24 de Julho de 1833, o dia em que o Camacho comandou o “massacre” de Loulé

A guerra civil da Síria continua na ordem do dia, todavia, há pouco mais de 180 anos era Portugal que […]

A guerra civil da Síria continua na ordem do dia, todavia, há pouco mais de 180 anos era Portugal que vivia uma situação semelhante.

Na verdade, a primeira metade do século XIX foi dramática para os portugueses. Das Invasões Francesas até à Regeneração, em 1851, o país passou por revoltas e contrarrevoltas, como a guerra civil, de 1832 a 1834, e depois a Maria da Fonte e a Patuleia, já na década de 1840. No Algarve, entre 1834 e 1842, houve ainda a Guerrilha de Remexido a semear o pânico e o terror pela região.

O massacre de Loulé, em 24 de Julho de 1833, enquadra-se na guerra civil, que opunha os adeptos de D. Miguel, convictos dos ideais absolutistas, aos de D. Pedro, que defendiam o liberalismo e com ele a separação de poderes (judicial, executivo e deliberativo), assentes numa constituição.

Ambos eram irmãos, filhos de D. João VI e de D. Carlota Joaquina. Aquando o regresso da família real do Brasil, para onde se retiraram em 1807 na sequência das Invasões Francesas, D. Pedro, o primogénito, manteve-se naquele reino, vindo a declarar a sua independência em 1822.

Recorde-se que a família real foi intimada a regressar a Portugal na sequência da Revolução Liberal, que eclodiu no Porto em 24 de Agosto de 1820. Sublevação que, ao contrário de Portimão, Faro ou Castro Marim, foi desaprovada em Loulé.

A Câmara e demais autoridades da vila, reunidas a 6 de Setembro de 1820, não só condenaram o movimento, como qualificaram de infame a cidade do Porto, que estava “sublevada por castigo do Céu”, e ainda consideraram ilegítimo o “governo estabelecido naquela desgraçada cidade”.

A emancipação do Brasil promovida por D. Pedro, que logo se intitulou imperador, foi estigmatizada pela maioria dos portugueses, que viam desvanecer a “joia da coroa”.

Por outro lado, D. Miguel entrara, desde 1823, na sequência da Vilafrancada, em rota de colisão com D. João VI, por defender o regime absoluto, em oposição ao constitucional, vindo a ser exilado em Viena de Áustria em 1824, após nova tentativa de golpe de Estado (Abrilada).

Com a morte de D. João VI em 1826, estava aberta a querela sobre quem deveria ocupar o trono: o primogénito D. Pedro, imperador do Brasil, que havia promovido a cisão do reino, ou D. Miguel, o exilado?

D. João VI terá indicado D. Pedro para seu sucessor, o qual abdicou a favor de sua filha, que deveria casar com o tio D. Miguel, ficando este regente até à sua maioridade.

 

D. Pedro IV

D. Pedro outorgou ainda a Carta Constitucional, dado que a Constituição de 1822 se encontrava suspensa desde a Vilafrancada. D. Miguel concordou com o plano traçado pelo irmão, contudo, pouco depois de regressar a Portugal em 1828, intitulou-se rei absoluto, correspondendo aos desejos de uma franja considerável de portugueses, enquanto muitos outros emigraram em massa para a Europa, escapando às execuções sumárias e ao terror miguelista (foram presas e degredadas milhares de pessoas).

Nesta sequência, D. Pedro vem a abdicar de imperador do Brasil no seu filho D. Pedro II e parte para a Europa em 1831, para tentar restituir o trono de Portugal a sua filha, usurpado por D. Miguel.

Estabelecido nos Açores, D. Pedro vai rumar ao norte, ocupando a cidade do Porto com um exército de cerca de 8 000 homens, apoiados em 50 navios.

O cerco do Porto, como ficaria conhecido, mantém-se durante um ano, sem vantagens para qualquer beligerante.

Com renovado apoio da Grã Bretanha, os liberais optam por enviar, numa esquadra, uma expedição até ao Algarve, com 2 500 homens dirigidos pelo duque da Terceira. Homens que deveriam posteriormente rumar para a capital do reino, proclamando aí D. Maria como rainha legítima de Portugal.

O desembarque ocorreu nas imediações da Altura em 24 de Junho de 1833, tendo, nos dias seguintes, o liberalismo sido aclamado na região com relativa facilidade, bem como nomeadas as novas autoridades civis e militares.

As tropas absolutistas remeteram-se a uma prudente expectativa, não interferindo nas movimentações liberais. A 13 de Julho, o duque da Terceira deixava a região, via terrestre, rumo a Lisboa.

Com a saída do exército liberal, as forças absolutistas concentraram-se em Almodôvar, onde foram divididas pelos chefes absolutistas Remexido e Camacho, que tinham por objetivo colocar em marcha a contraofensiva miguelista.

Assim, o primeiro deveria aclamar o rei D. Miguel em todas as localidades do Barlavento algarvio, enquanto Camacho tinha a mesma missão no Sotavento.

A 24 de Julho, o duque da Terceira entrava triunfalmente em Lisboa. Os liberais detinham não só o Porto, como, a partir de agora, também a capital.

 

D. Miguel

Nesse mesmo dia Camacho, ou melhor, o major André Camacho Jorge Barbosa investia sobre Loulé, que, em oposição, caía para os miguelistas, “debaixo da rasoira de um banho de sangue absolutamente inadmissível, bárbaro e desumano”, nas palavras do professor Vilhena Mesquita.

Também Remexido avançava sobre Albufeira por aqueles mesmos dias, porém, se aqui é possível descrever com minúcia o que se passou, a partir da “Memória dos Desastrosos Acontecimentos de Albufeira”, o mesmo não sucede com Loulé. Ainda assim, apoiados na “Monografia de Loulé”, de Ataíde Oliveira, datada de 1905, tentaremos revisitar aquele fatídico dia.

Camacho concentrara-se na serra do Algarve, onde arregimentara com facilidade homens para a sua guerrilha. Ao sucesso do recrutamento, parece não ter sido alheia a repulsa das gentes daqueles lugares aos distúrbios provocados por alguns louletanos e soldados franceses, dias antes, na igreja de Salir.

Chegados à aldeia, não só causaram alguma confusão, como invadiram a igreja, onde simularam uma luta com as imagens sacras, degolando-as, vertendo e pisando ainda as hóstias da píxide.

Tal atitude revoltou os salirenses, que terão movido perseguição aos transgressores, porém sem os capturarem. A notícia do vexatório acontecimento espalhou-se rapidamente pelos habitantes circunvizinhos, que, insultados nas suas convicções, juraram vingar-se.

O alistamento na guerrilha de Camacho veio a proporcionar a desejada retaliação. Não obstante ter surgido em Loulé a notícia da composição de uma horda na região da Quinta do Freixo, que tencionava invadir a vila, ela foi negligenciada.

Na noite de 23 de Julho, terão chegado a Loulé cerca de 3 000 guerrilhas. O plano traçado pelo major consistiu em cercar toda a povoação durante a escuridão, para que, na manhã seguinte, quando se efetuasse a ofensiva, ninguém se evadisse.

Ainda assim, um tiro acidental terá permitido a um louletano prudente evadir-se para Faro, numa altura em que o cordão ainda permanecia aberto.

Sobre o ataque escreveu Ataíde Oliveira:
“Quando a villa acordou do seu somno da indolencia, viu-se cercada. Seguiu-se a hecatombe. Então uns guerrilhas de fóra com uns compadres de dentro começaram o assalto. Houve um pequeno tiroteio. Beijaram o chão da morte, em combate e assassinados, trinta soldados francezes; e os outros retiraram para Faro. Começou então a matança; e viu-se que eram ruins os guerrilhas de fóra não eram menos infames os guerrilhas de dentro. O compadre rico e credor era assassinado pelo compadre devedor. Assassinava-se ao mesmo tempo que os assassinos davam vivas á santa religião.”

A chacina ocorreu nas ruas da Corredoura (atual rua Eng. Duarte Pacheco), de Santo António (Miguel Bombarda), da Barbacã, frente às Bicas Novas (largo Dr. Bernardo Lopes), junto à sacristia, mas também na casa das vítimas, onde os guerrilhas entravam e tudo devassavam, ou ainda em locais onde haviam procurado refúgio, como quintais ou mesmo numa pocilga.

A tiro, com um chuço ou à paulada, torturados e queimados, não se olharam a meios para atingir os fins. O número exato de mortos é variável consoante a fonte.

Ataíde Oliveira menciona 30 soldados franceses, para depois enumerar, com base num processo instruído em 1835 pelo Ministério Público, mais 32 vítimas.

 

Algumas das vítimas do massacre no Livro de Óbitos de Loulé (Arquivo Distrital de Lisboa)

No Livro de Óbitos da paróquia de Loulé, nos dias 24 e 25 de Julho, encontram-se registados 28 mortos, com a anotação de terem perdido a vida “no combate”.

Destes nenhum é francês e embora existam quatro sem identificação, por o pároco a ignorar, os dados disponíveis indiciam serem portugueses.

Entre outros, encontram-se registados os óbitos do juiz de Fora, do seu escrivão, do prior de Loulé, do alcaide, um capitão, um alferes ou ainda um espanhol, residente na vila.

A violência aquietou nos dias seguintes, mas não cessou, existindo mais oito assentos, de pessoas assassinadas até 5 de Agosto, entre elas uma mulher, morta, na rua e atirada para uma estrumeira.

Três anos depois, em 1836, a Câmara de Loulé calculava em 49 o número total das vítimas. Número que incluiria, certamente, alguns indivíduos conduzidos com o pretexto de julgamento para os subúrbios da vila, onde eram fuzilados e sepultados sem qualquer registo, uma prática muito comum na época.

Proclamado D. Miguel entre os louletanos, o major Camacho nomeava e dava posse à nova vereação da Câmara de Loulé, três dias depois, a 27 de Julho de 1833, agora fiel a este monarca. Na região, nos meses seguintes, somente Faro, Olhão e Lagos não caíram em poder dos absolutistas.

Com a vitória definitiva do Liberalismo, expressa na Convenção de Évora Monte, em 24 de Maio de 1834, foram instituídos um pouco por todo o país diversos requerimentos indemnizatórios, pelos lesados da “usurpação”.

 

Em Loulé, foram apresentados cerca de 30 processos relativos aos danos que os peticionários declaravam ter sofrido aquando da investida sobre a vila, em 24 de Julho de 1833.

A entrada nas habitações era acompanhada quase sempre pela destruição completa do seu recheio. Letrados, proprietários ou negociantes eram geralmente as vítimas, fosse pela sua conotação liberal, ou no caso dos comerciantes pelos seus clientes caloteiros.

O capitão e negociante José Rafael Pinto foi um dos requerentes, apresentando a sua relação divida em quatro tópicos principais: “Géneros”; “Mobília”; “Pratas e Ouro”; e “Miudezas”.

Na categoria dos “Géneros”, inscreveu quantidades variáveis de cereais, mas também 20 arrobas de carne de porco, duas barricas de atum, vinho, aguardente, vinagre, palha, alfarrobas, amêndoa, figos, frutas frescas e até mesmo alfaces.

Na “Mobília”, arrolou cadeiras, canapés (com a menção que os havia adquirido em Lisboa e no Porto), mesas, cómodas, tabuleiros, tábuas de tender, leitos, arcas, um oratório, fechaduras, portas, etc.

Em “Pratas e Ouro”, inventariou, por exemplo, diversas peças em prata de um faqueiro, resplendores, uma palma, dedais, um objeto com as armas reais, já em ouro, brincos de palma com diamantes, um cordão, anéis e alfinetes e, talvez o mais surpreendente, uma medalha do “usurpador” D. Miguel.

Por fim, nas “Miudezas”, entraram as panelas, chapéus de sol de homem e senhora, canastras, redes de esparto, 16 galinhas mouras e oito dúzias de pentes de alisar, entre outros objetos.

A tudo isto, José Rafael Pinto adicionava 300$000 reis dos lucros que deveria ter auferido com o seu negócio, durante o ano em que esteve emigrado em Faro.

É possível que José Pinto seja o indivíduo que fugiu de Loulé, na noite de 23 de Julho. Certo é que o mesmo terminava a sua relação pedindo 4 872$870 reis de indemnização, uma fortuna para a época.

Porém, como diz o velho adágio popular, “no pedir não haja engano”, foi seguramente o caso. Mas se José Rafael Pinto podia fazer valer os seus direitos, foram cerca de meia centena os que pagaram com a vida os ideais que defendiam, ou tão simplesmente por estarem na hora e local errados, ou ainda por meros ajustes de contas entre vizinhos e “amigos”.

 

 

O massacre de Loulé, executado por Camacho, e a chacina de Albufeira, comandada por Remexido, constituíram o auge do terror da guerra civil no Algarve.

Quanto aos cabecilhas, o major Camacho evadiu-se em Setembro de 1834 para o Brasil, enquanto Remexido se manteria na região, vindo a ser fuzilado, em Faro, depois de formar uma nova guerrilha, entre 1836 e 1838.

Camacho, por sua vez, regressaria, anos mais tarde, a Portugal, vindo a gozar de uma vida normal. Se na verdade estava amnistiado pelos crimes praticados durante a guerra civil, não faltaram exemplos, nos anos imediatos ao término desta, em que esse perdão não foi respeitado. A evasão salvou-lhe a vida, sorte que não tiveram os louletanos assassinados no ataque por si perpetrado, em 24de Julho de 1833.

Então em Portugal, hoje na Síria, 184 anos depois, a humanidade “desenvolvida” continua a impor ideias e ideais em cruéis e sangrentas guerras civis.

 

Para saber mais:

– Francisco Xavier de Ataíde Oliveira, Monografia do Concelho de Loulé, 4ª edição, Algarve em Foco, 1998.

– José Carlos Vilhena Mesquita, “O Remexido e a Resistência Miguelista no Algarve”, Al-‘ulià – Revista do Arquivo Municipal de Loulé, n.º13, 2009.

 

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita, engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, colaborador habitual do Sul Informação

 

 

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