Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXV): A autarquia do século XXI (4)

No futuro próximo, a “sociedade política local” irá separar-se mais do poder autárquico que, por causa disso, sofrerá mudanças substanciais. […]

No futuro próximo, a “sociedade política local” irá separar-se mais do poder autárquico que, por causa disso, sofrerá mudanças substanciais.

Ao mesmo tempo, no quadro da sociedade da informação e comunicação, o poder local será cada vez mais “distribuído, lateral e colaborativo”, porque acompanhará, em geometrias e ritmos muito variáveis, a difusão da cultura digital, da economia das redes e dos valores da sociedade colaborativa, a chamada “Sociedade CO”.

 

I. Os “planos de mudança” do poder local

O futuro do poder local acontecerá em três grandes planos. Em primeiro lugar, no plano tecnológico e técnico-administrativo, com mudanças incrementais que dependem antes de mais dos recursos financeiros disponíveis.

Três grandes vetores afetarão a estrutura técnica e tecnológica do poder local tal como a conhecemos hoje: a automação, a desmaterialização e a desintermediação. Estas alterações funcionais modificarão substancialmente a estrutura técnico-administrativa e o capital social das autarquias locais.

Em segundo plano, o que poderíamos designar como o ecossistema comunitário que rodeia o poder local e que se reporta ao universo associativo e às redes colaborativas que ligam esse universo associativo, seja do lado da oferta, mais comum, ou do lado da procura, menos comum, mas mais necessário no novo contexto.

Trata-se aqui de criar o complexo digital e colaborativo da administração local, interagindo mais com os cidadãos e as suas organizações, muito provavelmente em plataformas de outsourcing muito diversas e imaginativas.

Aliás, estou em crer que a expressão “autarquia local” passará de moda por invocar conceitos mais conservadores como autarcia, hierarquia e autoridade.

Para já, a única certeza que temos hoje é a de que haverá mais pluralidade e diversidade de poderes locais e que essa nova realidade mudará gradualmente a face do poder autárquico tal como o conhecemos hoje. Em 2030, o poder local estará irreconhecível. Para melhor.

O terceiro plano, que poderíamos designar de ecossistema institucional, é uma ampla zona de interação onde se realizam as principais transações entre níveis de governo e administração, o que a literatura consagrou com as designações de governação multiníveis e multi-escalaridade.

Aqui falamos de federalismo autárquico, das diversas modalidades de regionalização, interregionais, nacionais e transfronteiriças, das alterações da política europeia em matéria de coesão territorial e até de reforma do Estado.

Em síntese, o futuro da gestão do poder local dependerá muito da organização da sociedade política local, em especial, o universo associativo e as redes colaborativas, em segundo lugar, da política interna do município e, em terceiro, da articulação multiníveis de governo e administração e respetivas economias de aglomeração e externalidades positivas.

 

II. Os novos valores da sociedade política local e os “tipos democráticos”

Sem um novo sistema de valores só haverá bricolage político-partidária. Os sinais, porém, já se anunciam. Do lado da “sociedade política local” e da “sociedade colaborativa”, a perspectiva do futuro abrangerá as seguintes promessas:

– Cultivar os valores da “Sociedade CO”: o conhecimento, a comunidade, a colaboração, a comunicação, a comunhão, a confiança, a convivialidade, a congratulação;

– Reequilibrar os territórios de geometria fixa com mais territórios-rede de geometria variável;

– Dar prioridade à produção de capital social, isto é, a territórios cognitivos capazes de aprender e empreender;

– Dar prioridade a um associativismo de 2ª geração, do lado da procura e organizado em redor de plataformas interativas;

– Dar prioridade à construção de “novas comunidades de trabalho” para lá do emprego que existe ou deixou de existir;

– Promover a aproximação e a fusão progressivas dos setores público, social e comunitário, criando o “quarto setor”, o setor dos “bens comuns colaborativos”;

– Dar prioridade à formação de comunidades online, à crowd economy e sua interação com comunidades offline em lógicas de open source;

– Ensaiar a criação de moedas sociais complementares no quarto setor em articulação com a moeda oficial;

– Estar atento para impedir a eventual descontinuação das práticas e das redes colaborativas;

– Formar o movimento social da “Sociedade CO”, praticar a ética do cuidado e fomentar o “poder lateral dos pares” e de suas redes colaborativas.

Do lado do município propriamente dito, o poder local pode ser organizado em redor de quatro eixos principais ou, se quisermos, de quatro “tipos democráticos”:

– As relações verticais para cima (AR e AC), a democracia representativa;
– As relações verticais para baixo, cidadãos e grupos de interesses, a democracia participativa;
– As relações horizontais com os outros municípios, a democracia associativa convencional ou intermunicipal;
– As relações extra-municipais ou extra-territoriais, a democracia colaborativa.

Estas relações a quatro dimensões configuram uma nova ecologia política, institucional e sociológica do poder local do futuro.

Há, obviamente, uma autonomia relativa do município face a este sistema de coordenadas, mas o essencial da política municipal será determinado, em boa medida, por esta matriz de coordenadas.

Vejamos, esquematicamente, a contextualização destas “quatro democracias”:

– As relações verticais para cima (Administração regional e central): a democracia representativa
Reforma do Estado e revisão constitucional.
Regionalização e lei-quadro da descentralização político-administrativa.
Reformas parcelares e sectoriais da administração pública.

– As relações verticais para baixo (cidadãos e grupos de interesses): a democracia participativa
Uma nova lei eleitoral de listas abertas.
A democracia participativa, uma gestão organizada em conselhos locais.
A democracia digital, plataformas tecnológicas, redes e comunidades online.
A democracia direta, vários tipos de consulta directa.

– As relações horizontais com os municípios: a democracia associativa
O associativismo mais convencional intermunicipal.
O federalismo das autarquias de 2º grau.
As euro-cidades e as euro-regiões

– As relações extra-territoriais: as redes e a democracia colaborativa
As plataformas digitais e as redes sociais.
Os territórios-rede de geometria variável.
Os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT).

A partir do aprofundamento democrático deste conjunto de relações é possível imaginar um modelo de governança regional e local muito mais estruturado e complexo, em busca, sobretudo, de mais inteligência coletiva territorial.

O exemplo que se segue é um pequeno ensaio de aplicação à região e aos municípios do Algarve.

– Um exemplo de “modelo de governança territorial” para a região do Algarve:

Conselho Executivo regional (formado pelos diretores setoriais regionais);
Presidente do Conselho Executivo Regional equiparado a Secretário de Estado;
Estruturas de missão para as unidades territoriais do PROTAL;
Autarquia online para os serviços de rotina do município (guichet único);
Conselhos Locais Participativos para os serviços comuns ou comunitários;
Autarquia de 2º grau para o upgrading de certos serviços coletivos;
Redes e arranjos colaborativos para os territórios-rede de geometria variável.

III. O decálogo para a gestão do município do século XXI

Tudo o que já dissemos a este propósito contempla um município mais aberto, mais cosmopolita, mais conectado e mais colaborativo. O decálogo que se segue ilustra bem este novo paradigma da gestão municipal:

1. Um município mais comunitário e federalista, com uniões de freguesias, associações de municípios e comunidades intermunicipais, praticando a governação multiníveis em múltiplas formas e modalidades de rescaling;

2. Um município mais aberto e interativo em matéria de economia municipal, acertando com grupos de cidadãos uma nova crowd economy, isto é, práticas inovadoras de crowdsourcing, crowdfunding e crowdlearning;

3. Um município mais móvel e itinerante na prestação de serviços pessoais, inovando em matéria de serviços de mobilidade, transporte e bancos de tempo, tendo em vista a criação de uma genuína economia solidária no concelho;

4. Um município muito mais verde em matéria de economia dos 4R (reduzir, reciclar, reparar e reutilizar) e muito mais eficiente em matéria de recursos ociosos, criando uma “dinâmica economia colaborativa” no que diz respeito ao reaproveitamento destes recursos;

5. Um município muito mais virado para a economia criativa e cultural em tudo o que diz respeito à gestão de recursos intangíveis e simbólicos, isto é, uma verdadeira economia imaterial;

6. Um município muito mais polivalente, horizontal e interativo no que diz respeito à sua orgânica interna, que se traduzirá numa nova relação funcional “front-office versus back-office”, acompanhada de uma alteração substancial da estrutura dos seus colaboradores, isto é, do seu capital social;

7. Um município cada vez mais “peer to peer”, com menos hierarquia e mais heterarquia, um verdadeiro “par inter pares”, por exemplo, em matéria de parcerias público-privadas mais inteligentes territorialmente;

8. Um município menos fiscalista e mais contratualista no plano da engenharia financeira, por exemplo, com um funding muito mais diversificado e imaginativo junto dos grupos de interesse locais, regionais e nacionais;

9. Um município mais cristalino e transparente no que diz respeito à accountability municipal, isto é, com uma monitorização das políticas públicas muito mais interativa e em tempo real;

10. Um município com” via verde jovem” no domínio da economia digital, isto é, mais aberto e imaginativo para a sua população jovem, por via de diversas plataformas inteligentes desde simples espaços de coworking até estruturas de FabLab para a produção de protótipos industriais.

 

Nota Final

Como facilmente se observa, o município do século XXI deixa de ser um “espaço de stocks” para passar a ser um “espaço de fluxos”, uma espécie de plataforma móvel em permanente remontagem.

Por isso, o município do século XXI é uma estrutura de custos e geometria variáveis, orientada para tornar eficaz e efetiva a inteligência colectiva territorial, que será, doravante, a sua principal motivação e objetivo.

No mesmo sentido, assistiremos ao crescimento do federalismo autárquico para eventos, projectos e utilities de maior envergadura.

As relações exteriores serão, igualmente, um vetor fundamental da vida local e regional, nos planos artístico, desportivo e cultural.

O município do século XXI será, definitivamente, um ator cosmopolita.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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