Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXVII): O fogo que arde

Os grandes fogos são sempre um sinal de disfunção grave na história longa de um país. Mais uma vez, a […]

Os grandes fogos são sempre um sinal de disfunção grave na história longa de um país. Mais uma vez, a tragédia abateu-se sobre os mais desfavorecidos. Até ao próximo episódio.

Não vou pronunciar-me sobre os factos recentes ocorridos na região centro, uma colisão frontal entre pessoas e floresta e uma consequência direta do modelo de desenvolvimento prosseguido nas últimas décadas. É sobre este “não-modelo” de longa data que incide esta crónica.

Em duas ocasiões, em 2015, pronunciei-me sobre o “nosso modelo de desenvolvimento”: no jornal Observador em 25.08.2015 com o artigo “Interioríssimo: os territórios-rede do grande país do interior” e em 16.12.2015 no jornal Público com o artigo “O desenvolvimento do interior e os contratos territoriais CIM/NUTSIII”.

Esta é uma crónica sobre o esquecimento e a invisibilidade.

Infelizmente, os “territórios que ardem não existem”, ou melhor, “só existem porque ardem”. A invisibilidade dos territórios do interior permite quase tudo, mesmo o abandono quase total como agora se comprova. “Como não existem” não há sobre eles qualquer exercício de inteligibilidade territorial; chega-se lá quase sempre em estado de emergência e à beira do abismo como agora aconteceu.

Infelizmente, perante o grande espetáculo das televisões, a visibilidade da tragédia só tem paralelo com a invisibilidade do abandono. A intrusão é de tal ordem que ficamos com a sensação de que o incêndio deflagrou várias vezes.

Infelizmente, num país bipolar de longa data, quase tudo depende do Estado Central ou do Estado local. Quer dizer, “há muita coisa que tem de permanecer na invisibilidade” porque simplesmente não há recursos para tudo. E os que permanecem na invisibilidade são aqueles que não perturbam a pacatez do sistema clientelar e corporativo já estabelecido.

O interior do país não faz parte desse sistema clientelar ou faz parte apenas marginalmente para “calar” algum barão local com a voz mais grossa e, portanto, também, com mais acesso e visibilidade política.

Infelizmente, os incêndios desta dimensão têm o grave incómodo de trazer à tona da água os “vivos-mortos” do esquecimento. A sua longa invisibilidade, que só os incêndios perturbam, oculta uma morte há muito anunciada. É um silêncio ruidoso, cínico e cobarde, que se esconde atrás de inúmeras cortinas de proteção; desta forma, o poder central espera poder “gerir com mais racionalidade” os seus recursos escassos; segundo a sua lógica, sem visibilidade é mais fácil gerir recursos escassos e distribuir prebendas logo de seguida, por aqueles que têm maior visibilidade.

Infelizmente, os territórios também se abatem, porque estes territórios foram “silenciosamente e pacientemente desterritorializados”. É um país bipolar de longa data, são as omissões do Estado-administração, são capitais de distrito completamente vergadas ao centralismo de Lisboa, é, afinal, um país sem coluna vertebral.

Infelizmente, este é apenas mais um episódio porque a convergência das alterações climáticas, das alterações demográficas e das monoculturas agroindustriais preparam “o caminho do abandono” para que estes territórios sejam “finalmente capturados” sem que, para tal, seja necessário preparar a sua privatização.

Infelizmente, num país tão pequeno, onde todos os territórios, mesmo os mais remotos, têm sinais distintivos e recursos expectantes, é um crime de lesa-pátria não fazer um exercício de inteligibilidade sobre esses sinais e recursos, trazendo-os para a luz do dia, lançando-os no espaço público regional e nacional, conferindo-lhes a visibilidade que é necessária e tudo isto em “clima de perfeita normalidade”.

Infelizmente, o universo liliputiano dos nossos pequenos municípios do interior é um terreno difícil para a formação de comunidades de auto-governo mais fortes e musculadas.

Felizmente que não tenho soluções prontas a usar. Tenho apenas a esperança do bom senso e o bom senso diz-me que a criação das “comunidades intermunicipais”, colocadas entre os níveis local e regional, é um excelente pretexto para reconsiderar toda a política territorial de valorização do interior; que a triangulação destas comunidades com os politécnicos e as associações empresariais é um bom exercício de inteligibilidade territorial; que os contratos territoriais CIM/NUTS III são um bom instrumento de programação e planeamento; que um ator-rede e uma governança dedicada são dois fatores imprescindíveis para um bom desempenho, pois só há competência se houver permanência.

Mas, infelizmente, esta é apenas a minha opinião.

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