Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXXVI): A Catalunha, o dia seguinte

No dia em que escrevo (terça-feira, 3 de Outubro), não sei ainda se haverá, por parte do governo da Catalunha, […]

No dia em que escrevo (terça-feira, 3 de Outubro), não sei ainda se haverá, por parte do governo da Catalunha, uma Declaração Unilateral de Independência (DUI).

As posições parecem irreconciliáveis. De um lado, a legitimidade histórico-política de independência confirmada pela maioria do referendo/consulta do dia 1 de Outubro. Do outro lado, a legitimidade jurídico-constitucional com fundamento na lei fundamental, nas leis ordinárias e nas decisões das autoridades judiciais superiores do Estado Espanhol.

O que se passa na Catalunha, para lá da espuma dos últimos dias, é um bom pretexto para uma reflexão política de ordem mais geral sobre a “questão catalã” e as relações interregionais no contexto europeu. Recuemos um pouco no tempo e coloquemos o problema catalão numa perspctiva mais diacrónica.

 

I. A história longa

Desde o século XVI, pelo menos, que a Catalunha é um vulcão em atividade, com erupções mais ou menos intensas de acordo com as conjunturas históricas. Eis uma breve síntese:

– No século XVII (1640), durante a chamada guerra dos ceifeiros, a primeira erupção da república catalã foi sol de pouca dura,
– No século XVIII (1701-1714), durante a guerra de sucessão, a Catalunha apoia as pretensões austríacas dos Habsburgos ao trono espanhol e perde; Barcelona é cercada e capitula no dia 11 de Setembro que é, hoje, o dia nacional da Catalunha conhecido como Diada,
– No século XIX, (1874-1874), durante a proclamação da 1ª república espanhola pelo presidente Francisco Maragall,
– No século XX, em 1931, durante a ditadura de Primo de Rivera, e, em 1936, durante a guerra civil; a Catalunha colocou-se ao lado dos republicanos e perdeu para o ditador Francisco Franco,
– Em 1978, a grande maioria dos catalães vota a constituição espanhola que estabelece no seu artigo 2º a indivisibilidade da nação espanhola e a garantia da autonomia das nacionalidades e regiões.

E assim chegamos, depois de várias erupções de separatismo, ao período democrático da história recente do reino de Espanha, integrado desde 1986, como sabemos, no espaço da União Europeia.

 

II. A história recente

Os países europeus, durante os anos gloriosos de crescimento económico, criaram uma “máquina redistributiva gigantesca” denominada de “Estado-Providência”. Numa escala mais alargada, criámos outra máquina redistributiva a que chamámos “União Europeia”.

Enquanto houve crescimento económico suficiente, estas duas máquinas operaram como enormes mecanismos de transferência: as regiões infranacionais transferem para o Estado nacional (1ª redistribuição), o Estado nacional transfere para as regiões mais pobres (2ª redistribuição) e para a União Europeia (3ª redistribuição), a União Europeia transfere para as regiões mais pobres dos outros Estados membros (4ª redistribuição) e para as organizações internacionais (5ª redistribuição), as organizações internacionais transferem para os países e regiões mais necessitados (6ª redistribuição).

Nas primeiras duas décadas deste século, o crescimento económico abrandou significativamente e as duas máquinas de redistribuição e transferência ressentiram-se imediatamente, tanto no plano doméstico, como no plano europeu.

A crise de 2007/2008 inscreve-se nesta tendência longa e agravou ainda mais todos os mecanismos de redistribuição e transferência, interregionais e interestaduais, vigiados de perto pelas instituições europeias.

Aqui chegados, o ambiente político e social que se vive hoje no continente europeu está em profunda mutação: crescem a desigualdade e a exclusão em muitas regiões e países, crescem o populismo e os regimes iliberais, crescem os movimentos políticos (transversais) que ocupam o lugar dos partidos políticos tradicionais (verticais), crescem a mediatização e a personalização da política, crescem a abstenção e a desafeição em matéria de participação política. “Só não cresce o crescimento”.

Neste contexto geral de crise de confiança, estas duas máquinas gigantescas de redistribuição e transferência são postas em causa e associadas a ineficiência, injustiça, clientelas e corrupção.

Além do mais, estas máquinas poderosas alimentam o “narcisismo” das grandes organizações tecno-burocráticas que se transformam, quantas vezes, em máquinas autofágicas consumidoras de recursos públicos substanciais.

O que se passa hoje em dia na Catalunha é não apenas um espelho de toda esta contingência global, europeia e nacional (sobretudo as relações financeiras no interior do estado espanhol), mas é, também, e sobretudo, um verdadeiro combate político-partidário entre adversários que necessitam de fazer prova de vida da sua sobrevivência no plano doméstico.

Neste contexto, de muito tacticismo político, o independentismo catalão é um jogo muito perigoso de fuga para a frente, onde se acumulam todas as divisões da sociedade catalã: entre os próprios independentistas (mais radicais e mais moderados), entre catalães (apoiantes e não apoiantes da independência), entre espanhóis (as duas Espanhas, a monárquica e a republicana), entre Estados membros da União Europeia, no que diz respeito a um eventual “novo membro”, entre Estados membros da Comunidade Internacional, no que diz respeito ao reconhecimento do “novo estado”.

É, porém, no plano político-partidário que melhor se compreende a atual conjuntura espanhola e catalã, não apenas as razões de táctica política, mas, também, as razões de substância política.

A razão constitucional, desde logo. Lembremos a constituição espanhola de 1978 quando estabelece no seu artigo 2º que “a nação espanhola é comum e indivisível” e quando reconhece “a autonomia das nacionalidades e regiões”.

Eis os factos nos anos mais recentes:

– Em 2010, uma sentença do Tribunal Constitucional reduziu bastante os poderes autonómicos que constavam no Estatuto da Catalunha, na sequência de uma iniciativa tomada pelo Partido Popular; em especial, anula o valor jurídico da Catalunha como nação,

– Na Diada de 11 de Setembro de 2012 (dia nacional da Catalunha), uma grande manifestação em Barcelona sob o lema “Catalunha um novo Estado da Europa” indiciou que, pela primeira vez, poderia haver uma maioria de catalães a defender a independência; o governo de Madrid recusa negociar maior autonomia fiscal para a Catalunha e o presidente da Generalitat convoca eleições e ameaça com um referendo,

– Em 2014, a Generalitat faz o anúncio de um referendo que é, todavia, considerado ilegal; substitui esse referendo por uma consulta popular em 9 de Novembro (9-N), votam apenas 33% dos eleitores e destes 88% disseram sim a um novo país,

– Em 2015, a 27 de Setembro, realizam-se eleições autonómicas em que os partidos nacionalistas – o Partido Democrata Europeu catalão e a Esquerda Republicana da Catalunha – são vencedores, mas ficam abaixo dos 50%, mesmo somando os votos da CUP (Candidatura de Unidade Popular); conseguem, porém, uma maioria de lugares no parlamento catalão, isto é, 72 lugares em 135; em 9 de Novembro, o parlamento catalão aprova uma resolução visando a independência para 2017,

– Em 2016, 10 de Janeiro, Carles Puidgemond é designado presidente da Catalunha, após a CUP exigir a demissão do anterior presidente Artur Mas,

– Em 2017, Março, o ex-presidente Artur Mas fica inabilitado para exercer cargos públicos nos próximos dois anos; em Junho, o presidente Puidgemond marca um referendo para o dia 1 de Outubro; nos dias 6 e 7 de Setembro, o parlamento catalão, numa sessão muito tumultuosa sem a presença dos deputados não-independentistas, aprova a lei do referendo e a lei da transitoriedade e, se a taxa de participação for significativa, será feita uma Declaração Unilateral de Independência (DUI).

– Em 2017, no dia 1 de Outubro, tem lugar o referendo/consulta popular, no meio de graves confrontações muito violentas; o mundo assiste incrédulo a essas imagens difundidas nos meios de comunicação social.

Em síntese, desde 2010, pelo menos, assistimos a uma sucessão de manifestações (Diada), resoluções e leis parlamentares, referendos, consultas populares e eleições regionais, muitas delas consideradas ilegais e inconstitucionais, com o único propósito de fazer crescer a taxa de participação política dos catalães e assim criar a legitimidade necessária e suficiente para a declaração/negociação do processo de independência.

 

III. O dia seguinte

No plano estritamente jurídico, a constituição espanhola, como lei fundamental, prevalece sobre as leis regionais, como são a lei do referendo e a lei da transitoriedade, ambas aprovadas no parlamento catalão.

Lembremos, mais uma vez, que a constituição de 1978 não prevê o direito à secessão das comunidades autónomas, mas garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões.

Neste sentido, como sabemos, o governo de Madrid apelou ao Tribunal Constitucional para suspender a lei do referendo.

Acresce que, como solução de último recurso, a constituição espanhola, no seu artigo 155º, prevê a tomada de medidas coercivas, que, na prática, se podem traduzir por uma suspensão da própria autonomia.

Por outro lado, é manifesta a dificuldade em defender, no plano do direito internacional, o argumento do direito dos povos à auto-determinação e, em consequência, o reconhecimento internacional da Republica da Catalunha por parte de outros Estados membros da Comunidade Internacional.

Não obstante toda a oposição do governo de Madrid e demais instâncias jurisdicionais, teve lugar, no dia 1 de Outubro, em condições extraordinariamente difíceis e perigosas, o referendo/consulta popular, com o objetivo expresso de validar, mais uma vez, a legitimidade de uma declaração unilateral de independência.

Não vou relatar aqui os factos graves ocorridos em resultado dos confrontos entre a população catalã e as forças nacionais de polícia e segurança, nem comentar as taxas de participação nas condições em que ocorreu. Em vez disso, prefiro traçar alguns cenários de negociação política, mais ou menos verosímeis, entre as duas partes em presença e que, tudo leva a crer, deverão ocorrer nos próximos dias:

– O cenário “legitimista revolucionário” de uma declaração unilateral de independência; o presidente do governo da Catalunha deverá remeter muito brevemente (48 horas?) para o parlamento catalão esta pretensão, contando, para tal, com a maioria que detém no parlamento; veremos como reagirá o governo espanhol a esta ilegalidade e inconstitucionalidade, enquanto até lá se aguardam grandes manifestações nas ruas de Barcelona; obviamente, com toda a oposição do governo espanhol;

– O cenário “legitimista radical” de eleições autonómicas antecipadas; para validar finalmente o separatismo catalão, o governo da Catalunha pode propor ao governo espanhol de Madrid a convocação de eleições autonómicas antecipadas que serviriam como um sucedâneo do referendo popular; nada garante que o governo de Madrid aceite esta “troca”;

– O cenário “legitimista e constitucional” de abertura de uma via de diálogo; o governo da Catalunha propõe ao governo espanhol a abertura de negociações políticas, tendo em vista uma revisão da constituição de 1978, e, nesse contexto, uma revisão do estatuto da Catalunha que a reconheça como nação; nada garante que o governo de Madrid aceite esta via “de diálogo”;

– O cenário “legitimista e reformista” de abertura de uma via de diálogo; o governo da Catalunha propõe ao governo espanhol a abertura de negociações, tendo em vista a revisão das relações interregionais e financeiras entre as várias comunidades autónomas, que, no limite, podem conduzir a uma organização federal dessas relações; neste cenário, deixou de se falar em independência da Catalunha, pode haver alguma abertura do governo de Madrid para esta negociação;

– O cenário da “mediação internacional ou europeia” para a abrir uma via de diálogo; face ao impasse político em que se encontram os dois governos e depois dos factos graves ocorridos no dia 1 de Outubro, esta hipótese deve ser bem ponderada desde que se encontrem os mediadores mais acreditados para o efeito.

Nota Final

Tudo pode acontecer nos próximos dias e todos os imponderáveis são possíveis, a começar pelo destino dos atuais protagonistas.

Basta olhar para a instabilidade das soluções de governo em Madrid e em Barcelona, para chegar rapidamente à conclusão de que é a sobrevivência política e o tacticismo que comandam as operações.

Nos próximos dias, ouviremos do parlamento catalão, porventura, uma declaração unilateral de independência e, mesmo, uma proclamação da república e do estado catalão, tal como em 1934, quando Lluis Companys proclamou, por poucas horas, um “Estado Catalão”, justamente no dia 6 de Outubro de 1934.

No quadro nacional espanhol, as relações fiscais e financeiras interregionais são uma espécie de caixa de pandora, pois, uma vez aberta, ninguém sabe como termina, desde um simples reajustamento nas autonomias existentes até ao federalismo e ao separatismo.

Os próximos dias serão decisivos.

Entretanto, aproxima-se o calendário de negociação e aprovação do orçamento anual. Se o primeiro-ministro não conseguir aprovar o orçamento, teremos, muito provavelmente, eleições antecipadas em Espanha. E, quase seguramente, eleições antecipadas na Catalunha.

Com outros protagonistas, talvez seja mais fácil resolver os problemas pendentes.

Voltaremos ao assunto, até porque a União Europeia se sente extraordinariamente desconfortável com tudo isto.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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