Quotas e discriminação de género

Confesso: tenho uma relação de amor-ódio com a questão das quotas… O tema não é pacífico. Há quem seja frontalmente […]

Inês Morais PereiraConfesso: tenho uma relação de amor-ódio com a questão das quotas…

O tema não é pacífico. Há quem seja frontalmente contra as quotas, há quem as defenda afincadamente.

Enquadremos esta questão: as quotas surgem como uma possível solução de combate à discriminação de género.

A situação parece causar um certo mal-estar na sociedade. Mal-estar nas mulheres, porque, na esmagadora maioria, entendem que não precisam de quotas porque não se sentem frágeis, fracas, incapazes ou diminuídas. Mal-estar nos homens porque, na sua esmagadora maioria, entendem que as mulheres não precisam de quotas, porque não as sentem frágeis, fracas, incapazes ou diminuídas. Aparentemente, assim será.

A desigualdade, no entanto, é evidente.

Apesar da proibição de discriminação de género ter assento constitucional, a desigualdade salarial ainda existe. Há uma diferença de 18% entre o que os homens e as mulheres auferem. Uma mulher tem que trabalhar mais 59 dias por ano para ter o mesmo salário que um homem, em trabalho igual.

As mulheres são a maioria da população ativa que recebe o salário mínimo e são a maioria da população ativa que está precarizada. Numa altura em que se fazem tantos apelos ao aumento da natalidade, são aquelas que, quando estão grávidas, têm o seu contrato a termo não renovado.

As mulheres continuam a não ter assento expressivo nos conselhos de administração e nos cargos diretivos de topo das médias e grandes empresas; as mulheres ainda que ganhem o mesmo salário que os homens para o desempenho das mesmas funções, têm, na grande maioria dos casos, acesso a menos regalias conexas com esse salário, diretamente relacionadas com as funções que exercem (a título meramente exemplificativo, destacam-se os valores inferiores dos denominados subsídios de função).

As mulheres continuam a ter uma fraca representação na Assembleia da República e nos centros de decisão política.

As mulheres continuam, na sua esmagadora maioria, a sentir a sobrecarga do trabalho doméstico e do cuidado com os filhos e a família, acumulando essas obrigações familiares com a exigência das suas carreiras profissionais; as mulheres continuam a ser interpeladas por potenciais empregadores e empregadores efetivos sobre se pensam engravidar e ter filhos, como se essa opção fosse impeditiva de um adequado e eficiente desempenho profissional.

A igualdade de oportunidades e de tratamento, a igualdade na livre escolha de ter uma família, sem penalizações remuneratórias e/ou de progressão na carreira profissional, essa igualdade ainda não existe efetivamente. E é pena que assim seja, porque ficamos todos a perder. Mas voltemos à questão das “quotas”.

A Lei 3/2006, de 21 de Agosto, a denominada Lei da Paridade, estabelece que as listas de candidaturas apresentadas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais são compostas de modo a promover a paridade entre homens e mulheres, entendendo-se por paridade a representação mínima de 33,3% de cada um dos sexos nas listas.  Atente-se, não é verdadeira igualdade, é paridade.

Ao longo de 41 anos de democracia, em 25 governos, tivemos em Portugal 14 primeiros-ministros homens e uma única primeira-ministra, Maria de Lourdes Pintasilgo, temos um ratio de 31 ministras para 467 homens ministros, foram nomeados 1609 homens para cargos governamentais e 127 mulheres. Dito de outra forma, 92,7% dos governantes que tivemos são homens e 7,3% mulheres. Sintomático…

Com a Lei da Paridade, a situação vai-se alterando, paulatinamente, por via da imposição legal. Está demonstrado que a qualidade da análise e da decisão melhora, se for copartilhada por mulheres e homens.

Que fique bem claro: as “quotas” não existem para colocar mulheres incompetentes em determinados cargos ou funções; as quotas existem para que as mulheres competentes, que não são colocadas nessas mesmas funções ou cargos por causa da discriminação, o sejam.

E o argumento de que as quotas não deviam existir porque as pessoas deviam lá estar pelo mérito não colhe. É o mesmo que dizer que todas as pessoas que estão na política estão lá por mérito, e todos sabemos que isso é completamente falso, no caso dos homens.

Deixo aqui um apontamento de direito comparado – em 2003, a Noruega foi o primeiro país a aprovar uma lei que obriga as empresas a cumprirem o equilíbrio de género nos seus conselhos de administração, num mínimo de 40%, para o sexo menos representado, sob pena de aplicação de severas sanções, incluindo a inibição de funcionamento.

E aquilo que motivou o então governo democrata-cristão a aprovar uma lei com este teor foi o facto de estar absolutamente convencido de que a insuficiente utilização das competências de mulheres altamente qualificadas representava uma perda grave de potencial de crescimento económico e que o desequilíbrio entre os géneros nos conselhos de administração representava uma oportunidade perdida pelas empresas, tanto em termos de governança, como no que ao desempenho financeiro diz respeito.

Volvidos mais de 10 anos, a percentagem de mulheres nos cargos de direção na Noruega passou de 7% para 43% e segundo um estudo da Norwegian School of Economics, mais paridade nos quadros de direção traduziu-se em empresas mais lucrativas, havendo uma relação clara entre a heterogeneidade de género na liderança e o aumento de vendas.

Outra correlação comprovada é que mais mulheres nos cargos de direção acrescenta valor à própria empresa, que assim aumenta o seu nível académico e diversifica os seus talentos, pois, como se sabe, as mulheres são hoje em dia a maioria da população licenciada, com mais pós-graduações, mestrados, doutoramentos, pós-doutoramentos ou MBA.

A experiência norueguesa levou a que, na Béligica, França, Islândia e, muito recentemente na Alemanha, que após 14 de anos de apelo à voluntariedade das empresas alemãs para tornarem os cargos de direção mais paritários, acaba de aprovar uma lei que, já a partir de 2016, obriga a que as mulheres representem pelo menos 30% dos membros não executivos de cada órgão de fiscalização das empresas registadas em bolsa.

E, para garantir que não existirão desvios ao objetivo a atingir, a sanção prevista para o incumprimento da lei não é o pagamento de coimas, mas antes a obrigação de manter os cargos vagos até que sejam encontradas mulheres com o perfil e competências adequadas ao seu preenchimento.

Desde que, em 2010, a Comissão Europeia desafiou os Estados-Membros a chegarem a um amplo consenso quanto à urgência de aumentar a participação das mulheres nos conselhos de administração das empresas, colocando a falta de paridade nos cargos de direção na agenda política europeia, verificou-se um aumento de 8%, em média, de proporção de mulheres nos quadros de direção das empresas dos Estados-Membros. Sendo que os países onde se registou maior aumento são aqueles onde foram aprovadas medidas legais com carácter obrigatório.

Em Portugal, foi aprovada, em jeito de celebração do Dia Internacional da Mulher, a Resolução de Conselho de Ministros nº 11-A/2015, de 6 de março, que estabelece o prazo de 90 dias para desenvolver diligências com vista à celebração, com as empresas cotadas em bolsa, de um compromisso de vinculação voluntária ao objetivo de ser atingida uma representação de 30% do sexo sub-representado nos cargos de direcção até final de 2018 (?!?!).

Confesso: tenho uma relação de amor-ódio com a questão das quotas…

Aquilo que defendo intransigentemente é que a meritocracia e a competência sejam sempre o único critério para o preenchimento dos lugares de decisão.

Mas, por tudo o exposto e porque sabemos que a evolução social e de mentalidades é bem mais lenta que as exigências dos desafios que enfrentamos, considero que a introdução de medidas legais obrigatórias, transitórias, obrigando ao cumprimento de “quotas” com vista a garantir o equilíbrio de género quer na vida política, quer na vida empresarial, forçando os partidos, os movimentos de cidadãos e as empresas a procurar os candidatos e candidatas que melhor correspondam aos perfis profissionais e competências exigidos fora do “clube dos cavalheiros habituais”, é a forma mais célere e eficiente para o fortalecimento da democracia, o aprofundamento da cidadania, a promoção de desenvolvimento económico sustentável e a consolidação de uma sociedade mais justa e solidária.

Autora: Inês Morais Pereira
Advogada e Doutoranda em Gestão da Inovação e do Território, na Faculdade de Economia da Universidade do Algarve

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