Crónicas do Sudoeste Peninsular (XVII): A Dieta Mediterrânica e a valorização da economia local

Voltamos ao tema da dieta mediterrânica para abordar a valorização da economia local e, em particular, o rural tradicional algarvio. […]

Voltamos ao tema da dieta mediterrânica para abordar a valorização da economia local e, em particular, o rural tradicional algarvio.

A título de exemplo, pensemos na cadeia de valor da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, sempre numa perspetiva de valorização das economias locais e dos seus ecossistemas mais sensíveis, lá onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico preferido (quem diz cabra diz mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradicional de sequeiro, citrinos, flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.).
I. A formação da cadeia de valor da cabra algarvia

Vejamos, num plano mais operacional, e em primeira aproximação, como se pode fazer a formação da cadeia de valor da cabra algarvia:
– Em primeiro lugar, trata-se de reagrupar os produtores da raça autóctone da cabra algarvia, tendo em vista apurar e valorizar a biodiversidade local da espécie e do seu nicho ecológico;

– Em segundo lugar, trata-se de organizar a assistência técnica, associativa e pública, nessa linha de abordagem mais agroecológica e ecossistémica;

– Em terceiro lugar, trata-se de rejuvenescer o capital social envolvido, seja no plano familiar dos produtores, seja convidando “novas entradas” para o agrupamento;

– Em quarto lugar, trata-se de melhorar o processo de produção, de alargar as funções da cadeia de valor e de acrescentar as suas “internalidades ou circularidades” (economia circular) tendo em vista reduzir os seus custos de transacção internos: raça, pastagem, biodiversidade, limpeza de matos, compostagem, etc.;

– Em quinto lugar, trata-se de diversificar a “linha de produtos finais” da cabra algarvia e de diversificar os mercados-alvo por via de uma comercialização e marketing mais inteligentes;

– Finalmente, trata-se de capitalizar a fileira de produção e de articular a cadeia de valor da cabra algarvia com a exploração florestal das ZIF, acrescentando, por essa via, a massa, o músculo e o sistema nervoso deste sistema produtivo local subregional.

 

II. Os princípios que orientam o sistema produtivo local

Esta metodologia para a verticalização da fileira da cabra algarvia só será inteiramente bem-sucedida se, ao mesmo tempo, tivermos em mãos um projeto de território-rede em construção, inspirado nos princípios que sustentam a filosofia da dieta mediterrânica.

Esta filosofia contempla as seguintes áreas de trabalho:

– O alargamento das áreas da agroecologia e da agricultura biológica;

– O alargamento das atividades criativas e culturais, desde as artes culinária e gastronómica, ao artesanato tradicional, os materiais locais e as oficinas de artes e ofícios;

– A consideração das artes da paisagem e da terra associadas ao turismo de natureza;

– O desenvolvimento dos produtos e serviços turísticos nas tipologias do turismo de saúde e bem-estar para a sociedade sénior;

– O desenvolvimento das atividades ligadas à economia verde e economia circular e as artes e práticas pedagógicas dos 4R, (redução, reciclagem, reparação e reutilização);

– A promoção das artes do lazer e do recreio, dos espaços pedagógicos, lúdicos e terapêuticos, por exemplo, para a sociedade sénior, onde se incluem os campos de férias e as residências seniores;

– O desenvolvimento das artes multimédia e performativas e a criação de residências artísticas e culturais, assim como os eventos ligados à história local, a literatura oral, a poesia, as paisagens literárias, etc..

Todas estas atividades podem e devem ser objeto de uma “convenção territorial” que passará a ser a “lei fundamental” da construção social do futuro território-rede. Uma comissão promotora pode ser o elemento de instigação desse projeto de construção.

 

 

III. Configurar uma linha de “produtos e serviços estruturados”

A verticalização de uma atividade económica ao longo de uma fileira ou cadeia de valor deve ser cruzada e complementada com uma rede de atividades reticuladas horizontalmente, de tal modo que, destes cruzamentos e desta malha, possamos derivar uma nova inteligência territorial e, a partir dela, desenhar um novo cabaz de “produtos e serviços estruturados” que possamos identificar com uma nova imagem mais contemporânea e cosmopolita da região.

Estamos a falar de uma malha e de uma capilaridade mais densas, onde a composição de atividades económicas tradicionais se cruze com as atividades criativas e culturais e a visitação turística como elo de ligação de todas elas.

A título ilustrativo, vejamos como esta malha mais apertada e esta capilaridade mais densa poderiam ser organizadas numa região como o Algarve e numa sub-região como o rural tradicional algarvio.

Enumeremos as artes tradicionais e pensemos no que poderia ser realizado com algumas pequenas inovações introduzidas nestas atividades, de tal modo que, a partir delas, se pudesse estruturar e construir um território-rede e uma economia de rede e visitação turística:

1. As artes do pastoreio da cabra algarvia;
2. As artes da rouparia/queijaria tradicional algarvia;
3. As artes da tirada da cortiça;
4. As artes do varejo e da apanha da azeitona;
5. As artes do varejo e da apanha da alfarroba e da amêndoa;
6. As artes da apicultura e da melaria e a transumância das abelhas;
7. As artes da pisa a pé das uvas;
8. As artes da destilação do medronho;
9. As artes da apanha do figo da índia;
10. As artes da apanha dos produtos micológicos;
11. As artes associadas à poda e ao enxerto;
12. As artes associadas à cosmética tradicional;
13. As artes associadas às ervas aromáticas;
14. As artes associadas às ervas medicinais;
15. As artes da cestaria e da olaria;
16. As artes associadas às flores comestíveis;
17. As artes associadas à pesca artesanal;
18. As artes associadas à caça e à cinegética;
19. As artes da confeitaria e doçaria tradicionais;
20. As artes associadas à culinária tradicional;

Imaginemos, agora, o mapeamento destas atividades no território-rede em construção e a diversidade de “produtos e serviços estruturados” que seria possível realizar a partir da combinação e cruzamento de todas estas atividades.

A título de exemplo, apontamos algumas inovações em matéria de design de produto, obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de produção e as fileiras horizontais da visitação e do consumo, aqui designadas por nós sob a forma de “um dia em”:

– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho, conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

– Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugadas com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

– Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

– Um dia na Ria Formosa: a observação de peixes e aves na Ria Formosa, os percursos de natureza pela ria, a gastronomia da ria, sessões sobre a natureza e a vida selvagem da ria e atividades culturais e recreativas a pretexto da ria;

– Um dia na Rota da Cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite e o olivoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.

Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos e espetáculos noturnos de fados, de teatro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc..

 

 

Nota Final

O exemplo da linha de artesanato “TASA” (técnicas ancestrais, soluções atuais) é uma boa ilustração deste campo imenso de possibilidades, que combina matérias-primas locais e tecnologias artesanais com soluções de design e comunicação atuais, que revolucionam o marketing comercial e territorial, devolvendo aos territórios e aos artistas locais uma relevância que eles não tinham até aí.

A linha de produtos ligados à cortiça, mais artesanais ou mais artísticos, e à Rota da Cortiça é outro excelente exemplo de enraizamento territorial.

Se pensarmos nas múltiplas associações virtuosas – técnicas, tecnológicas e culturais – entre a produção agrícola, a engenharia alimentar, a logística da distribuição, o marketing territorial, o design e a comunicação, as artes e a cultura, teremos um campo imenso de possibilidades para os “produtos e serviços estruturados” em redor da cabra algarvia, frutos silvestres, mel, medronho, cogumelos, ervas aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, etc, para já não falar do universo das “sementes perdidas”, sobretudo na área hortofrutícola, um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à espreita de uma oportunidade.

Estou a falar de manifestações de inteligência coletiva territorial que estão perfeitamente ao nosso alcance. Depois não se queixem.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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