Crónicas do Sudoeste Peninsular (XIX): A gestão sustentável dos espaços rurais

A Universidade do Algarve, em estreita colaboração com a Câmara Municipal de Alcoutim, ministra, neste ano letivo, um mestrado e-learning […]

A Universidade do Algarve, em estreita colaboração com a Câmara Municipal de Alcoutim, ministra, neste ano letivo, um mestrado e-learning intitulado “A gestão sustentável dos espaços rurais”, vocacionado para os problemas destes espaços e, em especial, os problemas do Nordeste Algarvio.

Na semana de 3 a 7 de Abril, teve lugar uma semana de campo in situ, que serviu para conhecer melhor o concelho e visitar alguns empreendimentos mais emblemáticos.

Agora que se fala tanto em áreas de baixa densidade e valorização do interior (o Conselho de Ministros acaba de aprovar o programa de coesão territorial para essas áreas), agora que o boom do turismo pode ser uma oportunidade para trazer ao Nordeste Algarvio uma nova geração de neorurais, vale a pena uma pequena incursão pelo universo do nosso mundo rural, pois “nem tudo o que parece é” quando se fala de gestão sustentável de espaços rurais.

Com efeito, os espaços rurais contêm muitos “sinais distintivos territoriais”, materiais e imateriais, e são, justamente, esses marcadores que vão sinalizar e perspectivar distintas versões de sustentabilidade, forte e fraca, do espaço rural.

I. Os processos de ruralização e a “capitalização do campo”

Não vale a pena ocultar o problema. Se deixarmos cair algum paternalismo e nostalgia e não confundirmos a realidade com os nossos desejos, verificaremos melhor o que está a acontecer com o campo português.

Com efeito, estão em curso distintos processos de ruralização que são, cada um a seu modo, outros tantos processos de privatização do espaço público rural e, portanto, fonte de muitos e novos conflitos de interesse no futuro próximo.

Estes processos têm uma característica comum, eles estão bastante capitalizados e inscrevem-se no movimento geral de globalização, não apenas capitalista mas também ecologista.

Eis os principais:

– O rentismo imobiliário;
– O conservacionismo radical globalizado (da WWF);
– A florestação industrial de terrenos agrícolas;
– A residencialização do espaço agrorrural;
– A energetização de recursos renováveis em espaço agrorrural;
– A turistificação das amenidades agrorrurais;
– A reagrarização intensiva e monocultural;
– A cinegetização dos recursos agroflorestais;
– A radicalização recreativa e desportiva do espaço agrorrural.

É por estes distintos processos de ruralização que passam, já hoje, as principais relações de poder e, portanto, uma boa parte do futuro do mundo rural.

Por exemplo, a vaga mais recente de turistificação terá seguramente um efeito de mancha sobre o interior do país e chegará inevitavelmente ao Nordeste Algarvio, é uma questão de tempo.

A este propósito, é bom lembrar que, para a maior parte destes processos de ruralização e capitalização, os recursos naturais são considerados “ativos reais e financeiros” que é necessário “espremer” num lapso curto de tempo para remunerar bem os acionistas e os capitais dos fundos de investimento.

E como fica a sustentabilidade do espaço rural nestes casos? Embora não haja consenso, a literatura fala-nos de “sustentabilidade fraca”, uma vez que o princípio geral da “mobilidade dos negócios”, neste caso, aumenta a descontinuação e a intermitência da sustentabilidade.

Na sua essência, é um problema de ordem tecnológica, que as “tecnologias de substituição” podem resolver no âmbito da agricultura de precisão, da denominada “teoria da modernização ecológica” ou, numa versão menos favorável, de um simples processo de green washing.

Todos estes processos de ruralização (e privatização do espaço público) estão, na sua maioria, baseados em mecanismos de financiamento e capitalização exteriores aos territórios e não têm qualquer semelhança com os modelos small is beautiful de “institucionalização do campo”, quase sempre baseados em fundos públicos de vocação localista e municipalista.

II. Os processos de “institucionalização do campo” do tipo small is beautiful

Depois da versão mais extrovertida e capitalizada, eis agora a versão mais introvertida e institucionalizada, quase sempre inscrita e justificada pelas correntes do desenvolvimento local e endógeno que podemos situar, historicamente, na criação e nas sucessivas versões do programa Leader e nos programas de desenvolvimento local apoiados pelos fundos europeus nas últimas décadas.

Estamos a falar de uma série muito variada de iniciativas e empreendimentos locais e rurais muito próxima dos modelos small is beautiful: agriculturas de subsistência e proximidade, agriculturas peri-urbanas e circuitos curtos, agricultura acompanhada pela comunidade, agricultura biológica, turismo rural, etc, quase todos integrados no chamado rural tradicional e quase todos, também, muito pouco capitalizados e, por isso, extremamente dependentes dos apoios públicos mobilizados pelas associações de desenvolvimento local e rural, elas, também, muito dependentes dos municípios respetivos.

E como fica a sustentabilidade do espaço rural nestes casos? Ao contrário da capitalização móvel e tecnológica anterior, trata-se neste caso de uma sustentabilidade fraca, mas muito mais monótona e artesanal, em que a proteção dos recursos naturais se confunde muitas vezes com a viabilidade do próprio quadro de vida familiar dos empreendedores envolvidos, pois estamos muitas vezes próximos do limiar da sobrevivência.

Este facto, porém, não evita que, em algumas explorações agrícolas, haja uma intensificação agroquímica evidente dos recursos naturais, uma vez que as opções tecnológicas são geralmente as mais conservadoras e convencionais.

Estas agriculturas de proximidade precisam de melhorar rapidamente a sua organização coletiva e reticular, sob pena de se aproximarem perigosamente do seu esgotamento.

Esta é, também, uma excelente oportunidade para a renovação da missão e do objeto das associações de desenvolvimento local e associações de municípios.

III. As agriculturas de rede e inovação e os seus sinais distintivos

O espaço rural é, cada vez menos, um espaço produtor e, cada vez mais, um espaço produzido. A sua base económica é cada vez mais móvel, no sentido em que é uma “economia de eventos” a determinar o passo e o ritmo da economia das pequenas localidades.

Estamos, portanto, numa situação transitória em que os valores específicos da ruralidade, mais tradicionais ou mais modernos, mais paroquiais ou mais cosmopolitas, são objeto de apropriação por atores muito diversos, que os usam para estratégias muito variadas.

Esta transição significa, umas vezes, verdadeira modernização agrária, outras vezes, turistificação vinícola, oleícola ou cinegética, outras vezes, ainda, simples elemento decorativo para happenings cosmopolitas, aproveitando as amenidades agroambientais e rurais que estão disponíveis.

Esta diversidade e pluralidade de contextos e pretextos do espaço rural é uma condição essencial para a emergência de agriculturas inovadoras de rede, que são capazes de integrar na sua gestão não apenas os sinais distintivos dos mercados de futuro, mas, também, os sinais distintivos territoriais, materiais e imateriais, que são a imagem de marca da sua região.

Nesta aceção, a inovação em rede, com esta dupla tipologia de sinais, é uma base muito mais ampla, compreensiva e duradoura para a gestão sustentável dos espaços rurais. Falamos, neste caso, de uma sustentabilidade forte, mas muito exigente na sua materialização.

No que diz respeito aos mercados de futuro, esses sinais estarão, certamente, na confluência de quatro grandes vectores emergentes: a agroecologia, a biodiversidade, os ecossistemas e as paisagens globais.

Eis os seus principais mercados: os produtos limpos (eco e bio), o sequestro de carbono, a água reciclada, a prestação de serviços ecossistémicos, os produtos denominados, as artes da paisagem, os alimentos funcionais, as adaptações produtivas devido às alterações climáticas, a microgeração energética, as medidas de rastreabilidade e segurança alimentar, a regeneração e a renaturalização dos recursos e dos ecossistemas das áreas ardidas, etc.

Importa acrescentar, em todos os casos, a mutação fundamental introduzida pela revolução digital e teremos uma gestão da sustentabilidade muito diferente da actual.

No que diz respeito aos sinais distintivos territoriais, as inovações serão “precipitadas”, estamos convencidos, pela vaga de turistificação que está em curso e que irá intensificar-se nos próximos tempos, mesmo nas chamadas zonas remotas do rural tradicional, onde “imperam” o silêncio e o espírito do lugar, dois “produtos” com procura crescente.

Desde os concursos de caça e pesca até aos festivais de verão, com passagem pelos percursos de natureza, a observação de endemismos diversos e os desportos radicais, tudo é possível de acontecer no cenário idílico do rural remoto algarvio.

Por isso, atrevo-me, desde já, a fazer uma advertência. Cuidado com o deslumbramento cosmopolita e a chegada dos neorurais de todas as origens e proveniências. Recomenda-se, por isso, bom senso e bom gosto, e tudo com conta, peso e medida.

Do que fica dito, retira-se que as agriculturas de rede têm um largo futuro à sua frente, mas, também, muitas dificuldades de percurso.

Vai ser necessário mais capital social e muita inteligência coletiva territorial para montar empreendimentos e explorações que sejam capazes de reticular os dois tipos de sinais distintivos. Mas esses serão os empreendimentos de futuro, mais bem sucedidos e mais visitados.

Nota Final

Vimos três abordagens “ao campo” e três versões diferenciadas de gestão sustentável de espaços rurais: uma versão capitalizada mais tecnológica, uma versão institucionalizada mais tradicional e uma versão articulada e reticular reagrupando vários sinais distintivos.

Como dissemos, vivemos hoje imersos no paradigma da mobilidade e das economias de rede e visitação. Neste paradigma, o campo não é apenas o lugar onde uma ocorrência produtiva acontece, é, também, uma predisposição e uma aspiração fundadas, elas próprias, na inspiração do ciclo da natureza.

Esta é a razão pela qual tantos “neorurais” alimentam uma cultura pro-campo, mesmo vivendo na cidade grande.

Nesta sequência, outro aspeto decisivo que será aportado pelos neorurais é o modo como vamos converter comunidades online em comunidades reais, que manifestem a necessidade e a vontade de regressar à economia real, ao chão firme e à montagem destas agriculturas de rede.

Nesse percurso e nessa aprendizagem, temos a oportunidade para rever algumas das categorias intelectuais e ideias dominantes que nos regeram nas últimas décadas, por exemplo: o estigma social ligado ao campo, a agroecologia sacrificada no altar do modelo químico-mecânico, o produtivismo e a monocultura superespecializada, as diversas dicotomias urbano-rural, fonte de inúmeros mal-entendidos, os equívocos do progresso identificado com o êxodo e a urbanização, a “morte” do capital social no rural profundo, o esquecimento do espaço rural por parte dos centros de investigação e instituições de ensino superior.

Em síntese final, temos maior mobilidade, diversidade e pluralidade dos modos de fazer agricultura e recursos naturais sujeitos a vários processos de ruralização: recursos naturais entendidos como ativos reais e financeiros que precisam gerar rendimentos a curto prazo, recursos naturais que precisam de ser preservados para fazer rodar as pequenas agriculturas de subsistência e proximidade, finalmente, recursos naturais que precisam de ser valorizados pela economia circular para poderem funcionar nos mercados de futuro e serem sinais distintivos nos seus territórios de origem no âmbito de economias de rede e visitação.
De resto, pela presente vaga de turistificação a que assistimos passarão, mais uma vez, todos os equívocos do nosso mundo rural.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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