Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXIII): Tópicos sobre a história recente do poder local algarvio

Retomo a crónica relativa à reforma do poder autárquico para a minha segunda reflexão sobre o tema. Hoje vou abordar […]

Retomo a crónica relativa à reforma do poder autárquico para a minha segunda reflexão sobre o tema. Hoje vou abordar alguns tópicos sobre a história recente do poder local algarvio.

Enquanto a emancipação da “sociedade política local” progride muito lentamente para lá da política autárquica, as grandes tendências pesadas que envolvem e marcam a evolução do poder autárquico continuam a gerar elevados custos de contexto, de transação e operação e avisam-nos que há “limites políticos” ao crescimento do poder municipal se, para tanto, não forem operadas reformas profundas no modus operandis da sociedade local.

 

I. As macrotendências que afetam o poder local

De uma forma geral e esquemática, existem macrotendências de longa duração que afetarão sempre a estruturação, o funcionamento e o desempenho do poder local, muito para lá do que é a administração da vida quotidiana municipal.

Eis muito sinteticamente algumas dessas macrotendências:

– Cada vez mais próximos do inverno demográfico: falamos de pirâmides demográficas invertidas, de concelhos demograficamente moribundos e de concelhos-lar sem futuro assegurado.

– Os danos crescentes provocados pelos riscos globais e sistémicos: falamos de alterações climáticas, de secas severas, de riscos totalmente aleatórios e imprevisíveis, de danos colaterais de grande monta e, agora, também, da irrupção dos chamados “cisnes negros”, acontecimentos imponderáveis que podem causar prejuízos incalculáveis às populações.

– A aceleração das dinâmicas socioeconómicas territoriais: com a globalização, falamos de ciclos económicos cada vez mais curtos, de uma compressão espaço-tempo que desencadeia choques assimétricos mais frequentes, de uma extrema volatilidade dos investimentos em busca de retornos de rendimento imediato e, por tudo isto, de mais concelhos no banco de urgência e cuidados intensivos.

– Poucos problemas locais se resolverão apenas no plano local: falamos de problemas para os quais a Câmara Municipal não tem atribuições, competências e meios apropriados, de problemas que solicitam a articulação de vários níveis ou escalas de governo e administração, portanto, de muita negociação e de muitos compassos de espera, durante os quais se perde oportunidade e pertinência, e, quantas vezes, a efetividade e economicidade da despesa pública realizada.

– A saturação do espaço público municipal: é um problema que, em parte, decorre do anterior, pois a população tem a perceção imediata de que há problemas insolúveis no estrito quadro municipal; criam-se, por esse facto, zonas de indiferença dos cidadãos, algumas zonas de opacidade e suspeição e uma retórica municipal que nem sempre valoriza, no melhor sentido, a qualidade do espaço público municipal.

– O esgotamento do modelo de desenvolvimento autárquico de 1ª geração: as autarquias cumpriram genericamente o primeiro ciclo de desenvolvimento local associado a infraestruturas e equipamentos de 1ª geração (bens públicos locais e necessidades sociais); este ciclo está associado a um modelo financeiro baseado em transferências e endividamento fortemente dependente do orçamento de Estado e do sistema bancário; como se comprova à evidência no caso português, estas transferências estão fortemente correlacionadas com os ciclos económicos conjunturais e com o investimento público que as regras orçamentais europeias consentem.

Depois do ciclo dos “bens públicos não-transacionáveis” é, agora, a vez de discutir, na era digital, o município interativo 2.0, a nova geração de bens comuns intermunicipais e o novo modelo de financiamento do desenvolvimento territorial.

 

II. Tópicos sobre a história recente do poder local algarvio

Estamos no Algarve, uma região paradoxal. Com apenas 430 mil habitantes, não é uma região-padrão europeia com 4 ou 5 milhões de habitantes, nem tão-pouco uma cidade média europeia compacta com 450 mil habitantes. É antes uma região-arquipélago, ou, se quisermos, uma região-cidade, em busca da sua própria personalidade.

Para apreciarmos melhor esta região paradoxal, vamos observar a sociedade algarvia em três períodos distintos: o passado recente (1974-2008), o presente próximo (2009-2014) e o presente futuro (2015-2020).

1. O passado recente (1974-2008)

As principais características do “modelo local algarvio” deste período

– A prioridade atribuída aos equipamentos e às infraestruturas;
– A preferência concedida ao setor imobiliário-turístico (a bolha da construção);
– Um conflito de interesses assumido com o uso do solo e o ordenamento;
– A acumulação de uma importante dívida bancária para alavancar este “modelo”;
– Uma dependência crescente do município das receitas imobiliárias;
– Uma dependência direta dos apoios provenientes dos fundos europeus;
– Uma tolerância conveniente face ao crescimento da economia informal.

As principais linhas de força do “modelo local algarvio” deste período

– A consagração e a celebração do poder autárquico;
– A municipalização do sistema político-administrativo regional;
– A formação da “constelação autárquica” dos interesses;
– A construção do “Estado-local”;
– O casamento de conveniência entre as administrações local e regional;
– A consolidação dos aparelhos locais dos partidos políticos;
– Uma sociedade civil “amolecida” pelo acesso aos prazeres materiais do consumo.

2. O presente próximo (2009 – 2014)

Um período atípico e “sob condição”

– Uma grande crise internacional em 2007/2008;
– Um país à beira da bancarrota em 2011;
– Um país sob resgate internacional e em liberdade condicional entre 2011-2014;
– Uma perda de 6% do PIB entre 2010 e 2014;
– Um ajustamento macroeconómico em colisão com as economias locais e regionais;
– A “desalavancagem” do crédito bancário e graves problemas de liquidez e insolvência:
– A contração da procura interna e externa e o desemprego elevado na região.

O fim de ciclo de um “modelo de crescimento” local-regional

– As novas palavras de ordem: ajustamento, racionalização, extinção, saneamento, reestruturação, rescisão;
– Os novos instrumentos de política, alguns exemplos: a lei dos compromissos, a extinção de uma parte importante do “Estado-Local”, a criação do PAEL (programa de apoio à economia local), a criação do FAM (fundo de apoio municipal), a publicação de uma nova lei sobre os municípios, o associativismo municipal e as comunidades intermunicipais, novos programas de requalificação e rescisão de funcionários;
– A forte quebra das receitas municipais revelam, em toda a sua extensão, a crise financeira do poder local e do modelo turístico-imobiliário.

As principais linhas de força deste período

– O regresso em força da centralização e do centralismo de Lisboa;
– A política regional usada como o “iô-iô” da política macroeconómica de austeridade;
– O agravamento da precariedade das condições de trabalho e o empobrecimento;
– As fragilidades do movimento associativo regional apesar de algumas respostas locais;
– A fraqueza do poder político regional neste período crucial para a sociedade algarvia.

3. O presente futuro (2015 – 2020)

As principais características do período até 2020

– Administrar de forma sensata a “bolha turística” no que diz respeito ao alojamento local,
– Administrar de forma sensata o equilíbrio entre construção e reabilitação,
– Administrar de forma sensata o processo de gentrificação dos centros históricos,
– Aproveitar o boom turístico para reequilibrar as finanças locais,
– Aproveitar o ciclo turístico e encontrar um modelo de financiamento da economia local,
– Aproveitar o novo ciclo e dar uma contribuição decisiva para a economia circular em todas as suas dimensões, a começar pelo uso do solo agrícola e a produção local;
– Aproveitar o novo ciclo e ir ao encontro dos mais jovens sob a forma de cidades inteligentes e redes inteligentes.

Administrar uma cidade-região sob a forma de uma região-piloto

– O Algarve é uma cidade-região, um híbrido, disperso e difuso com 430 mil habitantes,
– O Algarve precisa de um executivo e de uma administração regional,
– O Algarve precisa de um federalismo municipal do 2º grau para se robustecer,
– O Algarve precisa de um impulso político e cívico na direção da região-piloto;
– O Algarve precisa, por respeito e dignidade constitucional, de um projeto mobilizador para reconsiderar o seu futuro.

 

Nota Final

Falar sobre o futuro não é tarefa fácil, o que não quer dizer que não seja necessário e mesmo imprescindível.

E não é fácil, desde logo, porque cada um de nós faz uma diferente gestão de expectativas na forma como antecipa o futuro. E não é fácil, ainda, falar sobre o futuro porque a velocidade e a contração do espaço e do tempo reduziram o passado e o futuro às dimensões do presente, isto é, ao imediato e ao instantâneo.

A consequência é óbvia e conhecida. Estamos a sobrecarregar as tarefas da gestão quotidiana, pois tudo se torna urgente num contexto tão congestionado.

As administrações perdem clarividência e discernimento, os municípios correm o risco de se converter em instâncias de último recurso, seja na proteção civil ou ação social, seja no patrocínio ou na mediação de conflitos de todo o tipo.

Falar sobre o futuro tem, porém, uma enorme vantagem, a saber, muda a perspetiva e o ângulo de observação dos problemas, e, acima de tudo, debruça-se sobre a auto-estima regional e o futuro dos nossos concidadãos, filhos e netos. Reclassifica, pois, a nossa responsabilidade social e política.

Por isso mesmo, abrir o debate público sobre a região-piloto do Algarve é falar acerca de um território-projeto, de um território-desejado, é abrir o campo das possibilidades da sociedade política local, é refrescar o espaço público municipal e o poder autárquico, é reconsiderar o modo de funcionamento das várias instituições locais, é entender o real significado e alcance do paradigma das redes de cooperação e colaboração, é dar prioridade à itinerância e polivalência dos serviços pessoais ao cidadão mais desprotegido, é desmistificar uma comunicação institucional de pendor muitas vezes paternalista e moralista, é, finalmente, ousar ensaiar a região-piloto do Algarve em algumas áreas-problema, sem ficar à espera que seja decretado tal desiderato em jornal oficial.

Um simples ato de cidadania de acordo com a nossa inteligência coletiva.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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