Crónicas do Sudoeste Peninsular: A Catalunha em estado de sítio

Volto ao assunto Catalunha. No passado dia 27 de Outubro, tudo se precipitou. No mesmo dia, o parlamento catalão fez […]

Volto ao assunto Catalunha. No passado dia 27 de Outubro, tudo se precipitou. No mesmo dia, o parlamento catalão fez a declaração unilateral de independência (DUI) e o senado espanhol ativou o artigo 155º da constituição espanhola. O governo de Madrid declarou, entretanto, eleições legislativas na Catalunha para o dia 21 de Dezembro próximo.

Sucedem-se as manifestações a favor e contra a independência. A Catalunha entrou em estado de sítio. Vejamos alguns aspetos do problema ora criado (escrevo este texto no dia 30 de Outubro).

1. A causa próxima, a desvirtuação do estatuto da Catalunha de 2006

O primeiro estatuto da Catalunha da era democrática espanhola data de 18 de Setembro de 1979, em linha com a constituição espanhola de 1978.

Alguns anos mais tarde, no dia 18 de Junho de 2006, os cidadãos da Catalunha aprovam, em referendo, um novo estatuto autonómico.

O projeto original foi, porém, muito contestado e substancialmente alterado para evitar o chumbo do parlamento e do senado espanhol, tendo vários agentes políticos, entre os quais o Partido Popular, reclamado da sua inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional espanhol.

Em 2010, o Tribunal Constitucional decidiu invalidar alguns dos aspetos fundamentais do Estatuto, mas, acima de tudo, negou à Catalunha o estatuto de nação e o direito a decidir como uma nação.

2. O dia 1-O, o referendo da independência e a repressão do estado espanhol
Esta decisão de 2010 do Tribunal Constitucional espanhol foi severamente repudiada pela sociedade civil catalã e é sobretudo a partir deste momento que crescem os movimentos mais radicais – a associação nacional catalã (ANC) e a associação cultural OMNIUM – em conjunto com o sentimento separatista e o independentismo radical, em manifestações sucessivas de consulta e iniciativa populares que terminam com o referendo do dia 1-O.

Durante este período, a recusa do governo de Madrid em aceitar um referendo vinculativo de autodeterminação e, em 2012 a recusa, igualmente, do pacto fiscal por parte do governo de Madrid, provocam um verdadeiro turbilhão na sociedade civil catalã: manifestações, plataformas cidadãs, referendos consultivos, iniciativas populares, movimento dos indignados e eleições plebiscitárias visam demonstrar nas ruas ao governo de Madrid “o facto consumado” da autodeterminação catalã.

Ao mesmo tempo, quebra-se o clássico bipartidarismo espanhol, com o aparecimento dos partidos Ciudadanos e Podemos, e tudo isto numa conjuntura de profunda crise governativa em Madrid.

Nesta sequência, as eleições de 2015 assumem, por isso, um carácter plebiscitário. A vitória da coligação Juntos pelo Sim, apoiada pela Candidatura da Unidade Popular (CUP), todos favoráveis à independência da Catalunha, conjuntamente com a maioria no parlamento catalão, incentivam as autoridades regionais a avançar para a realização do referendo do 1 de Outubro.

Em resumo, o referendo do dia 1-O realizou-se, portanto, sem o consentimento do governo espanhol e do tribunal constitucional espanhol, tendo as autoridades de Madrid tentado impedir pela força a sua realização e nesses confrontos feito centenas de feridos. O resultado do referendo: 42% de votação, 90% de sim e 7,87% de não.

3. Legitimidade, legalidade e constitucionalidade
Barcelona e Madrid procuram fazer valer a legitimidade que mais lhes convém e assiste. A legitimidade histórica, cultural e política, confirmada nas ruas, do lado catalão, a legitimidade constitucional, legal e estatutária, confirmada pelas instituições nacionais, do lado espanhol.

Evidentemente, se radicalizarmos estes argumentos eles tornam-se praticamente inconciliáveis. Estas são, na sua essência, as razões que assistem aos dois lados da contenda.

Para lá disso, está, obviamente, a competência ou incompetência política e institucional dos dois principais atores em presença, que não foram capazes de protagonizar um gesto magnânimo de liberdade e cultura democrática, num tempo singular de grande significado histórico para a Espanha e a Catalunha.

De facto, uma vez que assiste legitimidade às duas capitais, seria fundamental abrir uma via de diálogo entre as partes e encontrar um intermediário acreditado para o efeito.

Na mesma linha de raciocínio, é preciso não esquecer que, entre o nacionalismo espanhol e o independentismo catalão, há muitas variantes do nacionalismo catalão, mais e menos moderados, que não se reclamam do separatismo ou da secessão do estado espanhol.

É importante que não deixemos polarizar este assunto, pois corremos o risco de mesmo as autonomias serem atingidas por algum efeito de ricochete menos desejável.

4. O dia 10-O, ou as contradições do movimento nacionalista catalão
No dia 10-O, a declaração de independência do presidente da Generalitat Carles Puidgemont e a sua imediata suspensão é a prova provada das inúmeras contradições que atingem o movimento nacionalista da Catalunha, mais especificamente as várias correntes do nacionalismo catalão, do independentismo mais moderado, que não quer a secessão do estado espanhol, até ao independentismo mais radical que deseja a República da Catalunha como estado independente e separado da monarquia espanhola.

A estas contradições internas, expressas, aliás, no interior da própria coligação de governo, soma-se a dificuldade do reconhecimento internacional e os primeiros sinais de intranquilidade por parte de algumas empresas que decidem mudar a sua sede social para fora da Catalunha.

Quando tudo parecia indicar a abertura de uma via de diálogo, gorou-se a ida do presidente da Generalitat ao senado madrileno e caiu por terra a sua proposta de eleições legislativas na Catalunha.

5. O dia 27-O, Declaração Unilateral de Independência (DUI) e ativação do artigo 155º
E assim chegámos, depois de muita coreografia política, nas instituições e nas ruas, ao dia 27-O, o dia em que a declaração unilateral de independência (DUI) foi proclamada no parlamento catalão e em que a ativação do artigo 155º foi proclamada no senado espanhol.

Os dois atos estavam de tal modo sintonizados que foram proclamados praticamente à mesma hora nas duas capitais.

Entretanto, o governo de Madrid, com a cobertura que lhe confere a constituição e as leis, e no âmbito do artigo 155º, declara a destituição dos órgãos de governo e a dissolução do parlamento catalão, ao mesmo tempo que marca eleições legislativas regionais para o dia 21 de Dezembro próximo.

Entramos em território desconhecido e qualquer precipitação pode desencadear confrontos violentos. Olhemos, então, para o futuro próximo.

6. A Lei da transitoriedade e o processo constituinte na Catalunha
A lei da transitoriedade aprovada pelo parlamento catalão, entretanto dissolvido, estabelece um período de seis meses para o processo constituinte na região.

O processo deliberativo prevê a formação de um Forum Social Constituinte e de um Órgão de Aconselhamento do governo regional.

Até Abril de 2018, será eleita uma Assembleia Constituinte com a tarefa de redigir uma constituição que será aprovada por 3/5 dos seus membros.

A constituição aprovada será depois submetida a referendo popular.

Cabe a essa Assembleia Constituinte eleger o presidente da Generalitat.

Após a aprovação da constituição em referendo, a assembleia constituinte é, finalmente, dissolvida e são marcadas eleições legislativas.

A curiosidade, neste momento, reside em saber como procederão as “autoridades destituídas” para desencadear o processo constituinte na Catalunha e como reagirão as autoridades espanholas se tal acontecer.

7. Barcelona, Madrid, Bruxelas
É no mínimo surpreendente que os órgãos de governo regionais, antes da declaração unilateral de independência, não tenham ponderado e divulgado, com total clareza e de forma explícita para esclarecimento geral da população, quais as consequências políticas, económicas, sociais e práticas de uma secessão do Reino da Espanha e, consequentemente, de uma separação da União Europeia.

A falta de reconhecimento internacional, a posição clara das principais instituições europeias ao lado do governo de Madrid e a saída de inúmeras empresas (a sua sede social) da Catalunha deveriam ter soado como um perigoso sinal de alarme relativamente ao futuro próximo da região em caso de secessão e independência.

Barcelona tem muitas razões que lhe assistem em matéria de autonomia regional e pode ser mesmo um case-study muito útil para Madrid e Bruxelas, no quadro de uma Europa das regiões e no contexto de uma nova doutrina regionalista para a Europa.

A velocidade dos acontecimentos e a pressão de Madrid não deixaram margem para uma posição europeia mais equidistante. E foi pena.

8. A revisão constitucional, a revisão dos estatutos, as eleições de 21-D
Como dissemos, o nacionalismo tem muitas nuances, muitas grelhas de leitura e outras tantas velocidades.

No quadro europeu, Bruxelas podia ter explicado a Madrid e à Catalunha que gostaria de aproveitar a experiência autonómica e regional da Catalunha para reconsiderar a sua política regional e de coesão territorial.

Ao mesmo tempo, em Madrid, as pretensões domésticas da Catalunha poderiam ter sido acomodadas através de negociações bilaterais, com a promessa de uma revisão dos estatutos e à luz de uma revisão eventual da constituição espanhola que poderia evoluir, ou não, para uma organização política do tipo federal.

Com este enquadramento geral, julgamos que teria sido mais fácil fazer passar a proposta de eleições regionais, pois haveria uma justificação politicamente plausível para o fazer.

Notas Finais
No dia em que escrevo (dia 30 de Outubro) não tenho qualquer bússola para o que vai passar-se a seguir. Arrisco, porém, a descrever três cenários possíveis, dadas as contingências do processo em curso:

1º cenário: teoricamente mais prometedor
Eleições em 21-D, todos os partidos acatam esta deliberação sem qualquer problema.
Revisão do estatuto da Catalunha e abertura de um processo de revisão constitucional.
Um sinal da União Europeia no sentido de mais e melhor Europa das Regiões.
Regressam as sedes sociais de empresas.

2º cenário: uma situação em “estado de sítio”
Os partidos independentistas não aceitam e bloqueiam o ato eleitoral de 21-O.
Os partidos independentistas formam órgãos clandestinos de governo e administração.
Há confrontações violentas nas ruas.
Mais empresas saem da Catalunha

3º cenário: a 3ª via do “compromisso histórico”
Eleições em 21-D, com a participação dos partidos independentistas
A negociação de um Pacto Fiscal para a Catalunha.
Uma revisão do estatuto da Catalunha.
Uma revisão geral dos vários estatutos autonómicos e eventual revisão da constituição.

Na prática, porém, suspeito que iremos assistir a uma espécie de jogo do gato e do rato, daqui até 21 de Dezembro, com sucessivas investidas sobre o eleitorado mais indeciso, no sentido de o fazer passar para o campo independentista.

Esta tática política passa por provocar as instituições e as forças do estado espanhol na Catalunha, de tal modo que a violência e a repressão possam novamente ser notícia em todo o mundo.

Se as dúvidas permanecerem até à véspera das eleições, a possibilidade de um bloqueio eleitoral pode ser bem real.

Nas últimas notícias, o partido de Puidgemont e a esquerda republicana declaram ir a jogo, isto é, a eleições. É um bom augúrio.

Entretanto, para surpresa geral, Puidgemont e cinco membros do seu governo partiram para a Bélgica!!

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

 

 

 

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