O Triunfo dos Patos

Em Outubro de 2012, assinei, neste espaço, um artigo intitulado RENdição, em que escrevi isto: “Em Portugal, só o vinho […]

Em Outubro de 2012, assinei, neste espaço, um artigo intitulado RENdição, em que escrevi isto: “Em Portugal, só o vinho se reserva. Tudo o resto é relativo. Em Portugal, nunca há tempo para pensar, para analisar, para reservar. É tudo de consumo imediato. E o resultado é visível: o estado catastrófico a que o Estado chegou”.

Escrevi-o a propósito da então anunciada intenção de rever (em baixa, sempre em baixa) a Reserva Ecológica Nacional (REN).

Pouco mais de quatro anos volvidos desde então, a catástrofe materializa-se, conforme o comprova o recente anúncio da nova delimitação da REN nos concelhos de Alcácer do Sal e Grândola, feita a pedido das respectivas autarquias, conforme os seus interesses de “desenvolvimento”, leia-se, especulação imobiliária e turismo.

De borracha em punho, os edis apagaram então alegre e orgulhosamente do mapa tudo o que não dava jeito, excepto algumas áreas assim mais óbvias, como leitos e margens dos cursos de água e algumas faixas da zona litoral, porque há sempre uma dose de aparências civilizadas que importa manter.

Onde é que nós já vimos isto, aqui há uns anos? Fica uma dica: num concelho começado por A, terminado em m, e com lcouti pelo meio…

Estavam essas áreas de REN originalmente bem delimitadas, e fariam todas elas sentido? Não!

É certo e assumido que a delimitação da REN (à semelhança de outras figuras de ordenamento em Portugal) foi mal conduzida e ainda pior gerida, principalmente a nível municipal, por falta de recursos, vocação e de abrangência de visão, a par de uma gritante falta de acompanhamento proactivo por parte das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional. Não é, portanto, o facto de se reduzirem (ou aumentarem) as áreas afectas à REN o que é preocupante.

É a falta de critério – até ao momento, não é conhecido o que sustenta os dois casos em apreço – e de uma visão integrada e coerente a nível intermunicipal, regional e nacional, porque estamos a falar de sistemas de continuidade, que não conhecem limites administrativos.

Entre corrigir de forma equilibrada – o que será sempre de exigir – e o retalhar a gosto vai a distância que separa a gestão da rebaldaria.

Esta autonomização do poder decisório das autarquias relativamente à REN faz parte de um PNFEC (Processo de Neo-Feudalismo Em Curso), que consiste na municipalização de tudo e mais alguma coisa, fragmentando estratégias que deviam ser nacionais.

Se tal retalhamento do País pode ter as suas vantagens em determinadas áreas – nas quais a esfera de decisão deve, até por definição, ser local – noutras, como a do ordenamento do território, é um passo determinado para o abismo. No caso da REN, estamos a falar da Fossa das Marianas.

Esta figura de ordenamento do território pretende, na sua concepção, salvaguardar a estrutura vascular (sim, como no corpo humano) biofísica das nossas paisagens, ou seja, é o garante de que a exploração dos recursos e a utilização da paisagem se processa sem que ocorra a degradação das condições de que dependem a estabilidade e fertilidade das regiões, bem como a permanência de muitos dos seus valores económicos, sociais e culturais.

Interrompendo-se ou interferindo-se com o funcionamento elementar e a continuidade dos ciclos fundamentais da paisagem, geram-se factores de instabilidade e degradação ambiental, criando ameaças reais à integridade de bens e, fundamentalmente, pessoas. Não foi à toa que se entendeu como de interesse público, imediato, concreto e de âmbito nacional.

Tardamos, embora nos consideremos em plena Era da Informação, em entender que a preservação do “ambiente” só faz sentido numa perspectiva: a da qualidade de vida e segurança das pessoas. Ao “ambiente”, em sentido lato, são indiferentes tropelias humanas como a poluição ou a ocupação de áreas biofisicamente sensíveis. Este planeta já foi uma bola de fogo incandescente, na qual se gerou vida, precisamente aquela que hoje arriscamos comprometer.

Entretanto passaram por cá uns lagartos grandes, e muita outra bicheza, e sempre houve capacidade dos sistemas naturais se reinventarem. Portanto, sobreviver-nos-á sempre, pelo menos até à extinção do nosso Sol.

Este primado da estupidez em que vivemos, ou antes, continuamos a viver, só é mau para nós e para os que a nós se seguem. Pior, é uma estupidez de pateta alegre, revestida dos mesmos tiques “progressistas” que originaram as imbecilidades paisagísticas dos anos 80 e 90.

Estamos, portanto, a assistir ao início de uma tremenda onda que vai varrer Portugal de Norte a Sul, e nós no Algarve somos dos maiores contribuintes para tal peditório, não apenas com todos os atropelos do passado, mas também com os mais recentes, de legitimação da ocupação ilegal da REN das Ilhas-Barreira da Ria Formosa.

Citando novamente o que escrevi em 2012, “o desconforto gerado pelo impedimento de betonar e asfaltar selvaticamente em quem banca toda esta estrutura ruinosa é incontornável. Patos-bravos, o sistema bancário que vive destes, o sistema político que é alimentado à mão pelos dois anteriores, todos olham de lado para a REN”.

Pois bem, ido o bicho, vai-se a peçonha, e poucos autarcas vão querer ficar fora desta festa.

Abutres e hienas estão portanto em alta, à beira do banquete definitivo que é a carcaça do ordenamento do território.

Ao orwelliano “Triunfo dos Porcos”, soma-se o tuga Triunfo dos Patos.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

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