A Sinfonia das Estrelas afinal existe

O conceito filosófico ancestral de uma música das esferas (ou musica universalis) perdurou durante milénios no imaginário do Homem. Com […]

O conceito filosófico ancestral de uma música das esferas (ou musica universalis) perdurou durante milénios no imaginário do Homem.

Com efeito, Pitágoras de Samos (ca. 569-475 a.C.) e seus discípulos acreditavam que o movimento harmonioso dos corpos celestes — Sol, Lua e planetas — era gerador de sons musicais, dando estes origem a uma melodia divina que era, porém, impercetível ao ouvido do comum dos mortais.

Tal conceito viria apenas a ser destituído de qualquer base científica em pleno período Renascentista, coincidindo com a descoberta por Johannes Kepler (1571-1630) das leis do movimento dos planetas.

No entanto, tal não impediu a música das esferas de continuar a alimentar o pensamento artístico e literário nos séculos que se seguiriam.

Foi então já na década de 60 do século passado que os astrónomos viriam a descobrir a existência de ondas sonoras retidas no interior do Sol, ondas essas que fazem o Sol ressoar como se de um instrumento musical se tratasse.

Ironicamente, foi a mesma ciência moderna, que séculos antes havia colocado um ponto final na tão estimada noção de uma música das esferas, a reavivar tal conceito, agora na forma de uma sinfonia das estrelas. Mas já lá iremos.

A deteção de oscilações no Sol abriu caminho para o desenvolvimento de uma área da astrofísica moderna chamada heliossismologia.

Interessará dizer que o agente causador dessas oscilações é a turbulência presente nas camadas convetivas próximas da superfície solar. O som assim produzido não chega a deixar a estrela (o som não se propaga no vácuo), contudo manifesta-se indiretamente através de ligeiras pulsações periódicas (ou variações diminutas do brilho) à sua superfície. Com os nossos telescópios podemos medir este último efeito e, portanto, “ouvir” o som aprisionado no interior das estrelas.

Mas o que nos pode ensinar a heliossismologia? Através da heliossismologia, o Sol cumpre o papel de pedra de Roseta da astrofísica.

Ela permite-nos estudar o Sol em grande detalhe e desse modo melhorar a nossa compreensão dos ciclos de vida, não só do Sol, mas também de estrelas semelhantes ao Sol.

A heliossismologia permite ainda testar a física fundamental sob as condições extremas presentes no interior do Sol.

Todavia, o Sol é apenas uma de entre 100 mil milhões de estrelas na nossa Galáxia, encontrando-se num estado evolutivo específico e sendo, para mais, estruturalmente simples se comparado com certas outras estrelas.

Uma consequência lógica foi, por isso, o advento da astrossismologia, segundo a qual seríamos, em princípio, capazes de sondar o interior das demais estrelas, através da medição das suas oscilações.

A deteção definitiva de oscilações do tipo solar em estrelas distantes conseguiu, durante décadas, eludir a comunidade científica.

Seria o desenvolvimento de técnicas altamente estáveis para a observação do efeito de Doppler, promovido pela procura de planetas extrassolares, a produzir o avanço tecnológico necessário de modo a tornar exequível a deteção de tais oscilações. Estávamos na viragem do milénio e as primeiras deteções do género começavam então a ser relatadas.

A verdadeira revolução no campo da astrossismologia tardaria, no entanto, alguns anos em chegar. Esta coincidiu com o lançamento, em 2009, do satélite espacial Kepler da NASA, entretanto descomissionado.

O Kepler consistiu num fotómetro de 1 metro de abertura, capaz de gerar observações do brilho de uma estrela com uma precisão de apenas algumas partes por milhão. Foi projetado de modo a investigar um pequeno canto da nossa Galáxia na direção da constelação do Cisne, sendo que o seu principal objetivo era a descoberta de planetas extrassolares semelhantes à Terra e a inferência da sua taxa de ocorrência (eta-Earth, do inglês).

Com essa finalidade, o Kepler monitorizou o brilho de mais de 150 mil estrelas ao longo de um período de 4 anos. Os dados científicos de alta qualidade fornecidos pelo satélite adequavam-se também à realização de estudos em astrossismologia.

Como consequência, oscilações do tipo solar foram detetadas pelo Kepler em dezenas de milhares de estrelas, desde estrelas de sequência principal — no núcleo das quais ocorre a fusão do hidrogénio em hélio — até às suas congéneres mais evoluídas, as gigantes vermelhas.

E por isso vos falo de uma verdadeira sinfonia das estrelas. Passo então a explicar. Deixe-se levar por momentos para uma sala de concertos. O primeiro-violino dirige-se até ao piano e toca a nota Lá (frequência de 440 hertz), padrão de referência para a afinação da altura musical.

A mesma nota é então tocada repetidamente pelos demais instrumentos da orquestra e, contudo, facilmente conseguimos distinguir a corneta da trompete, a tuba da flauta, o violoncelo do violino. O formato do instrumento determina, pois, os seus modos naturais de oscilação — o seu timbre.

De modo análogo, estrelas de diferentes tamanhos, massas e idades, apresentam espetros acústicos característicos (o espetro acústico do Sol está centrado numa frequência de 3 mili-hertz ou, equivalentemente, períodos de 5 minutos; ver imagem). Imaginemos agora o céu como palco e as estrelas como membros de uma orquestra sideral. Vai dar-se início à sinfonia das estrelas.

 

Autor: Tiago Campante
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

Tiago Campante é astrofísico. Iniciou o seu percurso académico na Universidade do Porto, onde, em 2007, se licenciou em Física e Matemática Aplicada.
Seguiu-se depois o doutoramento, concluído em 2012, durante o qual dividiu o seu tempo entre a Universidade de Aarhus (Dinamarca) e a Universidade do Porto.
Após conclusão do doutoramento, Tiago levou a cabo um pós-doutoramento na Universidade de Birmingham (Reino Unido), onde permaneceu durante cinco anos.
Já em 2017, após breve passagem como investigador pela Universidade de Göttingen (Alemanha), Tiago voltou à Universidade do Porto como Professor Auxiliar Convidado no Departamento de Física e Astronomia da Faculdade de Ciências, desempenhando em simultâneo o papel de Colaborador Institucional no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço.
Tiago é um especialista em física estelar e ciência exoplanetária, contando com mais de 100 publicações em revistas científicas da especialidade (incluindo a Nature e a Science) e tendo um papel ativo em várias missões da NASA (Kepler/K2 e TESS) e da Agência Espacial Europeia (PLATO).
Além de uma presença assídua nos média nacionais e internacionais, Tiago vê também, em ações de divulgação como esta, uma oportunidade única de comunicar os resultados da sua pesquisa e de incentivar a prática da ciência pelos mais novos.

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