Crónica de um furo anunciado

Muitos recordarão, até porque foi recentemente reeditada, a Caixa de Furos de Chocolate da Regina, alucinante jogo de sorte – […]

Muitos recordarão, até porque foi recentemente reeditada, a Caixa de Furos de Chocolate da Regina, alucinante jogo de sorte – o prémio estava sempre garantido – em que se escarafunchava um recipiente de cartão, que a cada perfuração dava acesso a um chocolate.

Um doce vício, portanto.

Embalado por tal revivalismo, o Governo decidiu fazer o mesmo, mas com o Algarve. Vai daí autorizou um furo de prospecção tendo em vista a potencial exploração de hidrocarbonetos ao largo de Aljezur, a cerca de 50 quilómetros da costa.

Isto tem estado a gerar alguma revolta, mas ninguém pode, em consciência, surpreender-se por aí além, já que estamos apenas perante a confirmação de algo que já se adivinhava.

Aquando do anúncio do cancelamento do contrato de prospecção e exploração de hidrocarbonetos no Algarve entre o Estado Português e a Portfuel, a par do desencadear do processo de resolução do contrato com o consórcio Repsol/Partex, foi seguido um atalho – aspectos burocráticos – e não uma via de inequívoca afirmação política por parte do Governo ou da Assembleia da República, no sentido de recusar taxativamente qualquer modelo energético e económico assente na exploração de hidrocarbonetos, não apenas para esta região, mas para todo o País.

Foi, portanto, uma vitória de secretaria, ainda que devidamente decorada com arreganhada tacha e frases-feitas retiradas do manual de instruções do politicamente correcto, quando deveria ter sido um derrube por KO. Os sorrisos de Judas desde logo suscitaram preocupação, pois um cata-vento orienta-se conforme sopra o vento…

Eis-nos então confrontados com uma fustigante rabanada de vento, que orientou os nossos decisores para a autorização deste furo, a cargo da Eni e da Galp. Dizem-nos que estão apenas a cumprir contratos, mas num tempo novo em que tanto compromisso já foi rasgado em nome de convicções e princípios políticos, não deixa de ser eloquente o vazio de convicções existente a este respeito.

É certo que vão dizendo que não estão inibidos de rescindir contratos (mas também não parecem muito motivados, mesmo com fundamentos legais para o fazer), que “há todas as condições para parar” (mas não o fazem), etc., etc., etc..

O mais grave disto é o banho-maria em que nos mergulham, mais do que as convicções. Este Governo e a maioria que o suporta aparentam partilhar com a anterior legislatura a visão de um Portugal petrolífero e/ou gaseificado, não o assumindo apenas para não se aprisionar num poço, mas de hipocrisia, face ao discurso popularucho que foi adoptando para entreter as massas.

Com ideias discordantes vive-se bem, pois cada qual tem as suas convicções, visões e argumentos, que depois se esgrimem no campo da discussão e debate. Mas, se assim for, importa que se assumam em definitivo, para que possamos conhecer todos os adversários e enfrentá-los frente-a-frente.

No entretanto, e enquanto subsiste a dúvida relativamente à pele de lobo ou cordeiro do Governo, fica a certeza de que fazer voz grossa ao regional e caseirinho Sousa Cintra é uma coisa, ir à luta com os meninos grandes já é outra bem diferente.

Certo é também que, mesmo quando os cães ladram o suficiente para a caravana não apenas passar, apenas a obrigam a um mero desvio. Neste caso, talvez mais um ressalto, das suas maquinais rodas a passar por cima da expressão da vontade (informada e fundamentada) dos cidadãos.

Mas depois querem distrair-nos com Almaraz e os malvados dos espanhóis, convencendo-nos que é apenas para lá da fronteira que mora quem não nos quer bem…

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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