Quantas línguas há no português?

Já se sabe, o português é uma língua muito traiçoeira e esta não é uma crónica sobre o acordo ortográfico. […]

conceição-branco1Já se sabe, o português é uma língua muito traiçoeira e esta não é uma crónica sobre o acordo ortográfico.

Também não é um truque para mais adiante falar da Grécia, assunto sobre o qual só quero dizer que provavelmente desde o Abril em Portugal dos anos 70, a Europa não debatia tão acirrada e tão ideologicamente sobre esquerda e direita e as diferentes perspetivas políticas. E por hoje é tudo, quanto a esta matéria.

A estória sobre as várias línguas do português, deparei-me com ela num balcão de uma repartição pública. Uma funcionária muito pouco empenhada debitava para uma senhora de carapinha branca, que era preciso “pagar a coima”.

Visivelmente, a interlocutora não estava a perceber patavina, o que toda a gente que estava à espera de ser atendida entendeu, exceto a funcionária desempenhada.

À terceira repetição da nebulosa explicação, a senhora que se seguia no atendimento, já inquieta, decidiu intervir: – Mamãe, ela está dizendo que você tem de pagar propina, vice? O sotaque nordestino do brasileiro não enganava.

E a mamãe de carapinha branca reagiu: Manêra k’ bô faláme qui paga propina? Bô falame servis ka corrupção?

E aí foi a vez de a funcionária perceber. Corrupção? Ela não era corrupta, era só o que faltava, ela estava a cumprir a lei, ela não admitia que “chamem a mim de corrupta”, isto no mais puro algarvio de moça de Olhão.

E entre propinas e coimas e eventuais corrupções, a senhora mais velha resolveu negociar : “Bô ka baixa tarifa di preço?”. Nova explosão da funcionária, que aquilo não era o mercado do peixe, a coima era a coima, não havia descontos, nem propinas, nem corrupção. Por esta altura já as vozes se elevavam, entre o ‘’ (você) crioulo, o ‘Vice’ (ouviste?) brasileiro e mais o ‘’, (moça/moço) dos filhos d’Olhão.

Mas foi a intervenção masculina que fez entornar o caldo à séria. Lá do fim da fila, um homem gritou: Atão não podem dezere à mulher que coima é multa, carago? Eu benho aqui pra pagar a lecensa do barco e nada, tamos aqui todos empachados, ora ide mas é prócaralho. A pronúncia do Norte justificava o uso da língua sem gravata, que é normal pra lá do Rio Douro, mas nem a cabo-verdiana, nem a brasileira, nem a algarvia gostarem de falas ordinárias.

Êl câ tâ papiâ drêtu (Ele não fala bem). Ôcê tá sendo desbocado, vice? Mó, tás a falar como um chulo e aqui nã s’adimite, óviste?

Eu desisti e vim-me embora, no meio de uma algaraviada entrecruzada de sotaques do Norte, de Cabo Verde, do Brasil e de Olhão, a pensar que o acordo ortográfico que supostamente deveria aproximar as diversas versões da língua portuguesa, estava a falhar miseravelmente. É o que acontece quando se quer mudar uma língua viva por decreto.

Além disso, o português é mesmo uma língua muito traiçoeira. Quem diria que coima pode ser propina e propina pode ser multa e multa pode ser tarifa? É uma questão de mares e oceanos, como vós pudestes ouvir.

 

Autora: Conceição Branco é jornalista

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