Crónicas do Sudoeste Peninsular (II): Brexit, Trump, TTIP – O futuro das relações transatlânticas e peninsulares

Até agora, o Atlântico era um oceano pacífico. Em 2016, porém, eclode uma espécie de tempestade perfeita. Quando nada, ou […]

António CovasAté agora, o Atlântico era um oceano pacífico. Em 2016, porém, eclode uma espécie de tempestade perfeita. Quando nada, ou muito pouco, fazia prever, o Reino Unido vota via referendo pela saída da União Europeia, o chamado Brexit.

Nos EUA, quando nada fazia prever, o candidato republicano, o outsider Donald Trump vence a candidata democrata, a insider Hillary Clinton.

Agora, teme-se uma vaga de protecionismo comercial com a provável suspensão da assinatura final do tratado transatlântico de comércio e investimento (TTIP) entre os EUA e a União Europeia e mesmo a revisão do tratado transpacífico (TTP) assinado com 11 países do sudeste asiático e receia-se um recuo nos deveres consagrados pelo Acordo de Paris sobre alterações climáticas.

Quer dizer, adivinham-se e avizinham-se ondas alterosas no pacífico Oceano Atlântico, sobretudo se o radicalismo populista europeu também fizer ganho de causa.

O estado da arte da política

Em Dezembro de 2016, realiza-se um referendo constitucional em Itália para alterar o sistema político. O primeiro-ministro Renzi joga aqui o seu futuro político imediato pois tanto o partido de extrema direita Liga Norte como o movimento 5 Estrelas apelaram aos seus eleitores para vetarem estas propostas.

Ainda em Dezembro, a Áustria repete as eleições presidenciais havendo uma probabilidade elevada de o candidato do partido da liberdade Norbert Hofer ser eleito presidente. Em 2017, no mês de Março, realizam-se eleições legislativas na Holanda com uma alta probabilidade de o partido de extrema direita de Geert Wilders influenciar a formação final do executivo holandês.

Em Abril, teremos eleições presidenciais em França com a Frente Nacional e Marine Le Pen bem posicionadas para a segunda volta das eleições. Finalmente, em Agosto ou Setembro, a Alemanha terá eleições legislativas não sendo ainda seguro a candidatura de Angela Merkel a novo mandato.

Certa é a ascensão do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, se se repetirem os bons resultados das últimas eleições regionais.

Dito isto, veja-se o estado da arte em matéria de política europeia para os próximos tempos: a norte, Putin e a Rússia e a tentativa de regressar à política das áreas de influência, a leste, o Grande Médio Oriente a ferro e fogo e a nova política turca autoritária de Erdogan, a sul, os estados falhados do Mediterrâneo e a crise dos refugiados e, agora, para rematar esta “tragédia dos comuns” na fachada atlântica ocidental, temos o Brexit, a eleição de Donald Trump e a suspensão provável dos grandes tratados de comércio livre, de consequências imprevisíveis para a economia internacional.

Chegados aqui, a pergunta mais pertinente é esta: de que modo o Brexit, a nova presidência americana e a eventual suspensão dos tratados de comércio livre (TTP e TTIP) poderão afetar as relações transatlânticas e, indiretamente, a relação peninsular entre Portugal e Espanha?

A primeira constatação é imediata: a União Europeia não tem política externa de desenvolvimento, segurança e defesa para uma agenda tão sobrecarregada, e tanto mais quanto o Reino Unido e os EUA optarem por uma “nova política de contenção” transatlântica mais distante e menos empenhada, se quisermos, por uma “política transatlântica low cost, de baixa intensidade geopolítica e geoestratégica”.

Esta contenção de baixo custo e baixa intensidade tem uma consequência imediata, a saber, o reaparecimento de alguma animosidade regional ou mesmo de alguns conflitos regionais entre parceiros ou vizinhos desavindos. A relação triangular entre o Reino Unido, a Espanha e Portugal pode ilustrar esta situação.

Fora da União Europeia, o Reino Unido pode provocar algumas fissuras na política ibérica por causa do regionalismo separatista, por causa de Gibraltar ou por causa de alguma discriminação positiva face a Portugal e negativa face a Espanha. Esta dupla atitude pode causar mal-estar nas relações peninsulares.

O mesmo se diga em relação os Açores e ao futuro da base das Lajes no que diz respeito às nossas opções: se a contenção americana implicar uma retirada ou um longo compasso de espera em relação aos Açores, qualquer outra opção geoestratégica pode envolver uma reação intempestiva por parte do antigo parceiro.

A contenção americana em relação à NATO pode ter efeitos similares, não apenas por fazer apelo a uma maior participação financeira dos parceiros mas, também, por implicar uma reconfiguração logística do sistema operacional e da geografia das bases militares.

Mais uma vez, esta implicação geoestratégica e militar tem alguma delicadeza no que diz respeito às relações peninsulares e tanto mais quanto a NATO for obrigada a acorrer a conflitos graves em outras latitudes mais a norte e a leste.

Quer dizer, é elevado o risco de uma desvalorização do fator euro-atlântico e consequentemente do sudoeste peninsular face a uma ameaça com origem em outro ponto mais crítico da fronteira europeia. Esta desvalorização não deixará de perturbar a relação peninsular.

Mas é no plano comercial e financeiro que os equívocos podem surgir com mais gravidade e maior impacto nas relações peninsulares. O tratado transatlântico de comércio e investimento (TTIP) tem na sua base um acordo de parceria entre a União Europeia e os Estados Unidos.

Os objetivos deste acordo de comércio entre as duas margens do Atlântico são bem conhecidos: acesso livre ao mercado pela redução de barreiras e custos alfandegários, a harmonização de normas internacionais em matéria de ambiente, saúde, segurança do trabalho, a convergência das práticas regulatórias, a resolução extrajudicial dos conflitos de concorrência, entre outros.

Neste modelo transcontinental, os EUA e as suas empresas multinacionais seriam o centro do mundo pois pelo continente americano e, em especial, pelo canal do Panamá passariam, doravante, os grandes movimentos comerciais e financeiros do transpacífico (TTP) e do transatlântico (TTIP).

Nesta nova geografia política e económica mundial a pequena península euroasiática da Europa seria um território de destino e provavelmente um ator político de 2ª ordem e a Península Ibérica uma “simples plataforma logística” de acesso ao mercado europeu. Sobre o continente europeu desembocaria uma gigantesca vaga “TTP e TTIP” de fluxos de comércio, pessoas e investimentos, uma espécie de “segunda vaga da globalização” com consequências inimagináveis sobre o tecido económico e empresarial da sociedade europeia.

 

A macrorregião ibérica e as novas relações peninsulares

Face a este colossal “modelo TTP +TTIP” de comércio e investimento protagonizado por poderosas empresas multinacionais, qual seria a nossa “especial circunstância territorial” e o que se poderia esperar do nosso “modelo de desenvolvimento territorial”?

Portugal é, como sabemos, um país bastante endividado, com uma dívida pública, uma dívida privada e uma dívida externa muito elevadas. Tem uma carga fiscal igualmente muito elevada e um sistema bancário em situação muito vulnerável. Quer dizer, o país não tem capitais próprios para fazer, de forma independente, o investimento de modernização e as reformas estruturais que se impõem para iniciar um novo ciclo de crescimento económico sustentado.

Neste contexto, é muito tentador adotar um modelo exógeno de crescimento que lhe “promete” capital e investimento para as grandes infraestruturas aeroportuárias, portuárias e ferroviárias de ligação à Europa através da Península Ibérica e que podem ser outras tantas plataformas logísticas e empresariais para o grande transbordo transoceânico e transcontinental.

Neste quadro de novos relacionamentos, tudo levaria a crer que seríamos não apenas beneficiados pelos financiamentos das autoridades europeias, mas, também, por muitos investimentos americanos e asiáticos, isto é, investimento, capital e financiamento não faltariam.

Se este “modelo TTP + TTIP” se concretizar, e estou convencido de que, pelo menos parcialmente, isso acontecerá, há um corolário lógico que é necessário equacionar. Falo da geopolítica do “modelo TTIP” no quadro europeu e na Península Ibérica. Não tenho muitas dúvidas acerca da preferência europeia pela formação de macrorregiões europeias e o TTIP seria um excelente pretexto para Bruxelas relançar a sua política regional e de coesão nesta base territorial mais alargada.

Assim sendo, ficaríamos entrincheirados, como país, entre o investimento multinacional, americano e asiático, por um lado, e o investimento espanhol e europeu, por outro, o que conduziria, muito provavelmente, à liderança espanhola da macrorregião peninsular no quadro de uma política de macrorregiões europeias.

No limite, não nos custa supor que a integração política na Península Ibérica poderia avançar, por exemplo, no sentido de alguma espécie de federalismo ibérico acompanhando, do mesmo passo, a evolução da União Europeia em direção a uma Europa das Regiões de natureza federal.

No contexto acabado de descrever, teríamos muito provavelmente duas gerações de políticas do território. A primeira estaria relacionada com um pacote de “investimentos de rede” à escala ibérica e europeia com volumosos financiamentos multinacionais para a beneficiação e construção de grandes equipamentos aeroportuários, ferroviários e logísticos e respetivas plataformas empresariais, na senda de uma mesoeconomia europeia que poderíamos identificar com uma futura “Europa das Regiões”.

A segunda estaria relacionada com a coesão territorial propriamente dita e seria uma espécie de “política de mitigação de danos” visando corrigir os desequilíbrios territoriais provocados pelos impactos da primeira geração. No caso português, tudo leva a crer, os efeitos mais gravosos sobre a “Marca Portugal” incidiriam em três subsistemas de articulação do sistema económico da macrorregião peninsular: o subsistema “plataforma logístico-empresarial”, o subsistema “destino turístico” e o subsistema “Portugal-mar ou PortuMar”.

Não obstante, se o país for capaz de prevenir e acautelar os efeitos cruzados mais gravosos, talvez Portugal possa beneficiar de um período longo de prosperidade económica e social nas próximas décadas. Mas isto é apenas uma hipótese teórica totalmente em aberto.

 

As reservas britânica e americana e as relações transatlânticas

O cenário mais ou menos benigno que traçámos anteriormente precisa de um “Oceano Atlântico pacificado”. Ora, é sobre este oceano pacificado que pairam algumas nuvens sombrias: a reserva Brexit, a reserva Trump e a reserva TTIP, já para não falar das reservas a propósito do tratado de Paris sobre as alterações climáticas.

No conjunto, estas reservas mostram que os dois países de matriz anglo-saxónica desejam recuperar uma parcela importante de soberania que tinham transferido para instituições internacionais e praticando, se possível, uma economia de meios que lhes permita aumentar a sua margem de liberdade em outras direções. Essa economia de meios é válida para a ONU, a NATO e a UE mas, também, para muitas parcerias regionais e tratados de comércio e cooperação assinados com diversas regiões do mundo.

Se em relação ao Brexit se pode, apesar de tudo, falar de risco moderado, já em relação ao “programa de contenção” de Trump, que não conhecemos, tudo pode acontecer, em especial a troca de prioridades políticas e uma reafectação de meios da política externa para a política interna. Esta reafectação e o recuo geoestratégico que ela significa podem traduzir-se num profundo mal-estar face aos aliados tradicionais dos EUA e, portanto, num diálogo de surdos no interior das grandes instituições internacionais, colocando, assim, em risco a ordem liberal do mundo ocidental do pós-guerra.

Por tudo o que fica dito, não é demais lembrar a importância fundamental que as relações transatlânticas têm para Portugal, tanto mais quanto há um “país oculto chamado PortuMar” que clama por nós desde tempos imemoriais. Nesse “país outro” inscreve-se o alargamento da nossa plataforma continental, o país arquipélago e ultramarino, o ordenamento das riquezas do mar português, o relançamento da CPLP e, finalmente, a torrente de comércio e investimento que atravessará o Pacifico e o Atlântico. É o regresso em força da geopolítica e da geoestratégica com uma expressão transcendente na frente peninsular.

 

 Os “problemas internos” na frente peninsular

Chegados aqui, com tantas reservas nada nos liberta da contingência, mas todas as possibilidades continuam em aberto, seja a “plataforma TTIP”, a “plataforma CPLP”, a “plataforma ibero-mediterrânica” ou a “plataforma ibero-americana”. Enquanto global-player nestas grandes plataformas, onde a geogovernança portuguesa readquire todo o seu significado, a grande incógnita é a de saber se Portugal “se conseguirá libertar” da Espanha para realizar esta aventura.

E se não conseguir, qual o refluxo dessa parceria sobre a integração interna da própria economia ibérica? Basta, para isso, referir o nervosismo de alguma geopolítica peninsular mais recente relacionada com a crescente instabilidade governativa, o separatismo de algumas regiões históricas e a eventual “espanholização” de alguns sectores com maior destaque para o controlo de uma parte significativa do sistema bancário peninsular.

No terreno geoestratégico em que me coloco aqui, parece indubitável que o triângulo Espanha-Portugal-Brasil se constituirá, a médio e longo prazo, num terreno muito promissor se, entretanto, não for desencadeada, pelas piores razões, uma nova questão ibérica, traduzida, por exemplo, num desequilíbrio gritante das trocas comerciais e no correlativo refluxo orgânico da economia espanhola sobre a economia portuguesa, exacerbando radicalismos e regionalismos de ocasião.

Seja como for, Portugal não tem capacidade para, sozinho, ser um global-player no espaço transatlântico e ibero-americano. A este facto, acresce a eventualidade de a Espanha, ela própria, se desinteressar do espaço ibérico, dada a exiguidade do nosso próprio mercado, para se aproximar dos países grandes da União Europeia e realizar nesse espaço operações de maior prestígio, de upgrading da sua economia, que lhe trarão benefícios acrescentados superiores aos da parceria ibérica.

Não é demais recordar que Portugal é para Espanha, essencialmente, uma extensão comercial e, muito raramente, uma hipótese de localização produtiva. Neste contexto, o mais provável é, portanto, que o pensamento geoestratégico dê lugar ao mundo dos negócios, que não é, propriamente, o mundo das decisões patrióticas, dos sectores estruturantes ou dos centros de decisão nacionais.

 

Nota Final

Seja qual for o cenário, a doutrina sobre a geogovernança portuguesa deveria privilegiar todas as oportunidades e todos os investimentos que requalificam o seu território e, no quadro das redes transeuropeias, defender o modelo policêntrico de ordenamento do território europeu.

Com efeito, tratando-se de um território fronteiriço da União Europeia, não é politicamente aceitável, no mínimo, que essa fronteira, apontada ao mar alto e na confluência do corredor transatlântico, seja uma estreita porta de entrada ou de saída, servida por infraestruturas e equipamentos sem profundidade logística e económica.

De resto, é toda a península ibérica que vê requalificado o seu território interior e aumentada a fluidez dos seus corredores de penetração e, logo, a intensidade do tráfego de pessoas e mercadorias. Daqui decorre a importância da multi-escalaridade e da governação multi-níveis hoje em dia: a governação ao quotidiano na Euro-cidade e na Euro-região, a governação geoestratégica nos Estados nacionais e na Macrorregião Peninsular.

Quanto ao resto, quem sabe se um cisne negro não tornará tudo mais fácil. Por um lado, os tribunais britânicos querem que seja o parlamento nacional a autorizar o governo a acionar o artigo 50º dos tratados europeus para a abertura das negociações oficiais com a União Europeia. E se o parlamento britânico não consentir essa autorização ou definir estritamente os termos e os limites desse mandato?

Por outro lado, na eleição americana, apesar do resultado eleitoral, falta a investidura pelo colégio eleitoral; e se o colégio dos grandes delegados decidisse não apontar Donald Trump para o cargo de presidente?

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

Comentários

pub