Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXXIV): O Presidente Juncker e o estado da União 2017

«Aproveitemos os ventos favoráveis porque as nuvens não deixarão de chegar». Jean Claude Juncker (Discurso, 2017) O presidente da Comissão […]

«Aproveitemos os ventos favoráveis porque as nuvens não deixarão de chegar».
Jean Claude Juncker (Discurso, 2017)

O presidente da Comissão Europeia Jean Claude Juncker é o decano da política europeia. Esta longevidade concede-lhe legitimidade política bastante para ousar defender a responsabilidade das suas convicções europeias.

Essas convicções ficaram bem patentes no seu discurso anual sobre o estado da União, proferido solenemente a semana passada, no Parlamento Europeu.

Evidentemente, se tivesse sido o presidente do Conselho Europeu ou o presidente do Parlamento Europeu ouviríamos seguramente outro discurso sustentado por outras convicções europeias.

Este facto é importante porque não podemos ignorar a circunstância e o modo de representação em que cada ator político está investido.

A Comissão Europeia é representada por comissários independentes, o Conselho Europeu por primeiros-ministros e presidentes de república e o Parlamento Europeu por deputados eleitos diretamente.

No plano político-institucional, a Comissão Europeia é a instituição que detém o monopólio da iniciativa legislativa, o Parlamento Europeu aprova, em codecisão com o Conselho de Ministro,s a maioria dessas propostas, e o Conselho Europeu é a autoridade política superior e a entidade de recurso na hierarquia política da União Europeia.

É preciso ter presente este processo complexo de tomada de decisão para perceber em que estádio político se encontra o discurso do presidente da Comissão Europeia. Com efeito, nestas condições, o programa proposto pelo presidente da Comissão Europeia tem um longo caminho a percorrer, passará por inúmeros processos de negociação política, dentro e fora das instituições, e a tomada de decisão seguirá um timing político que, neste momento, é completamente impossível de fixar.

Tendo isto em mente, convenhamos que reformar a União Europeia é uma tarefa gigantesca. As linhas vermelhas são conhecidas: o impacto do Brexit, a política errática de Trump, as incursões da Rússia, as reticências da política energética, as consequências do terrorismo (também cibernético), os efeitos da imigração (também refugiados).

No plano interno, as desigualdades do mercado interno, os muros de Schengen, as divergências da zona euro, as dificuldades de uma defesa comum, as resistências a mais maiorias qualificadas.

Não obstante todas estas linhas vermelhas, ou por causa delas, o discurso proferido pelo presidente da Comissão sobre o estado da União foi muito corajoso ao afirmar “Aproveitemos os ventos favoráveis porque as nuvens não deixarão de chegar”. Vejamos algumas questões essenciais do seu discurso.

1. A teoria da integração económica e a contingência política europeia
A teoria da integração económica liberal é um puzzle gigantesco, onde é preciso rezar muito para que a mão invisível do mercado realize a magia do equilíbrio geral.

Como hoje em dia as crenças andam pelas ruas da amargura, precisamos de encontrar convicções de outra ordem para levar a bom porto alguns equilíbrios, ao menos parciais.

A União Europeia é uma dessas tentativas de equilíbrio parcial e mesmo essa sob uma grande contingência política, mas nada que se compare com a gravidade da situação em outras partes do mundo.

Em termos comparativos, de resto, esta parte do continente europeu vive no “melhor dos mundos”. Quer dizer, mesmo num espaço económico com um mínimo de integração, há problemas graves de convergência económica que precisam de ser resolvidos, mas mesmo neste caso não existe vontade política suficiente para promover essa convergência e a união cada vez mais estreita entre os povos da Europa como há muito tempo está prometido.

As convicções do Presidente Juncker refletem essa ambivalência do tempo histórico.

2. “O drama” da Europa de geometria variável
A ambivalência do discurso tem muito a ver com a Europa a várias velocidades ou Europa de geometria variável. Talvez a questão mais crítica da política europeia, neste momento, seja encontrar um denominador comum para a geometria variável que deixe “politicamente confortáveis” todos os Estados membros e, em especial, aqueles que “ficam para trás”.

Não é tarefa fácil, e essa mesma ambiguidade transparece nas palavras do Presidente da Comissão Europeia quando se refere à “Europa Mais Unida” e à “Europa Mais Forte”.

Parece indubitável que não podemos avançar todos ao mesmo tempo e em todos os assuntos, que não podemos criar “europas variáveis” para todas as matérias, que não podemos querer fazer tudo ao mesmo e que, não obstante, uma reforma da política europeia é absolutamente necessária para resolver esta aparente quadratura do círculo.

É certo, existe a doutrina original da “política dos pequenos passos” o que, na circunstância, significa realizar pequenos “arranjos de conveniência” como sejam as cooperações reforçadas, cooperações estruturadas, revisões cirúrgicas dos tratados e acordos intergovernamentais fora dos tratados, em vez de grandes conferências intergovernamentais.

Seja como for, depois do Brexit, o drama europeu passou a ser existencial. Por isso, em todos os casos, recomenda-se que existam posições comuns e consensuais de partida para evitar a “balcanização da política europeia”.

3. Uma cimeira europeia extraordinária no dia 30 de Março de 2019
O programa do Presidente Juncker irá viver um “drama existencial” pelo facto de coincidir com as negociações relativas ao Brexit. Mas não só.

Os efeitos cruzados serão inevitáveis e perturbarão o ambiente necessário para traçar uma linha de rumo consistente para a política europeia nos próximos 18 meses.

O Reino Unido deixará oficialmente a União Europeia no dia 29 de Março de 2019. Jean Claude Juncker propõe a data simbólica de 30 de Março de 2019 para realizar uma cimeira extraordinária europeia tendo em vista lançar aquilo que ele designa como o sexto cenário do projecto europeu.

Até lá, a União Europeia deverá prosseguir seis grandes tarefas:

– Reforçar a Europa dos Valores – da liberdade, da igualdade, do estado de direito,
– Definir um quadro claro para a política de imigração em sentido amplo,
– Reforçar a política comercial e um programa ambicioso de grandes acordos,
– Reforçar a política industrial nas áreas da inovação, digitalização e descarbonização,
– Definir uma política clara para a redução das emissões de CO2,
– Reforçar a protecção dos europeus face à era digital e, em particular, à cibersegurança.

4. Depois do livro branco dos cinco cenários, o sexto cenário europeu
Depois da publicação do Livro Branco dos Cinco Cenários para a União Europeia, é sintomático da atual circunstância europeia que se declare “aberto” um sexto cenário para a Europa.

O presidente da Comissão Europeu é muito corajoso ao fazer uma opção política fundamental de “todos em tudo”, que se compreende, tendo em vista colocar todos os Estados membros em pé de igualdade na linha de partida do debate político deste emblemático “sexto cenário”.

Estamos, digamos, a viver um “remake” de conjunturas anteriores, desta vez, porém, com um “leste europeu” muito mais radical e pouco sensível a recuos de soberania.

Mesmo que, neste cenário, a geometria variável seja sempre uma opção política voluntária do Estado membro e reduzida, no essencial, a um programa específico de transição, será necessária uma grande habilidade política por parte de todos os atores políticos envolvidos.

Ora, essa habilidade política, manifestamente, não existe. Vejamos, agora, os tópicos principais apontados pelo Presidente da Comissão Europeia:

Uma União Mais Unida
– Bulgária e Roménia entram imediatamente no espaço Schengen,
– O euro deve ser a moeda única de toda a União,
– Todos devem ser membros da união bancária,
– A União deve criar uma base comum para os direitos sociais dos cidadãos europeus.
Uma União Mais Forte
– Mais mercado interno (fiscalidade comum),
– Mais UEM, um ministro das finanças europeu,
– Mais UEM, um fundo monetário europeu,
– Mais UEM, uma linha orçamental específica para a zona euro,
– Uma Agência de Informação (cibersegurança),
– Um Fundo Europeu de Defesa,
– Mais maioria nas decisões (em especial na política externa e segurança comum),
– Um só Parlamento para toda a União (contra um parlamento para a zona euro),
– Mais respeito pelos princípios de subsidariedade e proporcionalidade.
Uma União Mais Democrática
– Novo código de conduta dos comissários,
– Um só presidente para a Comissão e o Conselho,
– Novas regras para o financiamento de partidos e fundações políticas,
– Listas transnacionais para o Parlamento europeu,
– Organização de convenções nacionais em 2018 para a reforma da Europa.

5. Uma verdadeira corrida de obstáculos
Se for possível realizar todo este trabalho preparatório, teremos, como disse, uma grande cimeira europeia no dia 30 de Março de 2019, no dia seguinte à saída formal do Reino Unido.

Acrescente-se, ainda, que as eleições para o Parlamento Europeu deverão ter lugar no fim do mês de Maio de 2019, donde o simbolismo político de todo este calendário.

Os obstáculos, porém, são de monta. Senão, vejamos:
– Nada garante que as negociações com o Reino Unido estejam terminadas em 29 de Março de 2019 e que até lá não possa haver um “golpe de teatro”,
– O programa do presidente da Comissão Europeia “não resistirá” ao programa do diretório europeu franco-alemão,
– O programa do presidente da Comissão Europeia “não resistirá” a um fator externo imponderável, um cisne negro, que altere a agenda e o calendário político da União,
– A “dupla harmonização fiscal e social” não será facilmente aceite por todos os Estados membros da União, por retirar margem de liberdade à política doméstica,
– O “orçamento para a zona euro” proposto pelo presidente Macron é muito controverso; Jean Claude Juncker prefere falar em “linha orçamental especifica”,
– O chamado “duplo Parlamento, para a União e a zona euro”, proposto igualmente por Macron, não é aceite por Juncker,
– A chamada “união das transferências” não é aceite pela opinião pública alemã e muito menos pela política conservadora alemã,
– A “defesa comum europeia” exigirá uma redistribuição dos fundos europeus no preciso momento em que a dotação global fica substancialmente reduzida pela saída do Reino Unido,
– O próximo “período de programação dos fundos europeus 2020-2027” obrigará muito provavelmente a uma redistribuição interna das dotações relativas à PAC e à Política de Coesão, o que porá em causa a atual distribuição,
– As novas maiorias qualificadas, em áreas como a defesa, segurança, fiscalidade, imigração, não serão facilmente aceites por todos os Estados membros.

Nota Final
Eis o “drama existencial” do Presidente Juncker ou, talvez melhor, o “paradoxo da geometria variável”, tudo isto na véspera das eleições alemãs.

De um lado, a ambição de reunir no mesmo propósito todos os Estados membros sem exceção (União Mais Unida), do outro lado, as restrições objetivas que impedem alguns Estados membros de aceder a esse desiderato nos mesmos termos e à mesma velocidade (União Mais Forte).

Estamos no domínio das “grandes declarações políticas”. Nem sequer sabemos se se trata, afinal, de mais uma “falsa partida”.

Depois das eleições alemãs e das cimeiras franco-germânicas que se seguirão, estaremos em melhor posição para avaliar até onde irá, verdadeiramente, o programa político do presidente Jean Claude Juncker.

Até lá, falta, digamos, uma doutrina bem estabelecida acerca do que se deve entender por geometria variável no plano europeu, se quisermos, uma espécie de caderno de especificações que diga, claramente, quais os direitos e deveres das partes (um contrato de convergência) em matéria de espaço Schengen, de zona euro, de política migratória, de segurança e defesa, etc.

Podemos, inclusive, estar totalmente enganados e os “termos da transição” serem um mau argumento de negociação. A razão para esta dúvida existencial reside no facto de não haver acordo político substancial quanto às linhas vermelhas em cada uma das policy-areas referidas.

O orçamento para a zona euro é um “bom exemplo”: o presidente Macron está de acordo com uma proposta orçamental para a zona euro, o presidente Juncker prefere uma “linha orçamental especifica”, porém, desconhecem-se os trade-offs que estas opções implicarão para as outras áreas, no preciso momento em que os recursos disponíveis serão ainda mais escassos por virtude da saída do Reino Unido.

Esta é, também, a razão pela qual iremos assistir, nos próximos 18 meses, a sucessivos balões de ensaio sobre o caminho a seguir. Até lá, muito provavelmente, esqueceremos mais um cenário e mais uma declaração política.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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