Hangares, hidroaviões e pães de leite ou as memórias do Centro de Aviação Marítima do Algarve

Já não há hidroaviões, os pilotos que os operavam há muito foram embora e desapareceram todos os vestígios dos hangares […]

Já não há hidroaviões, os pilotos que os operavam há muito foram embora e desapareceram todos os vestígios dos hangares que os albergaram – menos o nome, que continua apegado ao local. Ainda assim, os aviões e aviadores de outrora continuam bem vivos na memória dos habitantes mais antigos da Ilha da Culatra, então crianças, que cresceram a ver aeronaves a amarar na Praça Larga, o espelho de água frente à ilha, do lado da Ria Formosa, e muitas vezes ganharam o dia com as iguarias vindas de outros países que lhes eram oferecidas, como pães de leite com queijo e carnes frias.

Vitorino Neves, que completou 81 anos esta semana, ainda se lembra bem do tempo em que havia mesmo hangares no núcleo dos Hangares da Ilha da Culatra e hidroaviões fundeados na Ria, «com fateixas que pareciam feitas de prata, que brilhavam, brilhavam – eram feitas de aço inoxidável».

Ele, na companhia da sua já falecida irmã Maria Hortense e da sua prima Alda Amâncio, que vive atualmente no núcleo do Farol da mesma ilha, passava as horas livres dos seus tempos de menino a admirar as aeronaves e, por vezes, a privar com os seus pilotos, «que eram quase todos franceses».

«Eu devia ter 9 ou 10 anos na altura. Nós, mal víamos os hidroaviões a pousar, íamos a fugir para lá. E eles vinham ter connosco nos seus barcos de borracha, a remos. Traziam pães-de-leite com queijo, com carne, com fiambre, com tudo. Nunca tínhamos provado nada como aquilo. Eram todos muito simpáticos», conta.

Nascido em 1936, Vitorino Neves ainda se lembra do Centro de Aviação Marítima do Algarve – que começou a ser instalado na Ilha da Culatra, em 1917, faz agora cem anos – a funcionar em pleno.

Durante a I Guerra Mundial (1914-1918), a ilha da Culatra foi um centro de aviação naval usado pelos hidroaviões franceses e destinado à luta anti-submarinos. Depois, passou para o domínio da Marinha Portuguesa.

«Na minha altura, os hidroaviões já não entravam para os hangares, ficavam aqui fundeados na Ria Formosa. Às vezes, juntavam-se três, outras vezes quatro ou cinco, era conforme. Andavam a vigiar a costa e era aqui que descansavam», recordou.

Outro episódio de que Vitorino Neves se lembra bem é o da queda de um hidroavião perto da praia, um acidente ao qual o piloto sobreviveu, mas que deixou a aeronave em mau estado. «Nessa altura, era mais crescidinho. Eles partiram o avião em três partes e veio em cima de madeira para a ponte, para ser levado», contou.

Filho de Manuel Lobisomem, considerado o habitante pioneiro dos Hangares e, à época, trabalhador  da Junta de Portos do Sotavento do Algarve, Vitorino Neves nasceu nos Hangares com a ajuda da parteira Teresa Balau, da Culatra (é atualmente o mais velho dos que ali nasceram), e continua a chamar  a este núcleo a sua casa.

A cabana que o seu pai pediu para erguer na ilha, no início do século XX, fornece a sombra à conversa entre o Sul Informação e Vitorino Neves, que recorda que, quando nasceu, apenas existia nos Hangares o Centro de Aviação Marítima, com as suas diferentes estruturas, o posto da Guarda Fiscal, ladeado por pequenas casas para os guardas ali estacionados e suas famílias, a chamada Casa do Galeão, o moinho (operado pelo seu pai) e a carvoaria, edifício hoje em ruínas, situado junto ao pontão dos Hangares.

Entretanto, a comunidade permanente dos Hangares foi crescendo, mas chegou o dia, já depois do término da II Guerra Mundial, em que os hidroaviões foram embora e o Centro de Aviação Marítima do Algarve foi desativado. «Ficámos todos muito tristes por eles irem embora. Eram muito boa gente. Até chegaram a levar-nos aos hidroaviões, para os ver», disse.

Apesar da forte associação que há entre esta base e os franceses, Rosa Neves, habitante dos Hangares e autora do livro “Hangares. O Esforço de Guerra”, diz não ter encontrado qualquer referência bibliográfica da presença de pilotos franceses nos Hangares, apesar deste ter sido construído no âmbito de um acordo luso-francês.

O que encontrou foi documentação oficial que revela que foi um oficial da Marinha Portuguesa que supervisionou a construção do Centro de Aviação Marítima do Algarve, que foi acompanhada de perto pelo então ministro da Marinha. Também há relatórios de voo de pilotos-aviadores portugueses de viagem ao Algarve, que referem a Ilha da Culatra.

Este trabalho de investigação de Rosa Neves, que já dura há 20 anos, foi espoletado pelas primeiras demolições de casas nos Hangares e visa provar que esta ilha já era ocupada no século XIX. Há documentos oficiais que falam da existência do moinho de água e da carvoaria perto do virar do século, mas há quem tenha a convicção de que a presença humana é bem mais antiga e ligada aos ciclos de pesca e às armações de atum.

Hoje, dia 30 de Agosto, a história do Centro de Aviação Marítima foi recordada nos Hangares, que a ele devem o nome, com a inauguração de um monumento e a celebração de um protocolo entre a associação de moradores local e a Marinha. E, mais interessante ainda, tantas décadas depois, hoje voltou a amarar um hidroavião frente à ilha. Mas essa história fica para contar depois…

 

Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação

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