no tempo, rever a dicotomia entre coesão e competitividade que tantos equívocos já ocasionou, pois as regiões, na sua diversidade, estão obrigadas a converter essa diversidade em vantagem;

5º: Quanto mais o país se internacionaliza, mais urgente se torna a necessidade de criar regiões fortes: é imperioso antecipar a mudança de ciclo dos fundos europeus e da política de coesão para o período pós-2020;
face à penúria de meios financeiros, as regiões precisam de liberdade para que todo o seu capital humano e material seja adequadamente valorizado por intermédio de um modelo de governo mais autonómico, competitivo e relacional;
não há que ter medo das regiões assim constituídas, pois as leis da república e a política regional continuam a ser os reguladores da “nova sociedade”;

6º: É imperioso desfazer o equívoco que confunde centralização com centralidade e racionalização com racionalidade: criámos um “país pendular” que balança há trinta anos entre os níveis central e local, sem querer perceber que os territórios regionais podem ser excelentes centros de racionalidade e centralidade de políticas públicas; precisamos de demonstrar a nós próprios que a regionalização pode corrigir este velho e anacrónico país pendular;

7º: O êxito do processo de regionalização é, antes de mais, uma questão essencial de cultura política no seu sentido mais nobre: uma cultura que mergulha fundo na macrocefalia ancestral do país, sempre renovada por novas formulações imaginativas (institutos, agências, observatórios, comissões), por um lado, e assente na circunscrição distrital do território sobre a qual assenta toda a orgânica político-eleitoral e as estruturas político-partidárias, por outro;
por isso mesmo, sacrificámos essa figura emblemática do regime, o Governador Civil, para que tudo ficasse na mesma;
todavia, se o processo de regionalização for “politicamente correto” teremos, porventura, dado um contributo decisivo para uma mudança substantiva e substancial da cultura política em Portugal, sem ignorar que ele pode ser, igualmente, um processo impertinente e conflituoso, ao sabor das políticas conjunturais e das maiorias de ocasião;

8º: As CCDR são uma excelente base de partida para a política de regionalização, pois constituem um “interface” de referência para todos os serviços regionais do Estado e dispõem de uma legitimidade funcional e operativa para a condução da política regional: depois da infraestrutura administrativa, e a partir daqui, a regionalização é um processo eminentemente político, pois podem ensaiar-se diversas vias, mais curtas ou mais longas, para converter as CCDR em órgãos de governo e administração, seja sob a forma puramente administrativa de Comissão ou Conselho Regional com poderes reforçados, sob a forma de Instituto Público Territorial, de Autarquia Regional ou de Governo Regional;

9º: Será difícil consolidar uma política interna de regionalização se não forem criados benefícios de contexto pelo sistema de política regional no quadro da coesão territorial da União Europeia: falamos do funcionamento de uma “governação multiníveis” que engloba “quatro políticas territoriais”: a política regional europeia, a política regional nacional, a política regional regional e a política local intermunicipal e as suas respetivas estruturas de governo e administração e, bem assim, os seus distintos e complementares modos de financiamento;

10º: A importância fundamental do império de proximidade em que se traduz a cooperação transfronteiriça no quadro peninsular: conhecemos as dificuldades políticas e operativas e os equívocos que resultam da assimetria institucional existente e, bem assim, o arsenal de “soft-policy” regional disponível que não é aproveitado em profundidade;
não obstante, temos à nossa disposição uma enorme margem de progresso onde já se inclui a cooperação inter-regional descentralizada, a formação de euro-regiões e de euro-cidades, a utilização da figura dos Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial e as plataformas tecnológicas colaborativas em múltiplos formatos.

Esta argumentação favorável à política de regionalização em sentido amplo não escapa à influência de alguns conflitos emergentes, aquilo que aqui designamos de “os novos conflitos da política regional e da política de regionalização” em resultado do aumento do número de atores e de “procura regional”, motivados pelo lançamento de novos instrumentos de política por parte da União Europeia, das Euro-regiões e Euro-cidades e outros agrupamentos territoriais, reais e virtuais.

Por exemplo, a política de regionalização multiníveis criará novas regiões, novas comunidades, novas áreas metropolitanas, novas associações de municípios, novas empresas intermunicipais e, ao mesmo tempo, a política regional criará instrumentos como as convenções-quadro de cooperação transfronteiriça, os programas de redes transeuropeias, as redes de cidades e capitais, os agrupamentos de interesse económico europeu (AIEE), os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) etc.

Destes dois conjuntos de instrumentos de política resultarão novas temáticas, novos atores, novas interações, novos meios financeiros, novos controlos, mas, também, novos conflitos de interesse e jurisdição. Uma dessas interações e/ou conflitos dirá respeito à concorrência entre estados-região, cidades-região, euro-cidades, regiões-cidade, euro-regiões, redes de cidades, agrupamentos europeus de cooperação territorial, etc.

Esta será a razão substantiva da próxima geração de políticas de regionalização administrativa: a um tempo, aceitar a profusão de identidades e motivações territoriais muito diferenciadas e pôr ordem política nos distintos conflitos jurisdicionais, por via, justamente, da constituição de uma entidade regional politicamente superior e determinante, mas, também, muito mais cooperativa e colaborativa.

Não é tarefa fácil, mas será aqui que se fará sentir, com mais solenidade, o imperativo ético-político e o valor acrescentado da regionalização político-administrativa do século XXI.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

Comentários

pub