Crónicas do Sudoeste Peninsular: Governo, Administração e Território ou a “desautorização do Estado-administração”

Na sequência de tanto fogo, permitam-me citar, com o devido respeito, um trecho da carta da mãe de uma criança […]

Na sequência de tanto fogo, permitam-me citar, com o devido respeito, um trecho da carta da mãe de uma criança de cinco anos que morreu em Pedrógão Grande e que foi publicada no jornal Público do dia 23 de Julho:

“O Estado falhou. A Nação não existiu. Mas não falhou apenas nesta tragédia. O Estado vem falhando ao longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira crónica, está enfermo de um tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu estado de país rural, um país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico. Enquanto Estado é um conceito frio, masculinizado, distante, de um ente que impõe tributos e leis aos seus súbditos, um amontoado de entidades supostamente hierarquizadas, com dirigentes supostamente competentes, e que supostamente deveriam cumprir e fazer cumprir um conjunto de leis e regras que se vão aprovando conforme as vontades políticas da estação. Assim se vai governando Portugal. Sem pactos de regime e visão a longo prazo. Não houve estratégia para o Território quando os dinheiros dos fundos estruturais europeus chegavam a rodos. Foram anos de esquecimento, de esvaziamento, de descaso com o Interior, de negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura”.

 

I. Os incêndios do interior e o interior dos incêndios

Na sequência de tanto fogo.

Os “territórios que ardem não existem”, ou melhor, “só existem porque ardem”. A invisibilidade dos territórios do interior permite quase tudo, mesmo o abandono quase total, como agora se comprova.

“Como não existem” não há sobre eles qualquer exercício de inteligibilidade territorial que aumente a sua consistência interna; chega-se lá quase sempre em estado de emergência e à beira do abismo como agora aconteceu.

Por outro lado, perante o grande espetáculo das televisões, a visibilidade da tragédia só tem paralelo com a invisibilidade do abandono. A intrusão é de tal ordem que ficamos com a sensação de que o incêndio deflagrou várias vezes.

O que é certo é que, num país em que quase tudo depende do Estado Central ou do Estado local, “há muita coisa que tem de permanecer na invisibilidade”, porque simplesmente não há recursos para tudo.

E os que permanecem na invisibilidade são aqueles que não perturbam a pacatez do sistema clientelar e corporativo já estabelecido. O interior do país não faz parte desse sistema clientelar ou faz parte apenas marginalmente, para “calar” algum barão local com a voz mais grossa, e, portanto, também, com mais acesso e visibilidade política.

Os incêndios desta dimensão têm o grave incómodo de trazer à tona da água os “vivos-mortos” do interior esquecido.

A sua longa invisibilidade, que só os incêndios perturbam, oculta uma morte há muito anunciada. É um silêncio cínico e cobarde por parte do poder central, que, desta forma, espera poder “gerir com mais racionalidade” os seus recursos escassos; segundo a sua lógica, sem visibilidade, é mais fácil gerir recursos escassos e repartir, de seguida, esses recursos com quem tem maior visibilidade.

Os territórios também se abatem, porque estes territórios foram “silenciosamente, mas meticulosamente desterritorializados”. É um país bipolar de longa data, são as falhas e ausências do Estado-administração, é um país sem coluna vertebral, são capitais de distrito completamente vergadas ao centralismo de Lisboa.

Hoje, a convergência das alterações climáticas, das alterações demográficas e das monoculturas agroindustriais preparam “o caminho do abandono” para que estes territórios sejam capturados sem que para tal seja necessário “privatizá-los”.

E, no entanto.

Num país tão pequeno, onde todos os territórios, mesmo os mais remotos, têm sinais distintivos e recursos expectantes, é um crime de lesa-pátria não fazer um exercício de inteligibilidade sobre esses sinais e recursos, trazendo-os para a luz do dia, lançando-os no espaço público regional e nacional, conferindo-lhes a visibilidade que é necessária e tudo isto em “clima de perfeita normalidade”.

Infelizmente, o universo liliputiano dos nossos pequenos municípios do interior é um terreno difícil para a formação de comunidades de auto-governo mais fortes e musculadas.

Neste contexto, a criação das “comunidades intermunicipais”, colocadas entre os níveis local e regional, é um excelente pretexto para reconsiderar toda a política territorial de valorização do interior.

Porém, tenho muitas dúvidas de que estas variáveis “minifundiárias” façam parte da equação territorial do futuro.

Senão, vejamos.

 

II. A equação do território hoje

Estamos em 2017, está diretamente em causa a forma como ocupamos o território no preciso momento em que ele mais se desterritorializa e desmaterializa.

O território que era, recorde-se, um dos elementos fundamentais da soberania do Estado, debate-se hoje com os riscos da extra-territorialidade, as várias diásporas da sua população e a fragmentação do poder político por inúmeros poderes corporativos nacionais e transnacionais.

Se a estes riscos acrescentarmos, ainda, o nomadismo virtual dos cidadãos e a profunda transformação e turbulência que afetará os mercados de trabalho do futuro próximo, teremos uma imagem realista dos impactos devastadores que nos esperam.

A pergunta é, pois, muito pertinente: estará a “equação territorial” da soberania do Estado-administração em processo de inversão?

Três séculos depois da revolução vestefaliana do século XVII (o território como elemento constituinte da soberania de um Estado), a globalização, a desterritorialização e a desmaterialização são as grandes questões políticas do século XXI e, nesse contexto, todos somos cidadãos migrantes imersos no grande paradigma da mobilidade e, muito provavelmente, “casados” com vários territórios.

Neste registo dominante, a velocidade é a unidade de medida do nosso tempo e a cada velocidade corresponde uma grelha de leitura da realidade.

Por outro lado, à medida que prossegue a “digitalização do território”, vemos o mundo girar à nossa volta e converter-se numa gigantesca “placa giratória”, numa mistura complexa de realidade e virtualidade.

Volto a insistir, a escolha da velocidade determinará a grelha de leitura da realidade. Por isso mesmo, na interação entre território e tecnologia, o grau de literacia digital determinará a natureza e a formação de comunidades online de auto-governo, apoiadas em tecnologias digitais e redes sociais, e interagindo cada vez mais com as comunidades locais e em busca do seu próprio processo de filiação e enraizamento territorial.

Nesta tendência pesada de desterritorialização e desmaterialização, não surpreende o mal-estar do Estado-administração, pois as interações entre a tecnologia e o território escapam-lhe em boa medida e parecem confirmar a inversão da “equação territorial”.

A globalização, a extra-territorialidade, a diáspora da população, a emergência da sociedade automática, a sociedade da colaboração interpares, a quebra dos vínculos laborais e sociais do estado-providência, o nomadismo virtual permanente, tudo aponta para a “desautorização do Estado-administração” tal como o conhecemos hoje.

Por todas estas razões, o trecho que citei é um verdadeiro grito de alarme, pois nestas condições é muito provável que o Estado volte a falhar mais vezes. Com efeito, como será a estrutura de povoamento do território numa sociedade em perpétuo movimento, uma sociedade em que a mobilidade e o nomadismo são os princípios diretores?

Volto a citar a carta já mencionada:

“O Interior tornou-se um canteiro de ervas daninhas, sem jardineiros, as suas gentes. Um barril de pólvora em que se soma a indústria do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os ingredientes ideais para a tempestade perfeita. A tragédia de 17 a 24 de Junho estava mais que anunciada. Foi apenas uma questão de tempo e o tempo não pára”.

O meu desejo é, evidentemente, que o Estado não volte a falhar.

 

III. E quanto aos planos de futuro para o território?

No plano da desterritorialização, os territórios irão navegar ao sabor de quatro grandes tendências: o hipernomadismo das grandes corporações transnacionais que deslocalizam com grande facilidade segmentos importantes da sua cadeia de valor; o aumento vertiginoso das chamadas classes criativas, num contexto de grande nomadismo virtual; o nomadismo capitalista dos fundos de investimento que se substituem cada vez mais aos produtores locais e regionais em busca de retornos rápidos do seu investimento; por último, o risco e o seguro como elementos centrais da hétero-regulação futura e, nesse contexto, a importância correlativa das companhias de seguro na moldura de muitos modelos de negócio.

Atrás da digitalização e da desterritorialização, ou simultaneamente, vem a desintermediação de antigos modelos de negócio e a chegada de novos modelos de negócio mais colaborativos.

Vamos viajar pelo “interior virtual” antes de perceber que é muito complexo e até, por vezes, extremamente doloroso todo o processo de conversão das comunidades online em comunidades offline.

Quer dizer, vamos ter de fazer um processo de aprendizagem para, finalmente compreender qual é a melhor combinação de “virtualidade e realidade”.

Durante esse processo de aprendizagem, mais ou menos longo, teremos oportunidade de assistir, sobretudo por via da agricultura de precisão, ao modo como a programação algorítmica transforma um volume imenso de dados brutos recolhidos por sensores implantados no solo, nas plantas e nos animais, em planeamento operacional dos sistemas de produção agroalimentar, ao mesmo tempo que redes digitais descentralizadas, sob a forma de aplicações muito sofisticadas, nos fazem acreditar num controlo mais apertado sobre os fatores de produção mais aleatórios.

Assistiremos à emergência de uma grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais, que não se reportam apenas à agricultura de precisão, mas, também, à silvicultura preventiva, ao urbanismo reticular das pequenas cidades do interior, à economia rural dos parques e reservas naturais, à provisão da biodiversidade local e serviços ecossistémicos, à economia de recreação e visitação das amenidades e paisagens rurais, aos serviços itinerantes às populações perdidas do interior, etc.

Num país tão pequeno como Portugal, servido por boas infraestruturas de transporte e comunicação, o problema principal não será o “repovoamento e o stock populacional” de zonas de baixa densidade, mas, antes, a organização virtuosa da mobilidade e do fluxo de população, isto é, a montagem imaginativa e eficiente de uma economia de rede e visitação no território, concebido como território-rede e baseado em serviços itinerantes e polivalentes que a tecnologia das redes sociais pode muito bem imaginar e montar.

A caminho da chamada “2ª ruralidade”, a novidade mais importante será, justamente, a emergência de uma grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais, mais ou menos enraizadas no território.

Inicialmente, tudo pode parecer um pouco caótico, mas, na 2ª ruralidade, “os neorurais vindouros” desempenharão um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível tal como o conhecemos hoje.

A arte das redes sociais vai trazer-nos uma espécie de “realidade aumentada” sob a forma de “agricultura acompanhada pela comunidade” (AAC), de gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas, de economia da partilha e economia circular, onde não haverá recursos ociosos, sub-empregados e esquecidos, e onde a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão, também, uma realidade.

Tudo dependerá do nosso deslumbramento tecnológico e, sobretudo, do modo como for resolvida a dívida pública e privada acumulada, pois, em caso contrário, ficaremos reféns do investidor estrangeiro e das suas novidades tecnológicas, aquelas que lhe proporcionam um retorno mais rápido do investimento realizado.

 

Notas Finais: a próxima incarnação do mundo rural

Estas referências mostram que, na “próxima incarnação”, o mundo rural estará irreconhecível, pois a “internet das coisas” estará presente desde a agricultura de precisão até à silvicultura preventiva.

Em jeito de conclusão, eis algumas notas finais:

– É um facto, a “equação do território” atravessará uma profunda recomposição no sentido da sua multiterritorialidade, se quisermos, de uma coleção de diásporas;

– Os territórios estão, claramente, na senda dos 4D: digitalização, desterritorialização, desmaterialização e desintermediação e a fazer a aprendizagem da conexão entre comunidades online e comunidades offline;

– Estamos, claramente, perante uma profunda disrupção dos mercados de trabalho, o fim da “indústria do emprego”, a emergência do trabalho intermitente, da pluriatividade e do plurirrendimento e, mesmo, perante um decoupling histórico entre trabalho e rendimento;

– Estamos, claramente, perante duas tendências pesadas: de um lado “Menos Estado, Melhor Estado”, e o que isso significa em termos de recomposição do território, de outro, a emergência de um “quarto setor”, de fusão, transição e acomodação, para onde convergem “os empregos frágeis, precários e intermitentes” dos setores público, social, cooperativo, cultural, solidário, voluntário, assistencial, colaborativo;

– Estamos, claramente, perante um processo, porventura caótico, de desintermediação e reintermediação de muitos modelos de negócio; a emergência de redes digitais distribuídas ao lado das redes centralizadas e redes descentralizadas é, em boa medida, um movimento de extra-territorialidade que importará disciplinar e regular;

– A emergência de inúmeros “ecossistemas colaborativos”, em diversos formatos e apoiados em múltiplas plataformas tecnológicas e assentamentos territoriais, é uma grande esperança para os territórios do interior e que aguardam uma avaliação mais fina para se poderem consolidar;

– A consideração de uma “macrorregião ibérica” no plano europeu e, nesse contexto, uma candidatura comum dos dois países peninsulares é uma grande oportunidade para a “grande interioridade peninsular” e para novas formas de inteligência coletiva, isto é, novos interfaces entre tecnologia e território;

– A emergência de uma 2ª ruralidade funcionalmente encaixada no universo urbano e que será uma espécie de “periurbano extensivo” é, igualmente, uma boa oportunidade.

Não será, seguramente, o melhor dos mundos, mas será, seguramente, um mundo melhor.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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