Crónicas do Sudoeste Peninsular XXXIII: A smartificação do território

E quando o “aparato digital” tomar conta do território, como se apresentará a ocupação do território? Eis uma pergunta verdadeiramente […]

E quando o “aparato digital” tomar conta do território, como se apresentará a ocupação do território? Eis uma pergunta verdadeiramente intrigante para o próximo futuro.

Vem aí a “indústria dos objetos conectados”. Doravante, podemos fazer “plantações” destes objetos conectados, isto é, tudo será smart, mais tarde ou mais cedo: a cidade, a habitação, a fábrica, o hospital, o aeroporto, a universidade, o centro comercial, mas, também, o campo agrícola, a empresa pecuária, a floresta, o parque natural, etc.

Já hoje, de resto, no domínio da agricultura, os avanços tecnológicos são imparáveis, os sensores e os agribots, estão por todo o lado. Eis alguns exemplos ligados à agricultura de precisão, tecnologias e software de precisão, empresa agrícola 4.0:

>Gestão remota da rega.
>A monitorização das culturas a partir de imagens aéreas (obtidas com drones).
>Cálculo algorítmico do índice de vegetação por diferença normalizado (NDVI).
>Câmaras de vigilância nos estábulos e vacarias.
>Robôs de ordenha e alimentação.
>Chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida.
>Robôs para realizar os trabalhos na vinha (winebots).
>Veículos autónomos como maquinas agrícolas e tratores.
>A sensorização da floresta (os olhos e os ouvidos das árvores).
>As câmaras térmicas (os olhos noturnos dos bombeiros).
>Imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos.
>Robôs para fazer o ataque a incêndios.
>Recolha e tratamento da informação bruta: farming data e cloud computing.
>Modelos computacionais para a elaboração de cenários de intervenção.
>Criação de aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros.
>Inteligência artificial (machine learning) para diversas simulações, etc.

Este pequeno resumo ilustra bem o que poderá ser o campo do futuro e o futuro do campo, de acordo com um certo determinismo tecnológico. Se a esta “plantação-conexão digital” juntarmos a constelação tecnológica formada pelas nanotecnologias, as biotecnologias, as ciências da vida, do solo e da água e as indústrias da alimentação, teremos seguramente uma ocupação do território muito diferente da atual, com menos gente in situ e mais gente ex situ ocupada em tarefas de vigilância, programação, planeamento e controlo à distância.

Dito isto, a grande questão de sociedade parece ser, então, a seguinte: depois de um primeiro êxodo agrícola promovido pela industrialização e a urbanização (a 1ª ruralidade), estaremos nós na iminência de desencadear um segundo êxodo agrícola com a smartificação do território, agravando todas as condições relativas ao despovoamento e desertificação das chamadas áreas de baixa densidade ou, pelo contrário, há uma baixa densidade virtuosa que a smartificação pode ajudar a conceber e construir?

Esta questão é tanto mais pertinente, quanto se discute, agora, o impacto das alterações climáticas e dos fogos florestais, bem como os modelos de exploração agrícola e florestal que devem ocupar de forma ordenada o território, tal como nos ensina o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, quando se refere ao “organicismo da paisagem global”.

O nosso receio é mesmo este, ou seja, que “a smartificação casuística não saiba respeitar o organicismo da paisagem global”. Vejamos algumas questões fundamentais a este propósito.

 

A smartificação do território

1. Lógicas bioprodutivista e agroecossistémica
A smartificação do território consente, digamos, esta bifurcação, ela depende das nossas opções produtivas, mas a lógica bioprodutivista é claramente hegemónica e é aquela que melhor se adequa aos “algoritmos” da smartificação.

Seja como for, é importante afirmar que a smartificação não é incompatível com a lógica agroecossistémica, para além de permitir um rational do emprego rural muito mais favorável aos territórios. De resto, há aqui uma enorme margem de progresso em matéria de investigação-acção.

2. Smartificação e capitalização da agricultura
Tenho muitas dúvidas de que a fase da smartificação do território, e da agricultura em particular, pela capitalização e conhecimento técnico que implicam, seja uma tarefa de “proprietários, rendeiros e explorações agrícolas tradicionais” para usar o eufemismo corrente.

A smartificação da agricultura já está em curso, de forma difusa e selectiva, mas os agribots não se compadecem com a agricultura tradicional, antes exigem uma agricultura bioprodutivista muito mais capitalizada.

O mais provável é que este investimento seja realizado por “agentes exteriores” ao território em questão. De resto, não se trata apenas de investimento, mas, também, de uma nova conformação do sistema produtivo aos novos utilizadores, o que poderá ter algumas implicações ecossistémicas.

3. Um ecossistema territorial inteligente
Em terceiro lugar, a smartificação de um território vai muito para lá da smartificação da agricultura, é uma tarefa muito exigente em matéria de programação e planeamento regional e supõe a construção de um ecossistema inteligente não apenas para atrair uma nova geração de empreendedores, mas, também, para criar uma mesoeconomia mais colaborativa e cooperativa orientada para novas configurações territoriais, por exemplo, a criação de territórios-rede e actores-rede com determinadas características estruturais.

4. O organicismo da paisagem global
Na sequência do tópico anterior, não basta o determinismo tecnológico de uma smartificação do território feita de sistemas de informação geográfica (SIG e GPS) e uma série de aplicações em smartphones para fazer rodar uns agribots e uns drones de vigilância do estado das culturas, embora possa ser essencialmente isso nesta fase.

O organicismo da paisagem global, a harmonia dos seus elementos constitutivos e o bem-estar das populações residentes estão para lá da “inteligência artificial” e só me parecem possível no quadro de “territórios-rede desejados” administrados por um ator-rede dedicado e dotado de capital cognitivo suficiente para o efeito.

5. As redes digitais centralizadas e distribuídas
A smartificação da agricultura de precisão conduzida numa lógica bioprodutivista obedece geralmente a uma rede digital centralizada de acordo com uma cadeia de comando bem desenhada, quantas vezes estranha ao próprio território; por outro lado, a lógica agroecossistémica e o organicismo da paisagem global obedecem a uma rede digital distribuída (uma rede peer to peer, P2P) que requer uma “outra cibercultura” muito mais próxima das comunidades locais de vizinhança e proximidade.

6. Os novos gestores da “smartificação da paisagem”
A “paisagem global” de Gonçalo Ribeiro Telles é um mosaico multifuncional complexo onde cabem a conservação da natureza, a produção de alimentos frescos, as amenidades agroturísticas e a gestão das áreas de paisagem protegida, de acordo com critérios técnicos, mas, também, estéticos e éticos.

Isto significa que, no plano dos processos e procedimentos relativos aos sistemas agroecológicos, a smartificação pode também contribuir para uma profunda revolução na gestão integrada das unidades de paisagem e áreas de paisagem protegida, das empresas agrícolas e florestais e das amenidades e serviços ambientais que, conjuntamente com os núcleos populacionais, formam a estrutura básica do ordenamento do território e da paisagem.

Notas Finais
Enquanto esta “cultura da paisagem global” não estiver estabelecida (e todos esperamos que ela não chegue pelos piores motivos em razão da emergência das alterações climáticas), teremos, cada vez mais, uma agricultura “povoada” de microchips e sensores, e gerida à distância por “seres aumentados” que administram interfaces eletrónicos e digitais de todo o tipo.

O grande desafio desta nova fase é uma “smartificação inteligente” do território como paisagem orgânica global, pois estou convencido de que a smartificação não é incompatível com a lógica agroecossistémica.

A propósito desta lógica e deste organicismo da paisagem, lembro o seguinte: plantações de árvores não são floresta, engenharia florestal não é silvicultura, culturas transgénicas não são agricultura, animais clonados não são pecuária, operações fundiárias não são engenharia biofísica, arranjismo verde não é arquitetura paisagista, esverdeamento de culturas não é prestação de serviços ecossistémicos e gestão do sistema de produtos não é a gestão dos produtos do sistema.

Há, pois, neste contexto, muito trabalho de investigação-ação a realizar para as futuras redes digitais distribuídas.

Neste aspeto, importa dizer, as “redes digitais distribuídas” são relações laterais e colaborativas, uma espécie de internet dos cidadãos, através das quais se pratica a economia dos bens comuns colaborativos, uma economia sem intermediários em que os produtores são também consumidores e vice-versa.

As empresas start-ups que criam plataformas tecnológicas e aplicações informáticas são, na narrativa dominante, o agente principal destas redes digitais distribuídas e aqui a imaginação não tem limites.

É fundamental, porém, deixar um aviso à navegação. Os territórios mais remotos e hostis são um desafio à imaginação tecnológica e digital e aguardamos, a todo o tempo, que as start-up mais ousadas sejam capazes de nos trazer novidades na forma de ocupar estes territórios.

Todavia, à “nova economia imaterial”, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais.

Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, quais corredores solitários em busca de uma pista segura que lhes garanta um mínimo de sustentabilidade.

Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal ou associativa, já para não falar da qualidade do ator-rede que administra a rede digital distribuída.

Quer dizer, teremos de fazer, rapidamente, uma revisão da matéria dada no que diz respeito aos espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, as associações de desenvolvimento local, que têm sido até agora os locais privilegiados para fazer nascer estas redes distribuídas e perceber melhor o lado virtuoso da baixa densidade e as razões para tão baixa performatividade e efetividade destes instrumentos de intervenção no território.

Num país tão pequeno, tão veloz e tão desigual do ponto de vista urbano-cultural, a “morte da distância” operada pelas tecnologias digitais coloca os cidadãos a residir no litoral, na dependência de um centro urbano ou de uma área metropolitana.

Tudo ponderado, porém, nem é assim tão mau, pois podemos ter o melhor de dois mundos: de um lado, as economias de aglomeração das duas grandes cidades metropolitanas e, de outro lado, à distância de pouco mais de uma hora, poder usufruir dos benefícios e virtualidades das economias de gama, nicho e baixa densidade, para lá do recreio e lazer que o denominado interior sempre nos oferece.

Em vez da morte da distância teríamos a glorificação da distância e contra o desfavorecimento do interior nós teríamos, isso sim, a obrigação de criar uma rede densa de complementaridades e efeitos externos positivos que importaria organizar com todo o cuidado de modo a reduzir o passivo acumulado das desigualdades regionais e territoriais.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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