Crónicas do Sudoeste Peninsular: O regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR

Agora que, por causa dos incêndios, se volta a falar de valorização do interior, sinto que devo voltar ao assunto. […]

Agora que, por causa dos incêndios, se volta a falar de valorização do interior, sinto que devo voltar ao assunto. O despovoamento e a desertificação do interior, ao acontecerem num país tão pequeno, são a prova provada de que o nosso modelo de desenvolvimento territorial está errado há muito tempo.

De um ponto de vista mais analítico, uma boa cobertura municipal, uma boa cobertura associativa e uma rede de ensino superior bem distribuída não foram suficientes para inverter este estado de coisas, para além, obviamente, do volume de recursos financeiros canalizado pelos fundos europeus para todo o país.

Se eu quisesse resumir a razão principal deste facto diria que a “discriminação positiva” em relação ao interior não foi suficiente para criar uma vantagem competitiva nestes territórios.

As causas são muito variadas e incluem opções erradas de política agrícola e florestal, a desvalorização continuada de serviços públicos fundamentais, o acantonamento municipal num localismo inconsequente, a ausência de um federalismo municipal efetivo, uma política fiscal e financeira muito tímida face ao interior, uma política de ambiente que nunca compreendeu o pagamento dos serviços ambientais como instrumento de desenvolvimento e, por último, um “regime de coordenação e desenvolvimento” das CCDR que sempre deixou muito a desejar.

Entendo que a valorização do interior nunca acontecerá se não pegarmos no assunto pelo lado da “política de coordenação e desenvolvimento” levado a cabo pelas CCDR, num registo e num regime que eu aqui designo por “regionalização minimalista”.

 

A centralidade e racionalidade do nível NUTS II
Agora que, pelas piores razões, se volta a falar de interioridade, de desertificação, de ordenamento do território, de política florestal, de desenvolvimento rural, o mínimo que podemos fazer é aprofundar as funcionalidades do” regime de coordenação e desenvolvimento” das atuais CCDR e estruturar “um modelo operativo territorial” que seja capaz de “fazer mais e melhor com menos”.

Os Planos de Ação Regional (PAR) do nível NUTS II, depois de devidamente revistos, são uma plataforma adequada e suficiente para fazer a arbitragem regional entre níveis de governo e administração (articulação multiníveis) e aprofundar as funcionalidades da “regionalização administrativa minimalista”.

Os territórios urbanos municipais e intermunicipais, a agricultura e a floresta como atividades que mais ocupam território e as áreas de paisagem protegida dos programas de ordenamento do território seriam os lugares de interface dos mundos rural e urbano e fundamentais para a implementação deste modelo.

O objetivo central seria eleger o nível NUTS II como o lugar central de uma nova racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, para desenhar uma estratégia de governação e articulação multiníveis: de um lado, os municípios, os grupos de ação local (GAL) e as comunidades intermunicipais (CIM), do outro, os planos de ação regional, o programa nacional de reformas e os programas europeus de coesão.

O nível NUTS II é aquele que, em nossa opinião, reúne maior centralidade e racionalidade para modernizar as várias administrações do território e levar a bom termo as missões de arbitragem/articulação político-territorial que se impõem.

Existe, porém, um risco elevado, qual seja, o de que o governo central use a administração desconcentrada regional como instrumento direto de ação política e de gestão da procura agregada macroeconómica, como uma espécie de guarda avançada das suas políticas públicas de regulação, racionalização e ajustamento económico-financeiro em face do elevado volume de dívida pública existente.

Por outro lado, existe, também, o risco elevado de a administração local usar as associações de municípios e, agora, as comunidades intermunicipais como guardas avançados e projeção da sua legitimidade e especificidade local, intermunicipal e sub-regional.

Se este risco se confirmar, os níveis NUTS II e NUTS III poderão ser transformados em um campo de forças, uma arena de verdadeira cacofonia territorial, onde freguesias, uniões de freguesias, associação nacional de freguesias, municípios, associações de municípios, comunidades intermunicipais, associação nacional de municípios e administração regional irão esgrimir argumentos cruzados em nome dos únicos atores verdadeiramente legitimados, os municípios e o governo central. No sentido de pôr alguma ordem nesta cacofonia territorial, uma hipótese possível é aquela que aqui propomos.

Uma metodologia para um modelo operativo regional
1º O país constituiu muito recentemente 23 comunidades intermunicipais (CIM), a maioria delas coincidente com as NUTS III (sub-regiões das NUTS II); trata-se de um nível de programação, planeamento e implementação de políticas muito relevante para reconsiderar todo o sistema de desenvolvimento do interior, nos planos rural, florestal, ambiental e ordenamento territorial do país;

2º O país tem praticamente em cada capital de distrito um instituto politécnico ou uma universidade, cujas áreas de influência e ação integram as CIM, as NUTS III e os territórios dos Grupos de Ação Local do Programa de Desenvolvimento Rural; estas instituições precisam urgentemente de refrescar e renovar a sua missão e de ganhar um suplemento de legitimação num tempo histórico de grande exigência para o país;

3º No mesmo âmbito territorial, o país tem associações empresariais, parques industriais e grupos empresariais que precisam urgentemente de fazer a sua prova de vida, de se recapitalizar e demonstrar que não são meros simulacros empresariais mas verdadeiros projetos empresariais;

4º A triangulação entre estas três entidades – as comunidades intermunicipais, os institutos politécnicos e universidades e as associações empresariais – pode e deve estar na origem de um “contrato de desenvolvimento” para as CIM com o objetivo de comprometer as três entidades num projeto de desenvolvimento territorial para o período 2018-2027;

5º O contrato assinado com a administração central firmaria os termos desse projeto de desenvolvimento territorial; para dar corpo ao projeto seria utilizado o instrumento ITI (investimento territorial integrado) tal como está previsto nos normativos de programação;

6º Para levar a cabo o projeto de desenvolvimento e a implementação do ITI seria criada uma “estrutura de missão” com competências executivas no território da CIM/NUTS III;

7º No mesmo contrato de desenvolvimento, ficariam os três promotores obrigados à apresentação de uma “proposta de reforma da administração pública intermunicipal” que considere não apenas uma nova “cartografia de bens comuns” para o território-rede em formação como a possibilidade de formação de uma “autarquia de 2º grau” para levar a bom termo esses projetos de desenvolvimento integrado;

8ºNo âmbito desta filosofia de contratos de desenvolvimento para territórios-rede de nível NUTS III e atendendo ao universo de micro-empresas que constituem o nosso tecido empresarial o governo central seria convidado a apresentar um quadro legal e financeiro de estímulos para o investimento empresarial, uma via verde para a cooperação e a extensão empresariais vocacionada para o desenvolvimento territorial do interior do país;

9ºNeste contexto, e para dar enquadramento político-legal às propostas dos níveis CIM/NUTS III, o governo central seria convidado a apresentar uma proposta de lei-quadro da descentralização político-administrativa, regional e local, como um dos vetores essenciais da reforma do Estado.

Transformar as CCDR em conselhos executivos regionais
No contexto descrito, o nível NUTS II seria considerado a sede apropriada para uma nova centralidade, racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, através da formação de um Conselho Executivo Regional, com a mesma lógica de funcionamento de um conselho de ministros e baseado numa nova arquitetura para os serviços regionais, tendo como principais interlocutores as estruturas de missão das CIM/NUTS III. Um conselho de concertação regional completaria este quadro de governação territorial.

Esta é, digamos, a proposta minimalista, que poderá ser desencadeada ou despoletada sem grande turbulência legislativa, por exemplo, por intermédio de uma Resolução do Conselho de Ministros. Trata-se, portanto, de uma proposta conservadora que vai buscar a sua justificação a uma forma de legitimidade funcional já existente.

Mas, obviamente, outras vias existem, baseadas, por exemplo, em procedimentos mais vinculativos de legitimidade político-eleitoral. Não foi, porém, aqui essa a opção.

Uma advertência final
Tudo isto, porém, pode estar, afinal, fundado num enorme equívoco. Os programas, os planos, as estratégias de todo o tipo não visam, muitas vezes, criar coerência e sentido nas intervenções territoriais, visam, quase sempre insidiosamente, criar conformidade, condicionamento e obediência por razões que têm a ver com a nossa própria “conformidade, condicionamento e obediência” junto das autoridades de Bruxelas e Frankfurt e de outras capitais onde repousam as nossas dívidas públicas e privadas.

Palavras de ordem como desenvolvimento, modernização, coesão, sustentabilidade, são, por vezes, mera publicidade enganosa e visam apenas criar um caldo morno de cultura de obediência e acomodação.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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